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A presença da Pobreza na vida dos adolescentes

6.1. Adolescente – De que adolescente estamos falando?

6.1.1. A presença da Pobreza na vida dos adolescentes

Raimundo tem 19 anos e mora na casa do pedreiro para quem trabalha como servente porque não tem onde ficar. Tem dois filhos com duas mulheres diferentes, com as quais já viveu maritalmente. Sua mãe faleceu em um hospital público com 27 quilos - há relatos da família de ter passado fome dentro do próprio hospital.

Esse breve relato da situação de Raimundo ilustra que não se trata somente de uma pobreza material. Trata-se de um tema mais abrangente: a exclusão social. Paugam (2004) a situa enquanto um termo ainda equívoco, abarcando preocupações tais como: propriedade do emprego, ausência de qualificação suficiente, desocupação, incerteza do futuro; privação material e degradação moral e de socialização; desilusão do progresso. Além da pobreza material, faz referência à pobreza espiritual e, nesse sentido, aponta

como principal razão da marginalização precoce, a ausência de relações estáveis com a família. Consoante, Demo (1998) aponta essa condição também pela perda do senso de pertença, acompanhada do sentimento de abandono e incapacidade de reagir. Castel (1998) afirma que a exclusão ganha significação mais drástica no processo de destruição de valores integrativos tradicionais, atingindo os patamares da precariedade marcada pela não-pertença e impotência. É possível perceber essa incapacidade de reagir no relato de Raimundo e a impotência diante da pobreza no relato da irmã de Raimundo:

É eu sou uma pessoa que [...] sou calmo, tranqüilo, não gosto de muita bagunça e gosto de tudo um pouco, que tiver pra mim tá bom, não reclamo de nada. (Raimundo)

[...] morreu e aqui é um lugar que se você não tiver dinheiro para pagar assim, um plano de saúde, você morre à míngua. Ela (mãe) morreu à míngua, porque não queriam internar ela, não queriam aceitar ela no hospital. [...] Ela tinha tanto desgosto da vida... Da vida mesmo que ela cansou de chorar, que o cigarro e o café dela, ela falou já, eram os amigos dela. Mas mesmo assim, eu acho assim: que o que causou mais foi do hospital... Menina, eu procurei um pão para ela, nem que fosse seco, um pão para ela comer. Não tinha no hospital. (Irmã de Raimundo)

Esses relatos retratam como Raimundo e sua irmã reagem diante da pobreza, do descaso e da negligência do Estado. É possível notar que o sentimento de impotência trazido pela irmã de Raimundo foi sequer significado por ele. Havia três meses que sua mãe havia morrido nas condições apresentadas e ele não reclama de nada, o que tiver para ele está bom. Essa falta de consciência com relação à gravidade da situação vivenciada – seja devido à pobreza, à violência ou à droga – também pode ser percebida no relato dos outros adolescentes desse estudo, como veremos mais adiante.

Esse dado se agrava na medida em que os pobres são integrados pela via da exclusão como forma de pertença. Dessa forma, o conflito com a lei aparece como uma

possibilidade de identidade, que se forma sem uma reflexão do que significa estar implicado nesse contexto de transgressão.

Sawaia (2004) chama atenção para a definição de identidade como ―conceito político ligado ao processo de inserção social em sociedades complexas, hierarquizadas e excludentes‖ (p. 124). Afirma que o clamor pela identidade é parte do confronto de poder na dialética da inclusão/exclusão e sua construção ocorre pela negação dos direitos e pela afirmação de privilégios. Assim, para a autora, usar a referência identitária para analisar os problemas sociais significa ―buscar lugares onde a identidade deixa de ser destino e consciência ‗em si‘, para se tornar consciência ‗para si‘ e para o outro, sem perder o sentimento de ser único e, assim, poder dispor de si para si‖ (p. 126). Trata-se de uma dimensão ética do processo identitário, trazendo à tona a dialética identidade/alteridade.

Dessa maneira, o que percebemos com os adolescentes deste estudo é que a pobreza que atravessa suas vidas traz conseqüências drásticas para os processos identitários na medida em que as instituições como escola, saúde e assistência social, que deveriam contribuir para a formação de identidade e sua socialização, escancaram a perversidade da exclusão. São jovens que têm acesso restrito à rede de saúde, não freqüentam a escola, não estão inseridos no mercado de trabalho ou o estão precariamente. Ou seja, apresentam uma série de rupturas ou talvez sequer foram efetivamente vinculados a instituições essenciais para um desenvolvimento saudável e autônomo. O desenvolvimento do senso de pertença, essencial para a formação identitária, fica altamente comprometido diante de tantas adversidades.

Nesse sentido, Carreteiro (2010) sugere designar o termo no plural, ―adolescências‖, considerando sua multiplicidade e a estreita relação com os contextos

familiares, sociais e culturais do sujeito. A autora faz referência a Robert Castel (1995 como citado em Carreteiro, 2010) ao trabalhar com dois tipos de indivíduos hipotéticos: os ―por excesso‖ e os ―por falta‖. Os primeiros indivíduos integram uma teia de pertencimento social positivo que lhes permite ter suficientes suportes em diferentes dimensões institucionais (educação, saúde, família e cultura, entre outras). Esse conjunto de suportes vai lhes garantir a não dependência, favorecendo a construção de posições autônomas. O segundo tipo, os ―indivíduos por falta‖, têm uma inserção social que, ao contrário, não lhes garante posições autônomas, mas de dependência; são marcados por uma ausência de pertencimento institucional positivo.

Corroborando isso, Takeuti (2002) aponta para a trajetória de jovens das periferias brasileiras, que ―caracteriza-se pela precariedade ou inexistência de experiências sociais e de relações na sociedade que tenham o sentido social de integração, inserção, afiliação, cooperação, participação ou inclusão‖ (p.154). A autora afirma que esse jovem vive na condição de relegado social, ou seja, inapto para participar da sociedade legal, de tal modo que deve ser ―afastado e colocado à parte‖, no limite ―banido‖. Além disso, ressalta a negligência das políticas públicas e de outros mecanismos sociais e institucionais de regulação ou de proteção a favor dos jovens das camadas mais pobres.

Dessa forma, entendemos que esse lugar social (Takeuti, 2002) conferido para tantos jovens das camadas brasileiras mais pobres trata-se na verdade de um não lugar. Ora, não é possível estabelecer vínculos sólidos, o processo identitário é altamente fragilizado, não há referências confiáveis, às vezes, sequer há o espaço físico, concreto, como uma casa. O que resta? Uma grande massa indiferenciada, com restrito ou nenhum senso crítico e capacidade de reflexão, facilmente manobrável. Nesse contexto

não é difícil convencê-los de que os direitos que têm são favores que recebem. Esse não lugar conferido para esses adolescentes desempenha uma influência nefasta tanto em seus processos identitários, quanto nos de suas gerações futuras, conforme ilustraremos no tópico sobre Família.