• Nenhum resultado encontrado

Embora à origem de dinheiro sólido, segundo Henri Pirenne, a Hansa Germânica jamais desfrutou, no Norte da Europa, de situação comparável à de suas congêneres italianas, visto negociar com mercadoria de qualidade inferior, em virtude de não ter acesso ao Oriente suntuário - bizantino - na época fornecedor de suas concorrentes. Já naquele tempo os negociantes alemães enriqueciam à custa da espécie de mercadoria que os franceses

considerados árbitros do bom gosto, e hoje principais vítimas da indústria da “contrefaçon” que floresce no 3º Mundo, onde a mão-de-obra é servilmente barata, chamam, com desdém, “bas de gamme”. Ou seja, exatamente a espécie de mercadoria vendida na Feira da Sulanca, versão a céu aberto e sem mar da antiga Lübeck.

De pronto, como na cidade hanseática, na Feira da Sulanca ainda não existe o crédito, a letra descontável em outra praça. Os pagamentos são feitos à vista e em espécie. Raríssimos comerciantes aceitam cheques e, ainda mais raros, cheques de outras praças (razão pela qual os ônibus dos sacoleiros são freqüentemente assaltados na ida pelo dinheiro vivo e, na volta, pela mercadoria fácil de revender).

Na realidade, como se disse, a feira sobrevive do comércio de mercadoria produzida em fábricas improvisadas e clandestinas cujos donos estão em permanente conflito com o Fisco e com o Ministério do Trabalho posto alegarem ser impossível -sob o risco de falência - repassar à mercadoria o custo dos impostos e dos recolhimentos trabalhistas obrigatórios: ou seja, o regime de trabalho é semi-servil, ganha-se pela produção, e mais nada. Doentes são imediatamente substituídos por sadios, licença maternidade não é assunto que se fale, etc., e a Justiça do Trabalho tem pouca chance quando os patrões contam, como em Toritama, com a cumplicidade dos empregados, que preferem se submeter a esse sistema a perder o que chamam, hiperbolicamente, de “emprego”.

Além disso, é preciso registrar que, se os negociantes da Sulanca não vendem, pelas mesmas causas apontadas, também não compram a crédito. Repita-se, na economia informal em Pernambuco - economia “de tabuleiro”-, não há ainda cheques ou duplicatas (embora não se possa generalizar a afirmação sem o cuidado de ressalvar que é, para um estranho, difícil descobrir como os fabricantes pagam aos seus fornecedores de matéria-prima e equipamento). Na Sulanca, o dinheiro é vivo, como se diz por lá, “dinheiro bulindo”.

O crédito surge - sob a forma de usura, de remuneração do capital - quando a mercadoria chega às mãos do consumidor através do sacoleiro que, tanto pode distribuí-las como mascate, de porta em porta, quanto revendê-las diretamente, ou ainda por intermédio de terceiros, nos tabuleiros e barracas espalhadas em todos os municípios pernambucanos, inclusive no Recife, onde se aglomeram - às dezenas - nos arredores do Mercado São José.

Contudo o mais interessante são as razões alegadas em favor do direito publicamente reconhecido ao sacoleiros de triplicar, e até de quadruplicar seu capital, por enquanto modesto, em noventa dias. Com efeito, além dos ônus do deslocamento os quais incluem, além dos assaltos, tentativas de extorsão da polícia rodoviária autorizada a apreender, em nome da Receita Federal, mercadoria sem nota fiscal, os sacoleiros são os únicos que efetivamente correm o tríplice risco mencionado por Henri Perenne a propósito dos mercadores da Liga hanseática: “dammum emergens”, “lucrum cessans” e “periculum sortis” respectivamente “perda eventual”, “lucro cessante” e “risco de capital”. E assim a título de recompensá-los por arriscarem a vida e dinheiro se lhes reconhece unanimente como se reconhecia aos burgueses de outrora, o direito de vender por 10 reais divididos em três vezes a calcinha de lycra que lhes custou, na Sulanca, setenta centavos. (PIRENNE, H. 1968). Em 2006 a Feira de Sulanca constitui ponto privilegiado de observação de um processo perempto há após sociedades modernas, que vem a ser o da acumulação primitiva de capital.

A Feira da Sulanca interessa não só pela rusticidade, medieval, de suas regras comerciais, como pela oportunidade de verificar o quanto, mesmo em esferas modestas, o lucro é aliciante, e o quanto o gênio de Marx não foi suficiente para o impedir de acreditar na sua própria utopia. Os sacoleiros da Sulanca são homens “modernos” que pensam diferente da maioria dos seus incautos clientes - com freqüência seus parentes e seus vizinhos - a quem exploram, por enquanto, vendendo-lhes por dez o que compraram por um. Já são, na mentalidade, burgueses comparáveis aos primorosamente descritos, conforme a opinião dos críticos marxistas Gyorgy Luckáks e Lucien Goldmann, por Balzac, autor capaz de mostrar, como nenhum outro, as perfídias ocultas no universo, à superfície inofensivo, endomingado e provinciano, das primeiras gerações da burguesia mercantil. Com sorte, se os mercadores da Sulanca perseverarem, se entenderem cedo que apurado não é lucro, se resistirem ao consumo, e se escaparem dos assaltos e da polícia rodoviária que ainda podem quebrá-los furtando-lhes o indispensável e duramente amealhado capital de giro, em alguns anos terão deixado de ser sacoleiros: serão comerciantes estabelecidos com razão social e empregados.

Haja vista sua extração social, hoje equiparável à de sua clientela, terão deixado a periferia e estarão no centro. Nessa altura, os mais bem sucedidos entre eles irão ao Shopping Recife comprar como sinais exteriores de riqueza, os originais dos jeans falsificados em Toritama cuja posse constituí um rito de passagem, indicio seguro de mudança de Status. Ao contrário do que pode parecer a quem os vê hoje, cedo no mercado, consumindo pantagruélicos pratos de cabidela ou charque com macaxeira e tirando de dentro das meias ou da roupa de baixo os maços de notas vivas - enrolados como charutos com um elástico - até agora os sacoleiros da Sulanca foram os únicos encontrados a quem se poderia atribuir, segundo a classificação de Castell’s “uma identidade de projeto”: se pudessem, mudariam de “Nordeste”, pois o Nordeste agrário, rural, sertanejo não serve como cenário, a burgueses em ascensão.

________ x _________