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Não foi somente a invasão de ritmos estrangeiros como a discothèque, a soul music e o

já citado punk rock que se sobrepuseram ao espaço do rock. Um gênero musical,

genuinamente brasileiro, ressurgiu e conseguiu alcançar certa notoriedade entre os jovens

daquela época: o chorinho. Esse gênero que estava em declínio a partir das mortes de Jacob

do Bandolim, em 1969, e de Pixinguinha, em 1973, reaparecia com força a partir de 1977,

através de iniciativas particulares ou de órgãos governamentais.

Quando Roberto Moura define o choro como a “antimúsica de protesto” e afirma que “certamente não será uma coincidência o fato de que, num momento em que todas as artes brasileiras estão vivendo um clima de tensão, a MPB ter-se encaminhado para a ressurreição de um gênero tipicamente instrumental – onde não é preciso dizer nada” (O Dia, novembro de 1977), ele está abordando apenas um lado da questão. Talvez o fato de o choro não encontrar problemas com a Censura tenha facilitado seu rápido acolhimento por parte do novo projeto cultural brasileiro. Mas não foi o fator determinante. Se em 1974/75 o governo decide promover formas espontâneas de cultura que, como o choro, sobreviviam de um modo marginal, buscando integrá-las ao mercado, é porque precisa de uma base de sustentação ideológica. E é nas manifestações culturais que já contam com uma base popular que ela será buscada. É preciso tapar o buraco cultural, “interpretando” os “anseios e aspirações” do povo e impondo-os de volta como novos padrões a serem adotados, em prol da preservação da “identidade cultural” do país. (AUTRAN, 2005, p. 81).

Desse modo se conseguiu arrebanhar uma nova geração de músicos, que declinam da

influência do rock para agregarem instrumentos como bandolim, violão e pandeiro,

valorizando novamente o chorinho, um gênero musical que estava no limbo e ressurgia

através da Bossa Nova e do Tropicalismo.

Apesar de serem formados por jovens, os grupos citados não promoveram uma

revolução estética

197

. No meio dessa efervescência o grupo A Cor do Som provocaria um

impacto no chorinho. O número 19 da revista traz a crítica do primeiro LP da banda, lançado

197 “A maioria dos conjuntos então formados se mantiveram fiéis ao estilo tradicional, como Os Carioquinhas, que tocavam na mesma harmonia que o Época de Ouro [o principal conjunto de choro do país]. Outros já fizeram algumas modificações em sua formação, como A Fina Flor do Samba, que incluiu o solo de contrabaixo acústico, muita percussão e bateria, embora mantivesse um estilo de execução autêntico. Mas até Os Mutantes, o Vímana e outros grupos mais habitualmente ligados ao rock incorporaram o choro a suas apresentações.” (AUTRAN, 2005, p. 86).

em 1977. Escrita por Aprígio Lírio, apontava para o fato de este grupo ter uma proposta de

mescla de gêneros e também de ser apenas instrumental:

O movimento é importante: valorizar o músico brasileiro. E já que o assunto virou moda, a maioria das gravadoras nacionais tem em seu elenco alguns grupos instrumentais ou então, outros novos para lançar. A WEA produziu e lança, agora, o primeiro elepê do grupo A Cor do Som, mais famoso no momento por ter conseguido um 5º lugar no “Brasileirinho – I Festival do Choro”, organizado pela TV Bandeirantes de São Paulo, com a composição “Espírito Infantil”. [...] Do material gravado – frevo, latin rocks, samba-rocks, choros, baladas e outros gêneros – a mistura de “Tigresa” com “Odeon” (Ernesto Nazareth) em nada atrapalha o desenvolvimento de A Cor do Som. Um disco de estréia, saudável, alegre, juvenil, sem ser pueril. (LÍRIO, 1977, n. 19, p. 15).

Ao mencionar que “o movimento é importante: valorizar o músico brasileiro”, o

crítico aponta para algo que estava acontecendo naquele momento: a valorização do músico

como instrumentista. Um dos fatores que ajudou a resgatar esse papel do músico foi através

do chorinho, catalisado pelo I Festival Nacional do Choro – Brasileirinho, promovido pela

Rede Bandeirantes de Televisão

198

.

