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Formas de apropriação da renda da terra pelo capital

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA PARA A

2.1. O processo de desenvolvimento do capitalismo no campo

2.1.1. O processo contraditório do desenvolvimento do capitalismo no campo

2.1.1.1. Formas de apropriação da renda da terra pelo capital

José de Souza Martins afirma no livro Os camponeses e a política no Brasil (MARTINS, 1995) que na grande maioria das análises feitas no Brasil sobre o desenvolvimento do capitalismo no campo “a terra é erroneamente considerada capital”

(MARTINS, 1995, p. 159). Desse modo, convém demarcarmos as diferenças existentes.

A terra pode ser comprada com dinheiro3 e utilizada como instrumento para explorar força de trabalho, comportando-se, portanto, como se fosse capital. Mas ela não é capital, pois este é produto do trabalho assalariado, do trabalho acumulado pelo capitalista, sob a forma de meios de produção. A terra é um bem natural e finito, não sendo, portanto, produto de nenhum tipo de trabalho, não podendo ser produzida pelo trabalho (MARTINS, 1995).

3 A diferenciação entre dinheiro e capital também é importante, pois a simples aplicação do dinheiro na compra da terra não torna esse dinheiro capital. A finalidade especulativa da compra da terra (o caso do latifúndio por exploração, nos termos do Estatuto da Terra), “sem colocá-la para produzir, sem transformá-la, portanto, em meio de produção, não faz do dinheiro capital” (OLIVEIRA, 2007, p. 38). O dinheiro investido na compra da terra para especular em nada difere daquele dinheiro aplicado no mercado financeiro, sendo essa terra uma reserva de valor que se valoriza com o passar do tempo, do mesmo modo que o dinheiro aplicado no mercado financeiro valoriza-se através do pagamento do juro sobre ele. Dessa maneira, a diferença recebida com a venda da terra comprada para especular, é o próprio “juro sobre o dinheiro investido”. Não havendo “acumulação de capital, e sim de dinheiro” (OLIVEIRA, 2007, p. 38).

A terra é, como esclarece Martins (1995, p. 160), “um instrumento de trabalho diferente dos outros meios de produção”, pois quando o trabalhador emprega sua força de trabalho na terra, não é para produzir mais terra e sim produzir “o fruto da terra”. Então, “o fruto da terra pode ser produto do trabalho, mas a terra não o é”.

Entretanto, da mesma forma que o capital cria condições para se apropriar da mais-valia do trabalho, ele também cria formas para se apropriar de parcela da produção originada da terra, do fruto da terra.

Assim, como o trabalhador cobra um salário para que sua força de trabalho seja empregada na produção do capital, o proprietário da terra cobra uma renda para que ela possa ser utilizada pelo capital ou pelo trabalhador. [...] Como o capital tudo transforma em mercadoria, também a terra passa por essa transformação, adquire preço, pode ser comprada e vendida, pode ser alugada. A licença para a exploração capitalista da terra depende, pois, de um pagamento ao seu proprietário. Esse pagamento é a renda da terra (MARTINS, 1995, p. 160-161).

Dessa maneira, no modo de produção capitalista, enquanto o capital produz lucro, o trabalho produz salário e a terra produz renda, a renda da terra. Neste particular, mesmo aquela propriedade de terra que não produz mercadorias, que nada produz, “não pode ser entendida como um entrave à expansão das relações capitalistas de produção no campo”

(OLIVEIRA, 2010, p. 07). Isso acontece, pois, é da propriedade da terra que decorre a possibilidade do capitalista apropriar-se da renda da terra, conforme apontou Martins (1986) e explicitou Oliveira (2010).

Essa renda da terra, entendida como “um lucro extraordinário permanente, [...] produto do trabalho excedente” (OLIVEIRA, 2007, p. 43), pode ser paga, na sua conformação menos desenvolvida, na forma de trabalho, de produto ou em dinheiro. E na sua conformação mais desenvolvida, enquanto um tributo pago pelo conjunto da sociedade.

