• Nenhum resultado encontrado

2.4 A crítica à musica popular no Brasil

2.4.1 Antecedentes

Inicialmente, serão abordados trabalhos a respeito da crítica musical no século XIX,

principalmente o livro do crítico e jornalista Luis Antônio Giron, Crítica: A Ópera e o Teatro

nos Folhetins da Corte: 1826-1861

80

. Apesar de não tratar diretamente o tema proposto para

esta tese, essa obra foi útil para explanar os motivos pelos quais a crítica musical ainda não

foi trabalhada com a devida atenção em termos acadêmicos

81

:

O objetivo [...] é acrescentar um capítulo ignorado dos primórdios da história musical brasileira: o da crítica. O menosprezo à produção artística da época afigura- se grande, e ainda maior em relação àqueles que atuaram como folhetinistas de espetáculos de suposta pródiga vaidade. Verificar em que consistia a atividade destes primeiros críticos, reunir e analisar os textos à luz dos movimentos estéticos da época, interpretar sua origem, linguagem e estrutura e examinar de que forma ela influenciou a formação da idéia da nacionalidade no Brasil são os fins deste estudo. (GIRON, 2004, p. 15).

Para o autor, as dificuldades em pesquisar crítica musical começam quando já se inicia

uma prospecção de trabalhos qualificados a respeito da crítica musical: “As referências são

muito esparsas, citadas nos compêndios de história ou da estética musical. A dificuldade de

pesquisar em jornais antigos fez com que os musicólogos preferissem cingir-se a obras

publicadas em volumes de estética” (ibidem, p. 36).

Para o próprio autor, é a musicologia

82

que acaba por absorver grande parte dos

estudos referentes à crítica musical que possuem teor acadêmico. Giron aponta outro entrave

80 Conforme o autor, esse livro “é o resultado de uma dissertação em musicologia histórica, apresentada à Escola de Comunicações de Arte de São Paulo em dezembro de 1999. [...] Mas o impulso inicial do ensaio não parte exclusivamente do trabalho acadêmico. Desde o princípio, foi pensado como uma contribuição ao estudo da crítica musical. Assim, as alterações para a edição em livro referem-se, sobretudo a notas de rodapé, providencialmente cortadas para liberar os parágrafos das amarras acadêmicas. O texto é endereçado a todo tipo de leitor, não apenas o universitário.” (ibidem, p. 14).

81 Trata-se de uma pesquisa documental calcada a partir de periódicos editados no Rio de Janeiro entre os anos 20 a 60 do século XIX. Nas palavras do autor: “Muito do que foi escrito sobre início da história do Brasil independente não consta de tratados ou mesmo de publicações especializadas. Está na letra efêmera dos jornais. Os periódicos de interesse geral constituem um universo fértil para a pesquisa sobre a vida musical. E esta não compreende apenas partituras, tratados, documentos manuscritos, como também tudo o que se refere à recepção do espetáculo. Aqui se enquadram crítica, crônica, resenha, ensaio – todos os gêneros enfim, que eram publicados nos folhetins de teatro dos jornais. Tais elementos encontram um escoadouro na chamada crônica teatral. É neste universo que a vida musical do Brasil dos anos 20 aos 60 do século XIX se afigura retratada e perpetuada. O material compreende o cotidiano no flagrante, na vertigem das vaidades que animava a vida artística da capital do Império, com seus teatros, companhias de ópera, orquestras, virtuoses e compositores e um público fascinando com as modas que eram trazidas por navio diretamente de Paris.” (ibidem, p. 15).

82 “Musicologia = Disciplina que se propõe a estudar e pesquisar música de um ponto de vista científico. O termo foi cunhado no século XX para designar o estudo multidisciplinar dos aspectos teóricos da música, notadamente a história, a notação musical, a estética e a bibliografia. [...] O termo atualmente refere-se de forma primordial ao estudo da música em nível acadêmico e, desmembrou-se em segmentos mais setorizados, a exemplo da Etnomusicologia, disciplina que envolve abordagens antropológicas.” (DOURADO, 2008, p. 221).

para o desenvolvimento de estudos sobre a crítica: a posição de historiadores da arte em

relação à crítica.

Costuma-se citar passagens particularmente ridículas de críticos que condenaram obras que se tornariam em breve peças fundamentais da cultura. Os enganos são apropriados para o papel que serve de embrulho no dia seguinte e muitos foram cometidos ao longo da história da música. Mas o bom senso e o consenso acabam predominando, quando se observa o ciclo das opiniões no desenrolar diacrônico dos acontecimentos musicais. A crítica acertou, como errou. E será que os erros também não fazem parte de uma história do imaginário do público e do reflexo das grandes idéias estéticas musicais no plano da doxa? Uma história dos enganos da crítica poderia ser cômica, mas incorreria inevitavelmente em injustiça. (GIRON, 2004, p. 36).