Além do referido grupo, voltado para a música instrumental, outros tantos que

surgiram na época, formados por jovens instrumentistas, tornariam o chorinho algo comum

entre os diversos públicos:

Foram também as possibilidades instrumentais desta música que despertaram o interesse das gerações que vieram depois da bossa nova e do tropicalismo – movimentos que valorizaram a linguagem musical propriamente dita, o som em si mesmo. E, enquanto em 1970 o musicólogo Mozart Araújo declarava ser difícil encontrar autênticos chorões “nestes dias de iê-iê-iê”, devido à virtuosidade que o

198 O festival teve uma segunda edição no ano de 1978. Sobre esta primeira edição, Henrique Cazes aponta: “Foi impressionante o espaço que esse evento teve na mídia. Algo muitas vezes maior do que o maior espaço já ocupado pelo Choro até hoje. Se um compositor famoso se inscrevia, já era matéria. Todas as etapas do concurso foram exaustivamente divulgadas pela imprensa e, pelas matérias anteriores ao evento, tinha-se a impressão que o Choro finalmente chegaria à terra prometida.” (CAZES, 1998, p. 153). Apesar de se referir a um movimento espontâneo, a participação de A Cor do Som ocorreu por conta da gravadora do grupo, a WEA e seu presidente André Midani. Além disso, a presença do grupo no referido festival provocou mal-estar: “Entra em cena a WEA, dona de um farto catálogo internacional com alguns dos maiores nomes da música americana e inglesa, que tinha se instalado no Brasil pouco antes. André Midani, presidente da gravadora, queria cativar o público jovem, formando um poderoso time com artistas brasileiros. [...] Quem juntou a fome com a vontade de comer de A Cor foi Guti, produtor da WEA e primo de Mú e Dadi. [...] Com gana de conquistar mercado agressivamente, a WEA foi logo botando as manguinhas de fora e inscreveu uma das músicas gravadas pela A Cor do Som num festival. A música foi Espírito Infantil, um choro de Mú. O festival? Brasileirinho – 1º Festival Nacional do Choro, organizado pela TV Bandeirantes. Audácia perdia: imaginem qual seria a possível reação da tradicional platéia do gênero dando de cara com quatro rapazes, todos cabeludos, [...] seus instrumentos ligados na tomada! Irado o público acabaria gritando: ‘Fora roqueiros!!!’” (ALBUQUERQUE, 2000, p. 14). Não foi somente na apresentação que o grupo foi alvo de contestação: “Mas foi em torno da música que recebeu a quinta colocação que surgiu a maior polêmica. Tratava-se de ‘Espírito Infantil’, uma experiência de fusão pop-chorística composta por Mu [...]. A música indiscutivelmente não tinha um desenvolvimento satisfatório, mas o timbre original do grupo e o tipo de interpretação, com destaque para o bandolim de Armandinho, chamaram a atenção e dividiram opiniões, no júri, no público e na imprensa.”(CAZES, 1998, p. 154).

choro exigia de seus executantes, quatro anos mais tarde começam a surgir grupos de choros formados por músicos que não tinham sequer idade para se profissionalizar. [...] Os Carioquinhas, Galo Preto, Cinco Companheiros, Levanta Poeira, Anjos da Madrugada, Éramos Felizes e a Fina Flor do Samba foram formados por instrumentistas de 15 a 20 anos de idade. (AUTRAN, 2005, p. 86).

Apesar dessa movimentação com o ressurgimento do chorinho e da incorporação do

mesmo pelos grupos novos, esse processo de incorporar uma nova estética eletrificada ao

choro não se consolidaria, mesmo com o surgimento desses novos músicos

199

.

O movimento ao qual Aprígio Lírio se refere diz respeito não apenas ao choro, mas à

música instrumental brasileira

200

que, naquele momento (entre 1976 e 1977), ressurgia com

força após um longo interlúdio forçado

201

.

Naquele momento, bossa nova/samba/jazz, estilos considerados a base desse

movimento musical, acaba se rompendo e a música instrumental incorpora uma linguagem

musical “híbrida de clássicos, música regional e uma pitada de rock” (BAHIANA, 2005b, p.

65).

