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2.3 O Campo Hermenêutico

1) A problemática

Não obstante a importância que se reconhece às contribuições posteriores de Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, cabe sublinhar que foi Dilthey o principal parceiro empreendimento teórico de Clifford Geertz, posto haver sido o criador do correlato metodológico que permitiu ao autor americano consolidar a Antropologia Interpretativa: o método hermenêutico. Por conseguinte não se pode verdadeiramente entender Geertz - e entender o que é descrição densa - sem o cuidado preliminar de identificar as categorias epistemológicas formuladas pelo filosofo alemão incorporadas à teoria do autor americano. A Hermenêutica tem sido alvo de inúmeras e persistentes controvérsias cujo conjunto exprime a desconfiança que seu fundamento “subjetivo” inspira aos partidários da “objetividade”, manifesta no que parece ser uma ignorância deliberada (simulada?) dos seus princípios: algo como se todos os conhecessem mas, por conveniências, fingissem não os conhecer.

Além disso, a imagem (estereótipo) dos hermenêutas, caminhantes solitários, “flâneurs”, transbordantes de subjetividade e empatia, evidentemente não condiz com a imagem de um cientista, sólido, neutro, resistente à ação melíflua, persuasória, a tão perigosa quanto capaz de alterar a percepção da realidade, constituída pelo inconternável obstáculo epistemológico das Ciências Humanas: a duplicação sujeito-objeto a rigor mesmo os cientistas idealmente predicados não estão livres de sucumbir, mais cedo ou mais tarde, ao seu sortilégio: compare-se, por exemplo, o Foucault dos primeiros tempos, o das “Palavras e as

Coisas”, estruturalista, asséptico, evoluindo no universo sereno, previsível das “epistemês”, com o Foucault dos últimos tempos, o da História da Sexualidade, individualista, “quase” auto-biográfico. (DOSSE, F. 1992).

A problemática é antiga, remonta aos primórdios da filosofia, ao conceito de THEKNÉ desenvolvido por Aristoteles para referir os fenômenos que indiferentemente podem ser ou não, assim considerados os “fenômenos não necessários” visto não ocorrerem espontaneamente na Natureza: ou seja, os fenômenos humanos ou culturais.

Séculos mais tarde, solitário, à contra-corrente do cartesianismo, Vico foi o primeiro a perceber que a “subjetividade” embutida nos fenômenos e/ou objetos ditos não necessários ao invés de constituir um obstáculo, constituía, a rigor, a condição sine qua non do seu conhecimento.

Com efeito, de acordo com o autor da “Ciência Nova”, se é verdade que o carpinteiro obrigatoriamente precede o armário, e que o sacerdote obrigatoriamente precede o ritual logo o homem apenas “sabe” o que é uma árvore ou um carneiro, porém “objetivamente” conhece o que é um armário ou um ritual à condição de ser seu criador, seu artífice: Verum ipsum factum, o verdadeiro é idêntico ao feito. Verum et factum convertuntur, o verdadeiro e o feito são conversíveis. (VICO, G. 1980, 1971).

Além disso, o conhecimento per causas que é precisamente aquele que possui o criador sobre suas criaturas, permiti-lhe distinguir com acuidade a essência do atributo, pois se na consciência do carpinteiro um armário será sempre um armário, nem por isso uma credenza renascentista entalhada com figuras sacras, um buffet Império encimado pelas águias napoleônicas, e os cubos revestidos de fórmica característicos da funcionalidade das cozinhas modernas significam, a mesma coisa. Uma vez que embora todos tenham sido fabricados com o propósito de guardar, proteger, armazenar objetos valorizados por seus proprietários, há uma diferença marcante entre um objeto sacro, um objeto suntuário, e um objeto utilitário. Por conseguinte, no universo dos objetos não-necessários o atributo pode paradoxalmente prevalecer sobre a essência, visto exprimir a circunstância - sempre relativa, variável, temporária - agregada ao objeto e da qual depende, em última instância, o acesso ao seu real significado, isto é, ao seu conhecimento.

Outrossim, não obstante a estabilidade das definições gerais correspondentes a cada espécie de objetos não - necessários - no caso, o armário é uma peça de mobiliário destinada

a armazenar coisas - os diferentes atributos capazes de modificar o seu significado derivam da “intencionalidade” do seu artífice e/ou comanditário, reflexa da circunstancias multideterminadas e, no exemplo, materializada pela presença, ausência ou tipo do ornamento acrescentado ao móvel básico correspondente à sua definição geral.