Outro estudo é a dissertação de mestrado de Roberto Dante Cavalheiro Filho sobre a

cobertura musical realizada no jornal O Estado de São Paulo, entre os anos de 1947 e 1968. O

autor explana o que lhe motivou a escolher este periódico como objeto de análise musical:

Pretendemos neste trabalho levantar aspectos a respeito da categoria proposta, o jornalismo musical, através de exame de uma configuração concreta, ou seja, as matérias sobre música produzidas no jornal O Estado de São Paulo entre os anos de 1947 e 1969, período em que a divulgação musical foi intensa, tanto no corpo do jornal como, a partir de 1956, no Suplemento Literário, veiculado aos sábados. O período escolhido, ao mesmo tempo em que apresenta, em seu início, características ligadas ao passado do jornalismo musical como modalidade européia burguesa, revela uma maior especialização, com a criação do “Suplemento”, e vai assumindo novas feições, a partir do final dos anos 50, quando a linha editorial procura conciliar música de concerto e ampliação da faixa de consumo, não, entretanto, pela vulgarização do produto, mas pela valorização do repertório erudito, através de técnicas jornalísticas modernas, e pelo engajamento decidido do jornal na promoção de eventos. Essa nova fase correspondeu também à constituição progressiva de um caderno cultural nos moldes de hoje, em que a música popular e os espetáculos teatrais, entre outros itens, ganharam espaço atendendo às demandas de um público mais amplo, e refletindo mudanças de orientação no consumo cultural, cada vez mais submetido ao impacto da visualidade. (CAVALHEIRO FILHO, 1996, p. 10).

Apesar de ter sido criado em 1875, a opção do autor em escolher 1947 deve-se a uma

questão histórica e política, tanto em termos nacionais quanto estrangeiros:

A data-limite de 1947, a partir da qual examinaremos mais perto a produção de artigos e críticas musicais nas páginas d’O Estado de São Paulo, oferece numerosos pontos de referência que permitem uma leitura de certa forma unificada da divulgação musical com faceta especializada e importante do jornalismo, em se tratando de um formador de opinião da magnitude d’O Estado. O período que consideramos iniciar-se naquele ano caracteriza-se no âmbito internacional como uma época de normalização das relações após o fim da Segunda Guerra, e no plano interno corresponde a uma era de restabelecimento democrático, após o Estado Novo getulista, terminado em 1945. Para o jornal O Estado representa a retomada de sua vida independente, após a intervenção federal sofrida de 1940 a 1945. (ibidem, p. 10).

O autor observa que apesar da fama de conservador, esse diário, no que diz respeito ao

jornalismo musical, alcançou tons editoriais modernizantes. Por exemplo, o Suplemento

Literário passaria a divulgar correntes musicais contemporâneas, como também festivais de

música de vanguarda, atendendo à sua vocação de marco renovador dentro do jornalismo

brasileiro

83

:

A criação do “Suplemento Literário” que começou a circular em outubro de 1956, é, dentro da linha de jornalismo austero, seguida pelo jornal, um marco, tanto pela qualidade da diagramação, como pelo alto nível das ilustrações apresentadas. [...] A seção musical do “Suplemento” contou sempre com nomes vinculados aos movimentos de renovação do setor em São Paulo, constituindo em ponto de referência a respeito das novas tendências da composição e da musicologia. A partir de 1958 alternou artigos sobre música com resenhas discográficas abrangentes, que registram de forma completa os lançamentos, e por onde pode-se acompanhar a importância do mercado fonográfico erudito nos anos 50 e 60. (CAVALHEIRO FILHO, 1996, p. 10).

Na fase posterior a 1958, o autor destaca a alta erudição de artigos como os assinados

por Roberto Schnorrenberg, os quais

denotam erudição e atualização bibliográfica, dirigidos a um público especializado, e sem nenhuma preocupação “mercadológica”. Numa época em que inexistiam institutos e cursos de música, exerceram divulgação de alta qualidade, renovando a maneira de escrever sobre música. (ibidem, p. 269).

A partir dos anos 1960, Cavalheiro Filho sustenta que o jornal passa a ampliar a

cobertura jornalística referente à música popular. Além das reportagens, são publicadas

críticas de discos e de shows referentes à Bossa Nova e, posteriormente, aos artistas, como

Vinicius de Moraes e o então iniciante Chico Buarque.

Já no final de sua análise – entre 1965 e 1968 – o autor afirma que

[...] sobressaem os grandes espaços, especialmente no “Suplemento Literário”, aos movimentos de vanguarda, como a entrevista de página inteira com os integrantes do Movimento Música Nova, realizada por Júlio Medaglia, “Música não Música Anti-Música” em abril de 1967, e a análise por Augusto de Campos do Tropicalismo, novo desenvolvimento da música popular brasileira, em “Viva a Bahia-iá-iá!” como autêntica continuação do movimento antropofágico, de Oswald de Andrade, unindo a música de popular à de vanguarda. (ibidem, p. 270).