199 Um relato desse declínio foi publicado na edição 566, de 11 de julho de 1979, da revista Veja: “De repente, há cerca de dois anos, os cavaquinhos, bandolins se deslocaram dos fundos dos quintais e das mesas de bar para aparecer em festivais, programações de rádio e tv e em dezenas de LPs. Era o boom do choro, que parecia ter vindo para ficar. Na semana passada, porém, quando o Clube do Choro de São Paulo, completou seu segundo aniversário, o clima já não era de comemoração. [...] Passada a euforia, nada mais natural que desaparecessem os adeptos de última hora – e talvez seja por isso que parte da diretoria do clube tenha se esfumado, após lucrar discretamente agenciando regionais para apresentações em clubes e boates. Venenos à parte, também a constatação de que o bom choro exige uma técnica bastante apurada fez com muitos novos adeptos desistissem do gênero.” (CHORAVA-SE, 1979, p. 128). Outro sinal deste declínio foi apontado por Margarida Autran em um ensaio publicado na mesma época: “Transformado num ‘fantástico choro de plástico’, ao ser adaptado aos anseios e aspirações da classe média – destinada a retomar seu papel de base social do regime –, o velho chorinho de Callado, Nazareth e Pixinguinha chegou ao final da década exaurido. Criado por músicos populares que durante um século se esforçaram anonimamente para manter viva sua pureza original, ele não teve fôlego para se manter por mais tempo como produto de consumo de massa. Os bons instrumentistas que revelou partiram para outros caminhos (o que motivou a dissolução da maioria dos conjuntos) e os chorões tradicionais aproveitam o final da safra, enquanto não são forçados a se adaptar ao novo modismo: a gafieira.” (AUTRAN, 2005, p. 86). Esse panorama corresponde ao final dos anos 70, precisamente entre os anos de 1978 a 1980. Posteriormente, a gafieira também seria deixada de lado.

200 “A denominação ‘música instrumental’ – ou, como preferem os próprios músicos, ‘música improvisada’ – parece, a princípio, elástica e abrangente. Esta constantemente em pauta durante a década foi retomada como assunto de investigação e debate inúmeras vezes, principalmente a partir da metade final dos anos 70. Mas, na verdade, o assunto central dessas discussões, o tema oculto sob a designação ‘música instrumental’ – palavra que, por definição, deveria se aplicar a toda forma musical executada exclusivamente com instrumentos, sem o concurso do texto cantado, o que incluiria desde o choro até a música dita ‘clássica’ ou ‘erudita’ – não era tão imenso como fazia supor. Referia-se, basicamente, às formas musicais cunhadas na informação do jazz e à geração de seus praticantes, os instrumentistas dispersos com o esvaziamento da bossa nova e o desinteresse do mercado e da indústria fonográfica.” (BAHIANA, 2005b, p. 61).

201 “O último grande momento instrumental do Brasil tinha sido a bossa nova. Após quase uma década de refinamento harmônico e depuração da síntese jazz/samba – operada, em sua maior parte, por uma geração coesa de instrumentistas, [...] a palavra recuperou espaços com o racha da música de participação, ou protesto, de meados dos anos 60.” (BAHIANA, 2005b, p. 62).

Voltando ao grupo A Cor do Som, sua trajetória ocuparia um espaço que naturalmente

se ofereceria: com o esvaziamento do rock brasileiro, a partir da segunda metade dos anos

1970, ocupariam um espaço que estava ocioso

202

.

Os vocais passaram a ser introduzidos, em detrimento da habilidade instrumental. Na

edição número 35, o crítico Walmir de Medeiros Lima escreveu sobre o terceiro LP do grupo,

Frutificar (WEA, 1979), que marca uma guinada importante: os integrantes passam a cantar,

a fim de que pudessem tocar suas canções nas emissoras FM. Outros críticos consideravam o

fato de gravarem canções destinadas para tocarem em rádios uma atitude equivocada.

Contudo esse dado não é mencionado na próxima crítica, que aponta somente a virtude do

grupo na mescla de ritmos:

Este terceiro elepê da carreira ascendente do grupo A Cor do Som é o que mais se aproxima do estilo de roqueiros no país de samba, choro e carnaval. Eles fundem perfeitamente a experiência em grupos de rock com os ensinamentos da escola Novos Baianos para fazerem uma música moderna, criativa, popular, com uma grande exigência de perfeição técnica na execução. (LIMA, 1979, n. 35, p. 60).

Juntamente com A Cor do Som, outro grupo surgido no mesmo período credenciava-se

como representante de uma nova safra que apareceria naquele momento: o 14 Bis. No número

47, a revista publicou a crítica de Antonio Lauriello Filho sobre o segundo disco do grupo,

também intitulado 14 Bis (Emi-Odeon, 1980):

Se por um lado, o sucesso hoje, veio, graças à composição “Bola de Meia – Bola de Gude”, por outro, deve-se considerar o perfeito arranjo que eles construíram em cima e que por certo, ajudou o seu estouro nas paradas. Devemos considerar também a importante presença de Rogério Duprat no arranjo e regência de 3 [sic] composições. Tudo é uma dica pra se esperar, dos próximos trabalhos, aquele sucesso e um sucesso em função de suas próprias composições, mesmo porque capacidade e vontade de transar algo diferente o pessoal demonstrou neste 14 BIS, voando de uma forma muito bonita. (LAURIELLO FILHO, 1980, n. 47, p. 44).

