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A Proclamação da República de 1889, as terras devolutas e os movimentos

3. A APROPRIAÇÃO DA TERRA NO BRASIL – DAS CAPITANIAS

3.3. A Proclamação da República de 1889, as terras devolutas e os movimentos

A Proclamação da República em 1889, de acordo com Guimarães (1977), em nada alterou a estrutura fundiária no Brasil. Pelo contrário, a apropriação formal das terras permaneceu a realizar-se pela compra e, paralelamente, por meio da ocupação de terras públicas, de modo, a manter o poder das elites fundiárias brasileiras. Assim, num contexto geral, mesmo com a crescente vinda de imigrantes para trabalharem como pequenos proprietários de terra, como assalariados ou parceiros, a concentração de terras e a grande propriedade continuaram marcando o perfil fundiário do Brasil.

Contudo, através da Proclamação da República em 1889 e da promulgação da Constituição Federal em 1891 houve uma modificação no controle e na organização da questão fundiária no Brasil. Foi determinada a transferência do domínio das terras devolutas da União para os Estados, conforme o Art. 64 da referida Constituição:

Art 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.

(BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1891, Art. 64).

Ao analisar a respectiva alteração no controle da questão fundiária, Andrade (2001) afirmou que as terras públicas (devolutas) e as questões de disputas por terras, de responsabilidade da monarquia até 1889, e posteriormente da União, passaram para a alçada dos governos estaduais, sendo que estes poderiam distribuir as terras devolutas de acordo com seus interesses políticos e econômicos.

Neste particular, cada Estado tinha a atribuição de desenvolver a sua política de terras, legislando livremente sobre a matéria e transferindo as propriedades fundiárias para quem definissem. Sendo assim, cada Estado deveria regulamentar o acesso às terras públicas que passaram a lhes pertencer, deveriam criar mecanismos para medição, divisão, demarcação, vendas e registros das terras, bem como a legitimação de possíveis posses ou outros tipos de concessões ocorridas no passado. No entanto, via de regra, o que se viu foram os Estados transferindo “maciças propriedades fundiárias para grandes fazendeiros e grandes empresas de colonização interessadas na especulação imobiliária” (MARTINS, 1995, p. 43). Processo este, que foi característico nos estados do Sul, do Sudeste, do Centro-Oeste e da Amazônia brasileira.

Desse processo, um problema recorrente, e que se verificou principalmente no início do século XX, foi o fato de que muitas dessas terras devolutas estavam ocupadas por posseiros, portanto, ocupadas por pessoas sem os títulos de propriedade das terras. Em face desse problema e para desenvolver os programas de colonização/ocupação, através da venda de glebas de terra para imigrantes e seus descendentes, por exemplo, os Estados e as empresas de colonização precisaram expulsar das terras os antigos posseiros (MARTINS, 1995). Daí decorreu, uma série de conflitos fundiários ocorridos no Brasil.

José de Souza Martins (1995), ao analisar os movimentos camponeses no Brasil, descreve as lutas camponesas em diferentes regiões do Brasil. O autor esclarece que os posseiros das terras devolutas passaram a serem expulsos, muitas vezes, despejados com violência ao oferecerem resistência16. Isso porque os governadores estaduais haviam cedido ou vendido àquelas terras já ocupadas para outras pessoas, geralmente grandes proprietários.

Conforme Martins (1995, p.67), “entre o final dos anos 40 e o golpe de Estado de 1964 foram vários os movimentos camponeses que surgiram nas diferentes regiões do país”. Estes movimentos, geralmente, originados pela expulsão dos camponeses das terras já ocupadas ou, ainda, em razão de questões relacionadas à renda da terra – visto que muitos posseiros foram convertidos em meeiros e parceiros pelos proprietários de terra – , possuem como exemplos, os conflitos e resistências ocorridas: nas regiões de Teófilo Otoni e de Governador Valadares, em Minas Gerais, com auge em 1955, decorrente de processos de grilagem de terras ocupadas por posseiros e da valorização das terras com a construção da rodovia Rio-Bahia; ii) na região de Santa Fé do Sul, no estado de São Paulo, onde trabalhadores rurais reivindicavam melhores condições de trabalho impostas pelo colonato17 e prorrogação dos contratos de arrendamento, mediante a possibilidade de expulsão das terras; iii) na região Norte do estado de Goiás, onde ocorreu a revolta de Trombas e Formoso, e iv) no estado do Paraná, com conflitos nas regiões de Pato Branco, Francisco Beltrão, Capanema e Jaguapitã, onde desenrolou-se o chamado Conflito de Porecutu, em razão do embate entre posseiros e grileiros18 (MARTINS, 1995).