83 Trata-se de conceituado caderno de cultura semanal editado de 1956 a 1972. O próprio jornal comunicava a seus leitores: “O Estado publicará aos sábados [...] um ‘Suplemento Literário’ com o objetivo de prestar aos leitores mais um serviço, no campo das letras e das artes. [...] Pode-se afirmar que a publicação desempenhará certamente papel importante em nosso meio, inaugurando uma fase de remuneração condigna do trabalho intelectual e obedecendo a um planejamento racional, que exprime um programa.” (ESTADO DE SÃO PAULO

O período observado por Cavalheiro Filho traz uma curiosidade: de 1957 (quando o

rock brasileiro despontou) até 1968 (quando a análise do autor encerra), não foi encontrada

nenhuma passagem comentando esse gênero. Disso se pode interpretar que, ou o pesquisador

optou não analisar esse gênero musical, ou a cobertura jornalística do conceituado jornal

relegou o rock a uma discreta cobertura durante 11 anos.

Ainda sobre o assunto deste item, há contribuições do ensaio A crítica e a autocrítica,

de Enio Squeff, que integra o livro escrito em 1983, O Nacional e o Popular na Cultura

Brasileira - MúsicaO Nacional e o Popular na Cultura Brasileira - Música. Ele traça um

longo histórico a respeito da música clássica no Brasil e detalha as circunstâncias como a

crítica musical se desenvolveu no Brasil, desde o Império até os primórdios da implantação da

televisão.

Resumidamente, será destacada uma passagem do referido ensaio, apesar de envolver

em sua totalidade o enfoque dado à música clássica

84

e à sua relação com a sociedade

brasileira. O ponto que interessa aqui diz respeito à incorporação da música clássica pelos

meios de comunicação de massa, especificamente sobre a televisão:

Refiro-me a tudo que está aí, mas principalmente ao seu corolário: os chamados concertos populares. Em nome de pretensas popularizações, vestiram-se Mozart e Beethoven de roupas aparentemente novas para que os andrajos da música dita popular pudessem encontrar o alvará de que indústria cultural de qualquer maneira necessita. (SQUEFF, 1983, p. 125).

Para o autor, essa atitude fez com que os músicos sinfônicos e também os críticos

fossem seduzidos pela possibilidade de aparecerem na televisão, numa espécie de “demanda

reprimida”, no que diz respeito à questão histórica:

Pelo isolamento a que se submeteram, primeiro pelo desprezo social de sua profissão, a seguir pela incompreensão do sucesso de astros construídos pela indústria, não foram poucos críticos e músicos que se entregaram à música de consumo como única solução. Muitos o fizeram para sobreviver: tudo bem, outros porém, cerraram fileiras em torno da ignorância deliberada de sua própria

84 Por convenção, será adotada a denominação música clássica, já que existe um desacordo de normas, por alguns estudiosos que utilizam a denominação música erudita. A norma utilizada aqui decorre de dois verbetes publicados no Dicionário de termos e expressões da música, de Henrique Autran Dourado, obra usada como referência neste trabalho:

“Música clássica = 1. Música de concerto, basicamente a música chamada ‘séria’, erudita, culta, executada fora do contexto popular ou folclórico. 2. Produção musical do chamado período clássico, que vai aproximadamente de 1750 a 1830. O Classicismo protagonizou a supremacia da música instrumental sobre a vocal, consagrou as regras da forma de sonata, consolidou a sinfonia e o quarteto de cordas, entre outras conquistas, e produziu compositores como Haydn, Mozart, Carl Philip Emmanuel Bach, Johann Christian Bach, Luigi Cherubini e Beethoven”. (DOURADO, 2008, p. 215).

“Erudito = Músico ou música de qualidades eruditas. Genericamente diz-se da música conhecida como clássica”. (ibidem, p. 121).

(in)formação. As sinonímias estabelecidas entre a música puramente artesanal e a outra, calcada num indiscutível virtuosismo e não raro em versos de certo valor, levaram muitos a confundir os termos da música em si mesma. (SQUEFF, 1983, p. 125).

Para Squeff, essa questão tem a ver com o desenvolvimento brasileiro, que vai da

miséria absoluta à riqueza, em que a indústria cultural não entende a complexidade cultural do

país. Nesse caso, ele cita a da televisão, que não promoveu o incentivo verdadeiro à correta

inclusão da música clássica. E nesse processo, a crítica musical teria se omitiu em não debater

o papel da música clássica na cultura musical brasileira:

A crítica musical, sem dúvida, cedeu terreno exatamente por isso: não sentiu o alvará da sociedade para ampliar o debate da música de concerto nos termos em que talvez a sociedade devesse ser atingida. Mas sentiu-se também compelida a encolher-se pela avalanche da indústria cultural que restringiu os debates de músicos de concerto mais famosos (com raras e honrosas exceções sejam aqueles que se comprazem em repetir que a música de Beethoven é tão boa quanto a última canção de sucesso; nem todos os críticos os acompanham nos equívocos desta opinião; mas existem compositores e maestros que compartilham destas premissas. (ibidem, p. 126).