À vista de um par de águias douradas um “Baruya” pode, talvez, pensar estar diante de um totem; pode achá-las bonitas ou feias, toscas ou finamente esculpidas; porém, de forma alguma, saberá estar diante de um objeto suntuário intencionalmente trabalhado para “significar” o período, a grandeza, e o poderio de império napoleônico, como o sabiam, na época, seus artífices.

Por conseguinte, convencido da “intencionalidade” do sujeito à origem dos diversos atributos capazes de prevalecer sobre o significado geral de um objeto não necessário, Vico distinguiria entre o conhecimento do VERUM, cujo conteúdo não varia conforme as circunstâncias, como é a Matemática, e o conhecimento do CERTUM, cujo conteúdo varia conforme a circunstância como é o caso do significado de armários encimados por águias napoleônicas. Ao primeiro o filósofo italiano chamaria Ciência, ao segundo chamaria Compreensão, sem, contudo interpor entre ambos um juízo de valor que permitiria hierarquizá-los, vale dizer reconhecer superioridade de um sobre o outro.

Fato é que ao falecer em 1744, Vico deixava enobrecidas as Ciências Humanas antes dele, segundo Descartes, disciplinas apenas conjeturais plebéias, risíveis, pois comparáveis ao que “sobre Roma alcançaria saber uma criadinha de Cícero”. Graças ao engenho do filósofo napolitano, Dilthey encontraria desbravado, limpo, o terreno sobre o qual edificaria sua obra cuja solidez proporcionaria o Clifford Geertz, em 1967, enunciar seu conceito de descrição densa.

Pode-se dizer que Dilthey foi o herdeiro natural de Vico, e o herdeiro presuntivo de Schleirmacher, esse desaparecido em 1834 sem haver concluído o seu projeto de desenvolver uma Hermenêutica Geral, aplicável a todos os campos do conhecimento12, isto é, capaz de assimilar, fundir em uma única teoria as Hermenêuticas especializadas - da História, do Direito, da Literatura - então em vigor.

12 Savingny, Ranke, Humboldt destacam-se entre os pensadores que também se dedicaram, naquele período, à

questão hermenêutica. Contudo, expor suas respectivas contribuições excederia o propósito desse capítulo: que é a defesa do marco teórico escolhido para orientar este projeto de pesquisa.

É curioso observar que, apesar de haver desafiado ao longo do tempo um elenco numeroso de inteligências superiores, a problemática de Hermenêutica decompõe-se em três questões de desconcertante simplicidade: 1º) O que é compreender?; 2º) o que acontece quando alguém afirma haver compreendido alguma coisa?; 3º) Como obter uma compreensão válida?

Ora, a grandeza hoje reconhecida à obra de Dilthey advém do fato de que ele, insista- se, no lastro de Vico, vislumbrou a possibilidade de transformar essas questões, em um método de investigação cientifica capaz de atender à demanda sempre crescente de compreensão dos fenômenos humanos cujo conjunto exprimiria, a seu juízo, a variedade infinita, a exuberância da própria vida. Na medida em que é incomparavelmente mais fácil compreender a ação da gravidade cujas variações são matematicamente previsíveis do que, por exemplo, compreender a importância da virilidade entre os BARUYA.

Muito cedo Dilthey percebeu que as categorias analíticas utilizadas pelas Ciências naturais - em geral metodologicamente equiparáveis a simples parâmetros, e, além disso justificadamente estáticas em virtude das regularidades constatáveis na classe de fenômenos que se lhes compete investigar - jamais alcançariam extrair conhecimento objetivamente válido dos fatos humanos cuja natureza repele, com força, as generalizações.

Convencido da impossibilidade de transferir o método das Ciências Naturais para as Ciências Humanas - as quais ele expressivamente chamava de “Ciências do Espírito - e orientado pela afirmação de Scheleimacher para quem a Hermenêutica seria a “arte de ouvir” Dilthey descobriu, sob a forma de uma outra pergunta, a peça que lhe faltava para solucionar o suposto enigma hermenêutico: quem é o sujeito do Ato da Compreensão?

A essa altura, Dilthey já estaria a um triz de denunciar o que considerava ser a “artificialidade” do Sujeito cognoscente nos moldes propostos por Locke, Hume e Kant visto, no seu entender, “não lhe correr nas veias sangue verdadeiro”. E, com efeito, o sujeito de qualquer ato de compreensão é o homem real e, portanto, dotado de “cognição, sentimento e vontade”, atributos necessariamente sensíveis, reagentes à temporalidade ou seja, às circunstancias exteriores influentes sobre o ator no momento de consumar o ato de compreensão.

