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O processo identitário diante do contexto de pobreza, violência e drogas

6.1. Adolescente – De que adolescente estamos falando?

6.1.4. O processo identitário diante do contexto de pobreza, violência e drogas

Balizando os três aspectos discutidos, — pobreza, violência e drogas — entendemos que são determinantes para a construção identitária dos adolescentes em questão. De acordo com a perspectiva sistêmica, a dinâmica familiar é decisiva para o

processo de individuação e construção da identidade do adolescente. O papel que desempenha junto ao sistema parental terá grande influência na trajetória que o jovem irá percorrer em sua vida.

Dessa forma, defendemos que o contexto familiar do adolescente é atravessado por suas condições de vida, levando-o a desempenhar papéis que se organizam em torno da dinâmica familiar instaurada, que abarca relatos de privação, abandono e negligência, tanto da família quanto do Estado. Entendemos que o contexto familiar se relaciona com um contexto social mais amplo de forma dialética, dificultando a limitação de o que é de dentro e o que é de fora. Foram crianças que trabalhavam na rua junto com seus pais, são adolescentes que usam drogas junto com seus pais. Os contextos de pertencimento ―fora‖ da família são os mesmos para todos seus membros.

Chamamos a atenção para o argumento de Penso (2003) ao afirmar que o envolvimento muito precoce com atos infracionais e drogas ocorre como busca de alguma interdição externa que possibilite a vivência da lei falha na família e a construção de um sentido de identidade. Nesse sentido, destaca a Justiça como espaço transicional simbólico de limites e lei, que também pode contribuir na busca de um sentido de identidade.

No entanto, percebemos que a própria família dos adolescentes também se encontra nessa busca de interdição externa. De acordo com o relato do tio de Evaldo, ele foi orientado pelo delegado a não bater no sobrinho para conter seu uso de crack; o pai de Dulcilene foi preso por tráfico de drogas e continua usando maconha; o pai de Raimundo se recusa a ajudar sua filha a cuidar dos irmãos (filhos caçula do pai) após a morte da mãe. São atos que podem sofrer intervenção da Justiça. Disso questionamos:

que sentido de lei essas famílias podem oferecer para seus filhos se elas próprias estão nesta busca?

Acrescenta-se a isso que antes de serem ―acolhidos‖ pela Justiça, esses adolescentes são ―acompanhados‖ pela política de Assistência Social por meio de medidas protetivas. Sobre esse aspecto, Paugam (2004) coloca que o apelo permanente à assistência social condena a massa de pobres para carreiras específicas, alterando sua identidade e transformando suas relações com o outro num estigma. Corroborandoisso, Sawaia (2004) defende que ―a identidade é uma categoria política disciplinadora das relações entre pessoas, grupo ou sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico‖ (p. 123).

A discussão sobre a construção identitária do adolescente é importante porque, conforme salientou Penso (2003), esses adolescentes ficam entre seu status e estatuto. Ficam entre o que se diz sobre a adolescência e a adolescência que de fato vivem. Afinal, qual é o tempo desta adolescência? As políticas públicas que os atendem são adequadas para a adolescência que vivenciam?

Pensando nos adolescentes deste estudo, acreditamos que não. Para ilustrar, apresentamos abaixo relato dos adolescentes sobre a relação que estabeleceram com as instituições educacionais pelas quais passaram, que parecem não terem conseguido acessá-los enquanto crianças e adolescentes:

Pesquisadora: Você gostaria de voltar a estudar, Dulcilene?

Dulcilene: Falar a verdade, não. Não tenho paciência, nem quando eu era pequena eu gostava de ir para escola, nem que me batia eu ia para escola de manhã cedo. Todo dia era uma briga. [...] É muito chato ir para escola.

Pesquisadora: O que você acha chato da escola?

Dulcilene: [...] vem aqueles professor explicar as coisas, nós faz, às vezes não tem acertado pra eles, eles é tudo ignorante. Aí eles fala: vocês tá aqui na escola é pra aprender, se aprendeu bem, se não aprendeu é porque estava conversando. Então não vou explicar nada. Vai sem entender. Então vai para escola pra quê?

Chega lá vai brigar com eles, aí leva pra direção. Só quem é errado é nós. Eles nunca faz nada.

É... apesar de estudar é ruim demais né. Eu também procurei vaga ano passado e não encontrei. (Raimundo)

[...] se eu não entender assim eu não pergunto não, fico só flutuando. (Raimundo)

Os relatos dos adolescentes, as trajetórias por eles percorridas demonstram que nossas políticas não estão preparadas para nossa juventude pobre. Ainda não oferecemos espaços de pertencimento que favoreçam construções identitárias que levem à autonomia. Nesse sentido, Takeuti (2002) argumenta que ―o que define a situação da maioria dos jovens das periferias pobres é a ausência de possibilidade de reconhecimento social, visto que o acesso à condição de sujeito social já lhes é barrada, antes mesmo de iniciar a sua socialização primária‖ (p. 155).

Entretanto, mesmo diante de um contexto tão adverso, evocamos Enriquez (2001a) a fim de pontuar que somos produtos de identificações múltiplas, ―podemos ter marcos identificatórios mutáveis ao longo de nossa vida e, graças a esse jogo identificatório, podemos escapar à pré-formação desejada pela sociedade e não nos tornar indivíduos totalmente heterônimos‖ (p. 33). Ou seja, a qualquer tempo é possível escapar de trajetórias tão trágicas já traçadas desde o nascimento. Só que isso não é possível sem políticas públicas de proteção básica que garantam espaços saudáveis e continentes de pertencimento, que possibilitem lugares de existência para esse ser adolescente. Nesse abandono não haverá mudança.

Dessa forma, retomamos Carreteiro (2010) quando afirma que os suportes sociais podem ou aprisionar certos jovens, aumentando os riscos das ações que desenvolvem, ou auxiliá-los a criar outros caminhos que sejam menos arriscados. Entendemos que se investimos mais na proteção social que de fato garanta a efetivação

de direitos básicos como saúde, educação e habitação, certamente estaremos contribuindo para trajetórias de vida menos arriscadas para nossos adolescentes.