A renda da terra considerada em sua forma menos desenvolvida é, segundo Oliveira (2007), diretamente o produto excedente, entendida dentro da lógica contraditória do capital, pois quem paga o tributo é, sobretudo, o camponês. O “pagamento tem o caráter de um tributo pessoal de cada trabalhador ao senhor de terra; ele é claramente deduzido da produção do trabalhador. É o trabalhador que paga a renda” (MARTINS, 1980, p. 163). Assim este tipo de renda fundiária pode ser verificado em três formas: (i) renda em trabalho, quando o trabalhador trabalha na terra de outro, e em troca recebe o direito de cultivar gleba desta terra para si próprio; (ii) renda em produto, quando o trabalhador trabalha na terra de outro,

cedendo parte da sua produção ao proprietário dessa terra, é o caso das parcerias para a prática da agricultura; e (iii) renda em dinheiro, quando o trabalhador ao invés de entregar parte do produto colhido, transforma-o em dinheiro e entrega ao proprietário da terra.

Em sua forma mais desenvolvida, a renda da terra é, segundo Martins (1980, p. 164-165), uma renda capitalizada, “a renda não é paga por ninguém em particular porque ela é paga pelo conjunto da sociedade [...]. O conjunto da sociedade paga pelo fato de que uma classe, a dos proprietários, tem o monopólio da terra”. Assim, para Oliveira (2007, p. 43), a renda da terra sob o modo capitalista de produção é sempre a sobra acima do “lucro médio que todo capitalista retira da sua atividade econômica, lucro esse sem o qual nenhum capitalista colocaria seu capital para produzir”, logo, este tipo de renda fundiária somente pode sair da diferença do valor da venda da produção e o custo para alcançar esta produção.

Essa forma de renda fundiária, conforme Oliveira (2007), pode ser verificada em dois tipos:

 Renda da terra diferencial, aquela resultante do “caráter capitalista da produção e não da propriedade privada do solo” (OLIVEIRA, 2007, p. 44). Pode ser classificada em renda diferencial I (quando as condições de produtividade - fertilidade do terreno, topografia, disponibilidade de água -, bem como a localização do terreno e as condições de acesso ao mercado consumidor determinam ganhos diferenciados de um terreno a outro) e renda diferencial II (quando a renda fundiária deriva da quantidade de capital investido para melhorar a produtividade, corrigindo as condições necessárias à produção, como também dos investimentos voltados a reduzir o dispêndio de transporte até o mercado).

 Renda da terra absoluta, aquela resultante da “posse privada do solo e da oposição existente entre o interesse do proprietário e o interesse da coletividade; resulta do fato de que a propriedade da terra é monopólio de uma classe que cobra um tributo da sociedade inteira para colocá-la para produzir” (OLIVEIRA, 2007, p. 44).

Dessa forma, quando o capitalista se apropria da terra ele o faz no intuito de extrair a renda da terra, seja explorando o trabalho de quem não tem terra, através do arrendamento, do parcelamento, do estabelecimento de parcerias para efetivar a produção, ou mediante o processo de compra e venda da terra por um alto preço para quem precisa da terra para trabalhar e não a tem. Por meio dessa contextualização, Martins (1980; 1995) nos permite esclarecer o que ele definiu como terra de negócio e terra de trabalho ou, em outros termos,

terra de especulação e terra de produção. Na primeira, a terra é vista como um objeto de negócio, de exploração do trabalho alheio e extração da mais-valia, de especulação e reserva de valor. A terra de negócio é, portanto, característica da propriedade capitalista, na qual o proprietário e o capitalista, geralmente, são a mesma pessoa. Na segunda, a terra é considerada um instrumento de sobrevivência da família, é terra de trabalho, na qual se utiliza a mão de obra familiar. A terra de trabalho é, portanto, característica da relação dos camponeses com a terra.

Por isso, “nem sempre a apropriação da terra pelo capital se deve à vontade do capitalista se dedicar à agricultura [...]. A renda não existe somente quando a terra é alugada;

ela existe também quando é vendida. Alugar ou vender significa cobrar uma renda para que a terra seja utilizada” (MARTINS, 1980, p. 60-61). E, é em decorrência dessa relação entre a propriedade da terra e renda da terra que o proprietário dessa terra pode enriquecer sem nela nada produzir.