Não importa o quão sagaz, erudito, “neutralizado” pela prática científica ou pelo exercício filosófico o “sujeito cognoscente” possa ser, pois na prática ele será igual a qualquer um de nos, na medida em que somos todos efetivamente capazes de extrair significado dos fenômenos humanos cuja sucessão define, afinal, nossa existência. Sob esse aspecto, entendida como base da vida em sociedade, a compreensão é universal, objetivamente verificável entre os Dogon, os Baruya, e os filósofos do historicismo alemão. (GEERTZ, C. 2001, SOUZA SANTOS, B. 2002, MAFFESOLI, M. 1988).

A essência de compreensão é, por conseguinte a comunicação (leia-se, a intersubjetividade) a qual só se consuma a partir de um substrato “material”13 genericamente chamado “linguagem”: - o texto, o gesto, o objeto, a ênfase, a reticência, a repulsa visíveis na fisionomia do interlocutor. Muito embora um dia a gramática generativa de Chomsky possa vir a ser irrefutavelmente demonstrada, por enquanto, para os hermeneutas a linguagem permanece viva, pulsante, indomável, encarnada nos homens reais e, em conseqüência, sujeita a suas singularidades e às circunstâncias infinitamente variadas nas quais essas se exprimem.

Outrossim, observe-se, para Dilthey as linguagens se equivalem. Os povos ágrafos comunicar-se-iam tão bem quanto os povos bíblicos. Visto um ritual de purificação entre os BARUYA ser um texto, uma teia de significados tão real, tão concreta quanto o seria, para um exegeta, uma epístola de São Paulo. Os hermeneutas de orientação diltheyneana não reconhecem superioridade à linguagem escrita.

A rigor, dependendo de quem seja o interlocutor, mesmo os objetos inertes “falam” da perspectiva em hoje, entre os cristãos, a presença silenciosa de um pinheiro ornamentado significa a proximidade ou o dia de Natal, assim como a batina significa o padre, o jaleco o doutor, a conta de miçanga o fiel do culto afro, etc. Aqui desponta outra controvérsia (segundo a crítica, outra contradição) da teoria hermenêutica, também derivada de participação do interprete na interpretação: não há compreensão sem pressuposto.

Ou seja, entre quaisquer interlocutores haveria, sempre, um capital comum de noções amealhado antes do seu encontro na realidade o qual lhes garantiria, a priori, compreender-se

13 Na obra de Dilthey a “objetificação da linguagem” é, por assim dizer, o correlato empírico da interpretação.

Os homens percebem sensorialmente os sinais antes de interpreta-los: primeiro se vê, se experimenta tactilmente o livro, e só depois se entende o significado do texto que ele contém. Sem a fala, oral ou escrita, audível ou visível, em suma, sem o encontro dos interlocutores, não haveria lógica, moral ou poesia.

entre si. Algo como se aquilo que devesse ser compreendido fosse, a rigor, dedutível desse conhecimento “presumido” comum aos interlocutores. Ora, como todo homem é pontecialmente capaz de entender o outro, nesse caso, esse repertório de noções “universalmente” compartilhados demonstraria a existência dos invariáveis do espírito humano postuladas pelo estruturalismo, a qual esvaziaria, de um só golpe, a teoria hermenêutica. Ocorre que, sem jogo algum de palavras, essa assertiva não possui sentido literal: requer interpretação.

Para horror dos cientistas duros, Schleirmacher, um dos mentores intelectuais de Dilthey, menciona textualmente a palavra “adivinhação” para referir o momento crucial que precede a compreensão. No lastro dos filósofos alemães, mais tarde, o principal teórico da Hermenêutica norte-americano, Hirsch, chegará a afirmar que “a interpretação no fundo consiste na crítica das “adivinhações” do intérprete. Na realidade o que todos quiseram dizer é que a compreensão não é um ato exclusivamente cognitivo: pressupõe além da cognição, sentimento e vontade. Repita-se, atributos sensíveis às circunstâncias existenciais do Sujeito cognoscente.

Ora, se naquela época, marcada pela popularidade das teorias de longo alcance como o marxismo, o positivismo, e/ou o evolucionismo cujo prestígio criava expectativas sempre crescentes em torno do potencial de generalização das Ciências, já não era simples argumentar em favor do método indutivo, em favor da ascensão do particular ao geral, quanto mais em favor de idéia de se atribuir à intuição, hoje dir-se-ia à empatia, um papel ativo no processo de cognição.

