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São Severino dos Ramos foi, por assim dizer, meu primeiro contacto com a Zona da Mata que eu pretendo percorrer num círculo que vai da Paudalho no Norte, até Aliança no Sul.

Paudalho pode ser descrita, a meu ver, como a ilustração mais próxima do Recife da obra de Gilberto Freyre: a cidade cheira a cana. Há casarões, sobrados, Igrejas, altares ricos, fartura de vestígios da civilização açucareira e hoje que é domingo provas residuais de sua opulência passada, como as observadas no fausto da procissão e quermesse na Ermida de Nossa Senhora do Desterro, distante quinze minutos de carro do centro urbano do município.

Contrariando a tradição das procissões que costumavam, ser no passado, vespertinas, são nove da manhã e o séquito enfileirado na esplanada do edifício já aguarda a saída do andor com a imagem da Nossa Senhora, no momento ainda suspenso por andaimes modesta mas delicadamente ornamentados em frente à capela-mor, enquanto os fiéis ouvem a Homilia da missa que antecede o préstito, celebrada por um padre, esse ao inverso do andor, luxuosamente paramentado de alva, casula, cíngulo dourado e “capa de asperges” vestimenta suntuária hoje raramente usada por sacerdotes católicos, de cetim branco. Do lado de fora, contidas pelos pais, há crianças à espera do batismo comunitário que será ministrado após a missa, e há meninos soltos, correndo às dezenas entre os brinquedos armados por um desses “Tivolis-Parks” itinerantes que sobrevivem, no interior, de festas desse tipo.

Na realidade a procissão do Desterro foi, sem que eu ainda o soubesse, uma amostra em escala reduzida da feira dominical de São Severino dos Ramos, localizado no distrito de Paudalho distante 28 km do centro, onde está situado a Igreja construída no século XIX consagrada ao Santo cuja popularidade e devoção justificam, no Nordeste, os milhares de “Biús” - apelido de criança, meninos e meninas batizadas, em troca de uma graça alcançada ou solicitada, com o nome do Santo - e a transformação, doravante compreensível, de um substantivo próprio em adjetivo específico das vicissitudes características da vida nordestina, celebrizado pelo poema de João Cabral de Melo, “Vida e Morte Severina”.

Até então, a pesquisa transcorreu serenamente, previsivelmente, e em momento algum, antes, eu fui surpreendida por uma situação cujo panorama não pudesse abarcar, de uma vez, com meus olhos. Pois, a despeito de saber o que é no Brasil um local de romaria, o que faz, claro, enorme diferença, achei São Severino dos Ramos um panóptico comparável, pela grandeza, às cerimônias fúnebres entre os Dogon cuja afluência na época obrigou Marcel Griaule a organizar a força-tarefa etnográfica, equivalente a uma equipe de cinegrafistas encarregados de, sob a supervisão de seu chefe, registrar individualmente partes de cerimônia para garantir, no futuro, uma reconstituição fidedigna do seu todo.

Pois, com talvez até dois milhares de pessoas circulando na esplanada de Igreja, domingo às onze da manhã, horário de última missa, São Severino é assim, panóptica, atordoante. Impossível para alguém sozinho observar tudo o que acontece em volta, o sagrado e o profano multiplicados e simultâneos: - a prece e a festa, os penitentes e os dançarinos, a aspersão de água benta e o pregão da cerveja anunciada, geladinha, a um real e cinqüenta.

Há profusão de ônibus fretados por romeiros vindos de outros municípios os quais afluem ao adro da Igreja aos magotes munidos de câmara, como turistas, a exemplo dos que acabam de chegar de Moreno uniformizados como colegiais e em cujas camisetas se lê a inscrição “Terceira Idade, Melhor Idade”. Há famílias, há casais, há adultos solitários, há bandos de meninos soltos. Há senhoras de véu, rosário e missal, há mocinhas de mini-blusa e shorts, há crianças vestidas de anjo. Há homens com o colarinho das camisas austeramente abotoados, e há homens de bermuda tão à vontade, tão descompostos como se estivessem indo à praia. Há chapéus de feltro, de palha, de couro. Há bonés de agremiações esportivas do Estado, de sociedades beneficentes, de irmandades, e ainda os de lona com aba ornamentada com a reprodução da bandeira de Pernambuco. Há cabelos alisados, encrespados, trançados com lã ou fio sintético à moda dos “rastafaris”, descoloridos como os louros escandinavos, e até cabelos tingidos de fulgurantes tons de laranja. Tenho a impressão, há de tudo.