Composto por ex-integrantes do Terço e do Bendegó, o 14 Bis trazia, além de heranças

estéticas dos grupos de origem – mescla de ritmos brasileiros com o rock estrangeiro –, um

forte apelo visual em seus shows, como telões e toneladas de equipamentos de som e imagem.

Apesar de os críticos

203

da revista Música entenderem e apostarem nesses grupos

como talentosos e possíveis representantes de uma nova estética musical que poderia romper

com o que havia de convencional naquela época, isso não aconteceu:

202 A respeito da atuação do grupo, relacionada com a crítica musical, o próximo capítulo, sobre a revista

O problema tanto do 14 Bis como da Cor do Som, era o mesmo. Os grupos não ofereciam ruptura conceitual com o establishment da época, solidificado na figura dos baianos e complementando pela corte mineira. [...] Não é preciso ser adolescente rebelde para notar que algo não vai bem quando os heróis dos nossos pais obscurecem nossos próprios heróis. (ALEXANDRE, 2002, p. 31).

Apesar desse arrefecimento, tais grupos continuariam em atividades ao longo de

grande parte dos anos 1980, porém sem tanto sucesso

204

. A partir do final da década de 1970,

os diversos grupos que estavam em atividade entraram definitivamente em processo de

extinção

205

.

Em que pesem as dificuldades desta análise

206

, o fato é que a escassez de críticas sobre

artistas ou grupos de rock brasileiro nos exemplares estudados refletia a realidade musical

daquele momento

207

, debatida da seguinte forma pela crítica Ana Maria Bahiana:

Até aproximadamente, 1975/1976, alguns grupos voltados exclusivamente para o modelo fechado do rock, permanecem em atividade; o maior é o Mutante [sic], de formação variada, sempre capitaneado pelo guitarrista Sérgio Dias Baptista. [...] Mas à medida que o público se cansa de consumir essa cópia pálida e passa a preferir a criação original de outro tipo de compositores, e à medida que se desgasta o apelo ao rock como forma alternativa de viver e ver o mundo, os grupos vão se extinguindo e o “movimento rock” se esvaziando. (BAHIANA, 2003, p. 56).

Esse esvaziamento, segundo Bahiana, ocorre a partir do avanço da discothèque e da

soul music. Contudo não se pode deixar de mencionar, numa escala menor, a presença do

punk rock, que gradativamente chegou ao Brasil, quase junto com os outros gêneros citados

pela crítica e ensaísta

208

.

Um indício de que o avanço principalmente da discothèque contribuiu para o

esgotamento da já debilitada cultura rock dos anos 1970 é a saudação da crítica Cleide

Nascimento ao LP do grupo de hard rock chamado Cão Fila, que não obteve, sucesso apesar

desse lançamento, em 1980, pela gravadora Continental:

Assentada a poeira levantada pela disco-music, o rock, em sua mais ampla expressão, volta a ocupar um lugar de destaque com o grupo Cão Fila. Essa feliz descoberta está agora presente nas dez faixas de Cão Fila, o primeiro elepê desse 203 Esse entusiasmo não foi exclusivo dos críticos da revista. José Emilio Rondeau e Matias José Ribeiro, críticos da revista Somtrês apostavam no sucesso de 14 Bis e A Cor do Som. Ver próximo capítulo.

204 A trajetória e os desdobramentos desses grupos dentro da cultura rock, assim como a sua relação com a crítica, terão continuidade no próximo capítulo, referente à revista Somtrês.

205 Os Mutantes deixaram de existir em julho de 1978. Um ano depois, em julho de 1979, foi anunciado o encerramento oficial de suas atividades.

206 O fato de não se ter conseguido analisar todos os exemplares da revista, principalmente os de 1979.

207 Desses exemplares, entre 1979 e 1983, encontramos somente dez críticas de artistas e grupos ligados ao rock brasileiro.

grupo. Logo na sua faixa de abertura, a singela “Pecado Madrigal’, mostra todo o potencial e marca do grupo, baseada na originalidade de seus vocais e na rica elaboração de seus arranjos. (NASCIMENTO, 1980, n. 39, p. 44).

Em termos mercadológicos, a trajetória de grupos como esse demonstram o quanto

desprestigiado estava o rock brasileiro daquela época.