Como reconhecer a um sentimento o poder de evocação capaz de despertar no intérprete o impulso analógico, comparativo que lhe proporcionará extrair da realidade os dados primários, a matéria prima, da futura interpretação, à exemplo do que fez Geertz ao descrever Sefrouí, no Marrocos, como “um oeste de filme americano sem bares e sem cow- boy”? Fosse Geertz brasileiro, e não americano, provavelmente evocaria outra paisagem, outra atmosfera, e, nem por isso, observe-se do ponto de visto hermenêutico, haveria perdido a chance de descobrir o significado de “NISBA” entre os sefrouítas.

E é esse precisamente o sentido da exortação de Dilthey “ regressar à própria vida”, ou seja aceitar que os pressupostos da compreensão estão na consciência individual do intérprete e não nas ignotas esferas jamais vislumbradas por homem algum de carne e osso, onde jazem, acreditam alguns, estáticas, perenes, as estruturas universais do espírito humano.

Como se viu, para o filósofo alemão “regressar à própria vida” não possuíu, sem remotamente, uma conotação idealista, ou, pior, romântica. Ao inverso, constituiu desde o início uma precaução, uma advertência contra o perigo de se abstrair a ponto de se eliminar das Ciências, mesmo as do Espírito, a base empírica sem a qual elas se tornariam, aí sim, simples pontos de vista.

Outrossim, com o fim de destacar a coerência do modelo teórico multiautoral adotado nessa pesquisa, antes de se concluir essa pretendida defesa da hermenêutica, é indispensável assinalar a marcante afinidade entre a fórmula diltheyneana e o “raciovitalismo” hoje defendido por Michel Maffesoli cuja teoria pós-moderna constituirá, adiante-se, um dos principais referenciais da interpretação dos dados recolhidos em campo.

Com efeito, no elenco de teóricos da pós-modernidade Michel Maffesoli sobressaí como um autor “quase” heterodoxo na justa medida em que apesar do rigor exigível pela Ciência reconhece a precedência do “vivido” sobre o “pensado” a ponto de postular o que ele chama de “empirismo especulativo” cujo sentido não é outro senão o de manter a teoria concreta. O campo epistemológico do autor francês é povoado por homens de carne e osso aos quais ele concede o direito de “NÃO” se encolherem as medidas sempre apertadas de uma teoria pré-estabelecida. Ao mesmo propósito convém antecipar aqui as afinidades do pensamento de Michel Maffesoli com o de Boaventura Santos, outro teórico da pós- modernidade que prescreve à teoria também indispensável, a seu juízo “familiaridade com a vida”.

Dentro da melhor tradição da sociologia “vitalista” de Simmel tributária da obra de Dilthey, esse dois teóricos do concreto ainda auspiciosamente coincidem no viés com o qual criticam, diga-se, com aspereza, a Razão Ocidental. Com efeito o “Sul” definido por Boaventura como a forma de sofrimento causado pelo capitalismo ocidental, a qual incluí o jugo do “privilégio epistemológico” concedido ao Norte, desemboca na racionalidade definida como “type Sud” por Maffesoli. No contexto dessa pesquisa o Sul do autor português assume o papel do sujeito epistemológico “type Sud” do autor francês14.

14 “Sul” e “Type Sul” tem tamanha importância respectivamente na obra de Boaventura e de Maffesoli que não

se pode entende-los na amplitude com a qual figuram propostas pelos dois autores se destacadas do conjunto de suas teorias. Por esse motivo registro que embora eu os utilizem com freqüência não fui capaz de transferi-los para o meu trabalho intactos, isto é, com a densidade de significação que possuem no texto original de seus criadores capazes de indiferentemente emprega-los, ora com premissa ora como conclusão de seus argumentos.

Porém à semelhança do que aconteceu com o estruturalismo, não há, ainda, “a” Hermenêutica. Há Hermenêutica - S facetadas segundo as convicções e as prioridades teóricas de seus autores, e, basicamente, discerníveis entre si em função do grau de afastamento da realidade admissível por cada uma delas.