Esse quadro de conflitos e de resistência dos camponeses fez, a partir da década de 1950 e início da década de 1960, os debates em torno da concretização de medidas expressivas para a efetivação de uma distribuição mais equitativa da posse e da propriedade da terra disseminarem-se pelo país. Nesse período surgiram, como forma organizada de luta pela terra, os movimentos de camponeses, como o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER), no Rio Grande do Sul, e as chamadas Ligas Camponesas, no Nordeste.

16 Um exemplo da resistência frente ao processo de expulsão dos camponeses de suas terras é a frase de Antonia Billar, esposa de um dos lideres do conflito em Porecatu, no estado do Paraná: “Quando nós chegamos o sertão era bruto e a civilização um sonho. Compramos as terras, sangramos as mãos, pagamos impostos, vivemos felizes. E agora nos expulsam, mas só sairemos mortos” (MARTINS, 1995, p. 214, grifo do autor).

17 Segundo Araújo (1998, p. 188), o colonato “era um contrato estabelecido entre os colonos imigrantes e os proprietários”, que instituía a obrigação de trabalho dos colonos “tanto no plantio, bem como na colheita, em troca de salário ou porcentagem da produção. Os colonos poderiam ainda, plantar pequenas áreas, alimentos para consumo próprio ou para vender a terceiros”.

18 Uma narrativa sobre o conflito de Porecatu, pode ser verificada em: Leocádio (2010).

O MASTER, segundo Morissawa (2001), surgiu no Rio Grande do Sul, na década de 1950, reunindo trabalhadores rurais, parceiros e pequenos agricultores considerados agricultores sem terra e organizando acampamentos, enquanto uma forma particular de organizar suas ações. Já as Ligas Camponesas surgiram no ano de 1955 no Nordeste brasileiro. Elas surgiram e se difundiram rapidamente entre os “foreiros de antigos engenhos que começavam a ser retomados por seus proprietários absenteístas, devido a valorização do açúcar e à expansão dos canaviais” (MARTINS, 1995, p. 76). As Ligas Camponesas apontavam para a necessidade da realização de uma reforma agrária radical que “alcançasse no seu conjunto o direito de propriedade da terra”, que “acabasse com o monopólio de classe sobre a terra” e que “desse lugar à propriedade camponesa, inclusive à estatização da propriedade” (MARTINS, 1995, p. 89).

Para Martins os diversos conflitos e movimentos de camponeses possuíam diferentes formas de organizar sua resistência, mas todos convergiam na luta dos camponeses contra a apropriação da renda da terra pelo capital. A diferença com outras situações históricas é que

esses camponeses não encontravam pela frente uma classe de proprietários de terra, de latifundiários stricto sensu. Eles encontravam pela frente uma classe de proprietários de terra que eram ao mesmo tempo capitalistas, numa situação histórica em que o arrendatário capitalista e o proprietário não se personificaram em classes sociais diferentes (MARTINS, 1995, p. 80).

Assim, mesmo esses movimentos sociais organizando os trabalhadores do campo e fazendo a luta pela terra adquirir um caráter político, pressionando o Governo Federal a promulgar leis que solucionassem os mais urgentes problemas do campo, a burguesia aliada com os latifundiários encarregar-se-ia de buscar “pôr fim ao projeto das Ligas, que era um projeto de revolução camponesa” (MARTINS, 1995, p. 90). A despeito de todos esses acontecimentos, conforme comentou Guimarães (1977), o sistema latifundiário brasileiro se mantinha com a máxima firmeza.