Ao lado da Igreja, rente à linha férrea da Mata Norte hoje desativada naquele trecho, proliferam as barracas de feira e os bares, esses a essa altura já repletos de peregrinos que disputam mesa, e a vez de escolher a música nas radiolas de ficha instaladas nos restaurantes rústicos ou improvisados ao ar livre, sonoros, estridentes, animadíssimos não se sabe se pelos favores concedidos pelo santo ou se, mais provável, pelo efeito da cerveja.

A feira é todo um espetáculo à parte, apinhada de gente que negocia, ávida, chaveiro, vela, ex-voto, medalhinhas, gravuras com a imagem do Santo, caixas de rojões com a efígie de São João Batista menino carregando o carneirinho, quadros do Sagrado Coração de Jesus de diversos tamanhos realisticamente expostos, sob o vidro, em relevo anatômico vermelho vivo, arranjos de flores secas, cones multicoloridos de até 60cm recheados de biscoito de goma, “casadinho” e amendoim, roletes de cana, jaca vendida a granel em saquinhos plásticos, talhadas de melancia e abacaxi, mungunzá, paçoca, carne de sol, tamboretes, cabideiros, miniaturas de mobiliário, toalhas de fibra de coco imitando bordado de “crivo”, bonecas de pano, CD’s piratas, porta retratos de gesso, relógios. As mercadorias não são caras, estão ao alcance do público que compra, nota-se, com prazer: - é raro ver alguém com as mãos vazias, cada um leva consigo uma lembrancinha, uma prova, da visita feita ao Santo Milagreiro.

Na fila do sanitário público o clima é de intimidade, confraternização. As mulheres conversam, contam a vida, relatam as graças alcançadas e esperadas, recuperação de maridos infiéis, parentes curados de doença e de vício, emprego, casa própria, “aposentadoria”, e as que dispõem oferecem às outras comodidades como sabonete, e tiras de papel higiênico.

Começo as entrevistas. Para meu constragimento, pela primeira vez alguém visivelmente se emociona - chora - ao gravar a resposta, D. Delmira, 48 anos, a qual apesar de residir em Olinda freqüenta semanalmente a feira de São Severino cujo público “lhe tira do sufoco” comprando os biscoitinhos de goma que ela fabrica. Com os braços levantados como se quisesse, com o gesto, hiperbolizar o conteúdo da resposta, afirma-me orgulhar-se imensamente de ser nordestina. Ao lado, um senhor de meia idade como ela, vendendo em saquinhos de plástico reticulado seis unidades de laranja cravo a um real, instantaneamente aprova com um abraço solidário a opinião da companheira: ele também orgulha-se de ser nordestino.

Meu terceiro entrevistado é um camelô que transporta sua mercadoria miúda em um tabuleiro suspenso por tiras de couro atados ao seu pescoço: vende frasquinhos de líquidos e pós-variados os quais curam, se utilizados conforme suas instruções, tosse, inchaço, coceira, cólicas, impotência, acalmam, combatem a insônia, eliminam piolhos. Explico-lhe o propósito da entrevista, previno-lhe que vou ligar o gravador, e antes que eu tivesse tempo de completar a pergunta - o que significa para o senhor ser nordestino - responde-me de chofre, lacônico e ríspido, algo como se eu lhe tivesse perguntado o obvio: “Orgulho”.

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O tema da minha pesquisa é a concepção (representação) do que é ser nordestino entre as camadas populares de Pernambuco e, por conseguinte, disponho de milhões de informantes igualmente habilitados a me esclarecer sobre o assunto. No meu caso a etnografia não envolve segredo, resistência, permissão de acesso a um universo interdito que, por direito, não seria o meu. Não demanda a habilidade e a persistência de um Marcel Griaule para extrair, de Ogotommêli, após anos de espera, os segredos da complexa cosmogonia Dogon.