De um lado, há os fenomenólogos do evento, como Gadamer, para os quais a hermenêutica limitar-se-ia ao ato da compreensão em si, visto constituir um fenômeno dramaticamente histórico e, em conseqüência, avesso à disciplina, à rigidez das categorias epistemológicas capazes de avalizar a transformação do seu conteúdo em conhecimento objetivamente válido. Examinados sob esse aspecto, os fenomenólogos do evento representariam, perante o conjunto multi-autoral do paradigma, o que Jacques Derrida representou para o estruturalismo: os ultra-hermeneutas. Diga-se, tão alheios à realidade quanto os seus antagonistas, visto sub-repticiamente postularem uma concepção da Hermenêutica cujo sentido, na prática, reduz o método à arbitragem entre interpretações rivais porém, em tese, igualmente plausíveis.

Do outro lado perfilam-se os hermeneutas como Dilthey convictos de que a compreensão é capaz, apesar de reconhecida influência do intérprete sobre a interpretação, de revelar a alteridade cujo sentido seria equiparável ao conhecimento objetivo do fenômeno sob investigação.

2) A experiência

A Experiência:

“Aquilo que na cadeia do tempo forma uma unidade no presente porque tem um significado unitário, é a menor entidade a que podemos chamar experiência. Poderemos considerar experiência cada unidade determinada das partes da vida ligada por um sentido comum – mesmo quando as várias partes se separam umas das outras por eventos que as interrompem”. (Dilthey in Castro ob. cit. pg. 122) A experiência que um indivíduo possa ter do amor, da morte, do exílio, ou da tempestade e da primavera não extrai sua unidade de sentido de um único episódio, mas, sim, de uma sucessão de episódios distanciados no tempo e, às vezes, também no espaço. A experiência do exílio que durante toda a vida afligiu Edward Saïd era, de fato, um somatório “individual” de episódios dispersos no tempo e na geografia porém existencialmente conexos,

relacionados entre si, fundidos no significado de exílio na memória do protagonista na medida em que toda a experiência é intrinsecamente particular, temporal e histórica.

A rigor, segundo Dilthey, a experiência resultaria do contacto imediato e permanente do indivíduo com a vida - “ experiência imediatamente vivida - razão pela qual seu conteúdo não corresponderia a um ato reflexivo de consciência visto ser, sob essa ótica, anterior à separação sujeito-objeto. No momento em que ocorre a experiência não tem consciência de si: - acontece simplesmente.

Equivale à matéria bruta, pré-reflexiva da compreensão, nítida por exemplo, na descrição do crepúsculo que figura nas páginas iniciais de “Tristes Trópicos”, ou, no parágrafo inaugural dos Argonautas do Pacífico Ocidental. Nas duas passagens não estavam presentes, ainda, os antropólogos, mas dois homens, dois europeus condicionados por suas respectivas biografias reagindo instintivamente ao isolamento, à solidão, e às incertezas à sua espera ali antecipadas pela originalidade da paisagem, para eles desconhecida. Contudo, a intensidade existencial daqueles momentos influiria, no futuro, sobre o trabalho dos dois autores. Como já foi dito, não fosse Leví-Strauss os trópicos jamais seriam, talvez, tristes. Não fosse Malinowski os antropólogos jamais teriam, talvez, a imagem que têm hoje, espécie de heróis, obstinados e errantes, marcados por uma metáfora do “sofrimento” - o barquinho se afastando - tão improvável, e tão curiosamente associada à aplicação (em tese asséptica) de um método cientifico, a observação direta.

3) A expressão:

O segundo termo da fórmula hermenêutica de Dilthey “expressão” (Ausdruck) é, sem dúvida o mais difícil de ser esclarecido, uma vez destacado da seqüência de argumentos do autor.

Sob uma ótica apenas formal, metodológica, e a vista do significado peculiar que Dilthey atribuía a “experiência”, a “expressão” corresponderia a uma categoria epistemológica capaz de absorver, em primeira instância, reflexivamente a experiência.

Por conseguinte, no vocabulário diltheyneano “expressão” não possui o significado primário da palavra, explícito quando alguém diz ou faz algo para “expressar” um sentimento. Na realidade, de acordo com Dilthey, a expressão é a um tempo a objectivização da

experiência e a categoria analítica que permite abordá-la reflexivamente. Vai de si, nesse caso, a objectivização da experiência consuma (ou instaura) a separação entre o sujeito e o objeto manifesta no fato de que, ao contrário da experiência, a expressão tem consciência de si.

Na obra de Geertz, a descrição de Sefroui e dos sefrouítas que antecede a “compreensão” do significado de NISBA, conceito chave, decodificador de Cultura local,