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Quase igual ao de Belém, no tamanho e na variedade de mercadorias. Comércio dimensionado pela clientela cuja maioria é, se vê pelo aspecto, humilde. Cereais, farinha, pouca verdura, afora maçãs, frutas só as nativas: mangas, jacas, banana, abacaxi, goiaba. Nos açougues módica oferta de carne de gado que é no sertão, cara em relação ao bode e ao porco de criação doméstica e aos salários que ainda são esmagadoramente mínimos. Peixe seco (caíco), vísceras defumadas “passarinha”, “fígado de alemão”, “tanajura de farofa” iguaria procedente de outras localidades (ou sinal de “fartura” visto só aparecer segundo o povo local, em terrenos, observe-se, encharcados de chuva de trovoada) substitutos da carne verde (fresca) preferida pelo paladar da região.

Como acontece na maioria dos municípios do sertão de Pernambuco, em Floresta a população rural é mais numerosa do que a urbana: pequenos sitiantes, rendeiros ou assalariados das propriedades maiores voltadas para a pecuária cujas atividades demandam insumos básicos onerosos: em primeiro lugar terra suficiente para a criação extensiva (gado solto no pasto), vacinas, no caso de raças leiteiras, local apropriado de ordenha em tese

montado de acordo com as normas da Vigilância Sanitária, “ração” para complementar a dieta nos períodos de estio.

No meio urbano do município a população compõe-se, no essencial, de pequenos comerciantes, artesãos, funcionalismo público municipal e de uma população flutuante difícil de ser numericamente avaliada de desempregados, “agregados” e “arribados” isto é gente que periodicamente sobrevive à sombra de um “padrinho” ou de uma parentela melhor estabelecida. De fato o que há é pobreza, mecanismos de mobilidade social emperrados, ausência de oportunidades: “filho de pobre, pobre será”.

A vida é comunitária à força da repetição. No interior de Pernambuco não há precipitado histórico, não há evento, “Perestroika”, que proporcione a mudança. Há distribuição de Bolsa Família e a aposentadoria rural que transforma os avós em vítimas dos netos capazes de lhes subtrair, se puderem, o pecúlio. O ritmo do crescimento é lento, vegetativo, como se o desperdício de tempo - e de pessoas - não afetasse a sociedade cuja índole parece ser, ali, hostil a transformações.

Vai de si, como em toda sociedade polarizada há conflito, há insatisfação com o status

quo porém não há, entre as camadas populares expectativa concreta de mudança capaz de transformar a dissidência em ação, e sob a capa democrática os instrumentos políticos à sua disposição não têm, por enquanto, força suficiente para sanear as mazelas do “voto de cabresto” hoje encarnados no “escambo” barato promovido pelos marketeiros eleitorais, na distribuição de camiseta e bonezinho, de merenda em dia de comício e sobretudo encarnado, na reeleição do compadrio e da parentela disposta a acolher - em troca de voto, conivência e passividade - o contingente de afilhados e parentes pobres modicamente mantidos a pirão de água e a promessa de “dias melhores sim sinhô”. É cruel.

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Aos poucos vai se delineando a idéia de que entre os sertanejos a identidade é uma muleta, uma escora que lhes mantém a espinha na vertical. Sem ela no sertão desabariam, mineralizados como um seixo pela suposta ação da geografia que é aqui, no fundo, um disfarce perverso da História. Não se trata de fazê-los aderir ao projeto de modernidade, nem, ao contrário, de estimulá-los a ser telúricos, atávicos, prístinos ou como quer que se chame os grupos em tese mais resistentes à ação cumulativa e insidiosa da Hegemonia Ocidental: trata-

se de garantir-lhes o direito de escolha pois repita-se, como sentenciosamente afirma Boaventura Santos “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a

diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”.

Por outro lado, a cada município visitado aumenta minha consciência do “pontilhismo”, do risco da generalização no desenvolvimento dessa pesquisa. Posso estar enganada porém ser nordestino em Floresta não é o mesmo que ser nordestino em Belém, Triunfo e Serra Talhada, cidades próximas, sertanejas e pernambucanas. Se, por um lado, há um substrato comum entre elas - resumível no “Sertão” real e imaginário que compartilham à diferença de outras regiões do Estado - por outro, cada cidade parece possuir uma índole, um feitio próprio que as distinguiria nitidamente como a irmãos filhos dos mesmos pais.

De perspectiva relativista não há, claro, determinismo, noção de fatalidade geográfica mas há em alguns casos - e esse parece ser um deles - a necessidade de se incorporar à interpretação a “significação” local da Geografia. Arrisco-me, aqui, a sugerir que uma das causas das diferenças identitárias desses quatro municípios é algo comparável à “totemização” de um atributo geográfico: no caso de Belém a dispersão do município em 88 ilhas fluviais, terra líquida; no de Triunfo a altitude, terra alta; no de Serra Talhada a aridez, terra seca; no de Floresta o curso tranqüilizador, doméstico do rio o qual, à semelhança de um fosso, parece proteger a cidade contra a seca: terra fértil.

Impossível reprimir a paráfrase “a água não é boa para beber, é boa para pensar”, porém a idéia que me levou a pensar sobre a possibilidade de existir no sertão algo semelhante a um “totemismo geográfico” não é absolutamente estruturalista. É uma forma de reconhecer que, sendo como eu sou carioca, jamais perceberia a chuva ou o rio como um sertanejo. Visto na minha experiência a água ter sido, sempre, uma certeza. Como seria Triunfo na planície, ou Belém sem suas ilhas?

Para quem não conhece o sertão torna-se difícil entender que nessa região, ainda em 2006, as pessoas pareçam viver penetradas pela geografia cujo atributos simbiótica, simbolicamente incorporam não como uma qualidade totêmica, como a força de um urso, mas como uma peia que os impede de movimentar sua própria história. Recônditos, isolados, auto-referentes - não obstante as antenas parabólicas e os computadores onipresentes em seus

municípios como um sinal, a meu ver equívoco, de progresso - os pernambucanos sertanejos afirmam orgulharem-se de ser nordestinos como quem afirma orgulhar-se não de pertencer a um lugar, mas de ser resistente o suficiente para sobreviver apesar dele.

Obrigatório anotar que entrevistei dois membros da família Novaes encontrados, literalmente, por acaso no Mercado da Farinha. Antes de entrevista-los ignorava quem eram. Discretos, polidos, nada em seu aspecto faria supor a história da família, contudo ao sair do mercado deixam atrás de si um rastro de cumprimentos e de sussurros: ali todos sabem quem eles são. Incrível!