Em resumo, a renda da terra pode chegar às mãos do proprietário da terra por vias diferentes: quando o capitalista e o proprietário da terra não são a mesma pessoa, a renda da terra somente chega às mãos do proprietário após o término de todo o processo produtivo, incluindo a circulação e a realização da mercadoria. Já quando o capitalista e o proprietário são a mesma pessoa, esta aufere não só o lucro médio4, mas, no mesmo momento, também a renda da terra (OLIVEIRA, 2010).

Desta forma, à medida que o capitalista compra a terra, ele está comprando a renda da terra, ou seja, o direito de apropriar-se de uma parcela da mais valia social, uma renda capitalizada (renda antecipada) da terra, extraída da sociedade em conjunto. Aí, conforme esclarece Oliveira (2010, p. 06), reside uma diferença fundamental entre capital e a propriedade da terra:

a terra sem produção alguma rende, ou como se diz comumente ‘se valoriza’, e a condição de proprietário é requisito para se abocanhar parte dessa riqueza produzida socialmente. Esse fato decorre do monopólio que uma classe da sociedade detém sobre o meio de produção fundamental na agricultura; e reflete-se na parcela que a sociedade como um todo tem que pagar, para que a produção dos alimentos possa continuar e ser produzida em quantidade necessária.

4 O lucro médio é o limite mínimo da rentabilidade da produção capitalista, sendo que abaixo do lucro médio, a produção tipicamente capitalista tornasse impossível.

Em outras palavras, a terra, mesmo quando mantida ociosa, sem qualquer uso, obtém valorização. Tal particularidade advém da sua característica de ser finita, pois à medida que a população aumenta, a procura por terra e por alimentos e bens de consumo também aumenta, o que faz elevar o seu preço. Essa característica expressa a diferença existente entre a terra e o capital, este último sem produção e realização da mercadoria não rende nada.

Nesse contexto, a apropriação da terra dá o direito à apropriação da renda por ela produzida. O proprietário da terra pode optar por receber a renda da terra na forma de arrendamento, quando aluga a terra para outro produzir, ou pode esperar (especular) e receber a renda numa só vez, no momento da venda da propriedade da terra. Assim, nessa perspectiva, podemos entender que a expansão do capitalismo no campo também se faz pela sujeição da renda da terra ao capital, pois, conforme explicou Martins (1986), a partir da sujeição da renda da terra, o capital passa a possuir as condições necessárias para que se possa sujeitar também o trabalho que se dá na terra.

Em decorrência disso, no entendimento de Martins (1995) e Oliveira (2010), considerando análises sobre o caso brasileiro, o desenvolvimento do capitalismo no campo não opera no sentido da separação entre a propriedade da terra e o capitalista. O que se observa, “tanto no caso da grande propriedade quanto no caso da pequena, é que fundamentalmente o capital tende a se apropriar da renda da terra” (MARTINS, 1995, p. 175).

No Brasil, o que se verifica é que

o capital tem se apropriado diretamente de grandes propriedades ou promovido a formação em setores do campo em que a renda da terra é alta, como no caso da cana, da soja, da pecuária de corte. Onde a renda é baixa, como no caso dos setores de alimentos de consumo interno generalizado [...] o capital não se torna proprietário da terra, mas cria condições para extrair o excedente econômico, ou seja, especificamente renda onde ela aparentemente não existe (MARTINS, 1995, p.

175).

Nesse limiar, as categorias territorialização do monopólio e monopolização do território se constituem como instrumentos de explicação geográfica para as transformações territoriais do campo, contribuindo para o esclarecimento das formas de apropriação da renda da terra pelo capital. Conforme já afirmamos, o desenvolvimento do capitalismo no campo se faz movido por suas contradições e, nesse contexto, as relações não tipicamente capitalistas são criadas e recriadas como forma para o capitalismo se manter e se expandir.