Para começar, eu e os entrevistados possuímos a mesma língua materna, o português, cujo domínio comum é um facilitador indiscutível da pesquisa visto eu ser capaz, no mínimo em tese, de apreender as nuances, preencher as entrelinhas do que eles me dizem. Depois, mesmo que as entrevistados mintam, dissimulem, afirmem o inverso daquilo que sentem, as respostas valem, isto é, possuem o valor de unidades hermenêuticas legitimas à condição de base empírica da experiência, no sentido diltheyneano, da interpretação. Haja vista meu “parti-pris” teórico não há porque questionar a sinceridade dos entrevistados e/ou empreender algo tão obscuro e discutível quanto o seria, nas circunstâncias, “psico-analisar” suas respostas. A abordagem qualitativa própria da pesquisa antropológica cuja escala de observação é, por definição, modesta, não se confunde com a adição mecânica de casos individuais. Além disso, também em virtude de minha opção teórica, não me é possível reduzir estruturalisticamente as respostas aos seus textos, literalizá-las, despojando-as gradualmente de significado com o fim de as encolher às dimensões necessariamente rígidas e estreitas de um fundamento analítico, seja o das estruturas inconscientes de Lévi-Strauss, seja o da gramática universal de Chomski, seja, ainda, o da intersubjetividade anti-predicativa e pré-categorial da fenomenologia.

A rigor, a proposta hermenêutica exclui qualquer idéia associável a imutabilidade, essência, visto lidar, mesmo na Antropologia, com idéias dedutíveis da relação do sujeito com as palavras que emprega, no sentido claro em que “Nordeste” não tem no vocabulário de um paulista o mesmo significado com o qual figura no vocabulário de um nordestino.

Se, no Sertão, a identidade conotada positivamente parece servir aos nordestinos de “escora” para suportar individualmente o sofrimento implícito no seu quotidiano áspero, preenchido quase que só pela dificuldade de prover sua frugal substância, em São Severino, muito embora a identidade continue a inspirar orgulho, o que era escora transforma-se em

disfarce, máscara da realidade cujas agruras temporariamente desaparecem ou, pelo menos, diluem-se no excesso barroco da festa. Com efeito uma coisa é sobreviver da lavoura em geral solitária, e outra, bem diferente, sobreviver da festa semanal, capaz de incutir instantaneamente nos seus participantes sentimentos comunitários.

À re-criação do Nordeste dominical de São Severino indiferentemente aplicar-se- iam, a meu ver, os conceitos de “Comunidade Imaginada” de Anderson e de “esfera pública” de Appandurai, desde que se lhes subtraísse quaisquer traços negativos, críticos, dissidentes da festa. Em São Severino o orgulho manifesta-se em estado puro, irreflexivo, desencadeado pelo simples fato de estar ali. Em São Severino os laços comunitários desfazer-se-ão ao entardecer sem que essa qualidade provisória, tão adversa à expectativa de permanência e continuidade implícitas no conceito de comunidade, interfira, diminua a intensidade com a qual esses laços são experimentados, vividos, pelos indivíduos diferentes a cada domingo acidentalmente congregados ali. (APPANDURAI, 1998, 1996, ANDERSON, 1991, MAFFESOLI, M. 1985)

Por outro lado, a meu juízo, não se pode entender a vitalidade, a exuberância comunitária de São Severino sem associa-las ao conceito de “rituais de oração” tal como figura na obra de Mauss, definido como um recurso capaz de amenizar o atrito entre um grupo episodicamente constituído a titulo de enfrentar necessidades comuns. Sob a invocação de Dionísios, capaz de lhes proporcionar o alívio de um dia de desregramento, os pernambucanos pobres transferem a um Santo católico a obrigação de resolver problemas que políticas públicas adequadas e probidade administrativa, na maioria dos casos, resolveriam. De fato suficientemente lúcidos para reconhecer que não há, até agora, razões concretas para cultivar expectativas de mudança, recorrem no fundo à única instância efetivamente disponível para ouvir e remediar suas queixas - o Sagrado - representado na Mata Norte de Pernambuco, por São Severino dos Ramos. (MAFFESOLI, M. 1985, SOUSA SANTOS, 2002.)

3.11 Tracunhaém

Há anos Tracunhaém divide com o Alto do Moura em Caruaru a reputação de produzir o que há de melhor em matéria de Arte popular em Pernambuco. A cidade é um arruado modesto - não há prédio ou sítio que mereça registro - naturalmente fortificado pelos