Nesse processo de desenvolvimento contraditório do capital, a territorialização do capital monopolista atua no sentido de controlar a propriedade da terra, controlar o processo produtivo e controlar também o processamento industrial da produção agropecuária. É, portanto, verificado, por exemplo, nos setores de produção de monocultivos diretamente ligados à industrialização, tendo, pois, no capitalista da indústria, no proprietário de terra e no capitalista da agricultura uma mesma pessoa (ou uma mesma empresa). Para produzir, como explicou Oliveira (2001a, p. 24), “utilizam o trabalho assalariado, como os boias-frias”. Nessa configuração, a territorialização do monopólio propicia a reprodução do capital em sua plenitude e a apropriação da renda da terra ocorre, nesse caso, concomitantemente com a apropriação do lucro médio que todo capitalista retira da sua atividade econômica5.

Já a monopolização do território é um processo desenvolvido por empresas de comercialização ou de processamento industrial da produção agropecuária. Estas empresas não produzem diretamente o produto agropecuário, mas, através de mecanismos de subordinação, controlam os produtores do campo, sujeitando a renda da terra ao capital. Na monopolização do território, o capitalista industrial é uma pessoa (ou empresa) e o proprietário da terra e o trabalhador do campo, via de regra, são uma única pessoa, o camponês. No caso do arrendamento de terras para produzir “podemos ter três personagens sociais na relação: o capitalista industrial, o proprietário-rentista (que vive da renda em dinheiro pago pelo aluguel da terra) e o trabalhador camponês rendeiro que trabalha a terra com a família” (OLIVEIRA, 2001a, p. 24). Nesse contexto, o capital monopoliza o território, mas sem apropriar-se das propriedades de terra6.

Esse processo de monopolização do território e de sujeição da renda da terra ao capital é resultado da forma com que capitalismo se desenvolve no campo. Ariovaldo Umbelino de Oliveira explica que o capital cria condições para que os camponeses produzam matérias primas para as indústrias capitalistas e, nesse processo, viabilizem, do mesmo modo, o consumo de produtos industriais no campo. Nesse particular, ocorre a expropriação da renda da terra, inicialmente pela “intensificação das relações comerciais, que têm, através da circulação da mercadoria de origem agrícola, drenado toda a renda diferencial para esse setor, onde graçam toda sorte de representantes do capital comercial” (OLIVEIRA, 2010, p. 09);

5 Um exemplo de estudo sobre a territorialização do monopólio pode ser verificado em: Thomaz Jr. (1989).

6 Um exemplo de estudo sobre a monopolização do território pela indústria fumageira na região do Vale do Rio Pardo/RS pode ser verificado em: Etges (1991).

pela criação de “liames da dependência de produzir (do pequeno, principalmente), mantendo-o permanentemente endividadmantendo-o” devidmantendo-o a mantendo-oferta de créditmantendo-o bancárimantendo-o (mantendo-oficial mantendo-ou nãmantendo-o) e a consequente cobrança de juros por empréstimos (mesmo que parte destes juros, nos anos recentes, tenha sido subsidiada pelos governos); e pelos “componentes do capital comercial, que tem atuado no sentido de impor preços baixos aos produtos, ficando assim com parcela cada vez maior da renda e da parte que seria creditada como lucro médio” (OLIVEIRA, 2010, p. 10).

Assim, a agropecuária brasileira está subordinada ao capital, ora à produção ora à circulação (incluindo, desse modo, a troca de mercadorias por dinheiro e de dinheiro por mercadorias). E através desse movimento contraditório de expansão do modo de produção capitalista, “o que assistimos é o predomínio, quase que completo, do capital [...] atuando na circulação e sujeitando a renda da terra produzida na agricultura” (OLIVEIRA, 2010, p. 21).

Então, o estudo da realidade agropecuária brasileira, e propriamente da questão agrária do país, deve ser feito considerando que ao mesmo tempo em que o desenvolvimento do capitalismo “avança reproduzindo relações especificamente capitalistas (implantando o trabalho assalariado [...]), ele (o capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de produção (pela presença e aumento do trabalho familiar no campo)”

(OLIVEIRA, 2003, p. 07). Portanto, a criação e a recriação do camponês e do latifúndio precisam ser entendidas como produto do próprio desenvolvimento do capitalismo e não como algo estranho e externo a ele.