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A progressiva afirmação da ILCAE no espaço público

Um conjunto de contributos irá patentear a progressiva afirmação deste conjunto de acatólicos no espaço público, notando-se uma constante reiteração na denúncia do que é considerado, por eles, como significando intolerância - ou sérias ameaças à liberdade religiosa e, in extremis, à igualdade cívica.

Em 1881, Godfrey Pope, numa substantiva apreciação, diz que em Portugal o número de protestantes autóctones é bastante limitado, tal não impediu que um conjunto

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significativo de congregações se formasse e se organizassem numa Igreja nacional, de matriz episcopal, difundindo uma necessária mensagem em que eram criticadas as “corrupções de Roma” e os “vícios dos seus padres”. Relata também Pope os antecedentes da Igreja Episcopal portuguesa e as boas relações que ela mantém com os outros núcleos protestantes que operam em Portugal, destacando os Metodistas, os Presbiterianos e os Irmãos. Após este prólogo, o Autor dedica alguns parágrafos à organização paroquial da Igreja Lusitana, à necessidade de angariar fundos e reflete sobre a crucialidade da eleição de um Bispo, bem assim como a criação de um Training College (um Seminário) para formar elementos para o magistério religioso da Igreja Lusitana. Godfrey Pope, em seguida, reporta-se ao ambiente político dizendo que a liberdade que se vive em Portugal é quase a mesma que existe em Inglaterra.

Relata um encontro de ministros protestantes com os membros do Governo, que decorreu num clima cordial, e onde reciprocamente se trocaram palavras simpáticas e de mútuo respeito não deixando, no entanto, os ministros protestantes de manifestar as “imperfeições das leis”. Pope não deixa de lamentar que a presença de jesuítas seja cada vez maior, em muitos pontos do País, contrariando a legislação em vigor. Este facto tem fomentado, segundo o Autor, um clima de uma relativa efervescência tumultuosa, de que os comícios anti-jesuítas são uma prova que poderia ser evitada se - sublinha com ênfase - o Governo cumprisse as “leis existentes”.

O tom de luminosa esperança que Pope imprime à sua crónica, apesar de vislumbrar que um certo mal-estar poderia ser despoletado, vai ser temperado por contributos posteriores em que paulatinamente vão emergindo as situações onde a discriminação está patente nas suas mais liminares expressões. Em crónicas de 1882 e 1883, escreve-se, com uma certa mágoa, contra as perseguições de que são alvo os colportores, mas também protestantes individuais, que se encontram, assim, inibidos de promover, em suas casas, a difusão da Bíblia. A questão da Bíblia - denominada de polémica das “Bíblias falsas” - é pretexto para violentas campanhas promovidas pelos “padres católicos”, mas também se deve acrescentar, como asseveram os textos da Light and Truth, as resistências da Igreja Católica, face à aplicação do Registo Civil. Surgem ainda relatos onde se patenteia a violência simbólica existente no Exército face aos militares não católicos.

Em 1884 emerge nas crónicas o registo que marca as “ameaças diárias à liberdade religiosa” como uma perigosa tendência onde o fanatismo religioso se expressa significativamente na questão dos funerais mas também em inúmeras manifestações José António Afonso

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de intolerância, que se sucedem em vários pontos do território nacional. Nos textos perpassa o sentimento de que há “um clima de tolerância religiosa” por parte das autoridades civis que contrasta com a virulência da hierarquia da Igreja Católica, que sistematicamente coloca entraves à ação dos protestantes - afirmando-se, num dos relatos, que recorrem à “proteção da lei” face a essa inusitada reação. Ainda em 1884, os protestantes expressam o seu apoio ao movimento peticionário, que pedia a reforma do Artigo 6º. da Carta Constitucional, e às posições defendidas por Silveira da Mota na Câmara dos Deputados.

Entrados em 1885, nota-se que continuam as denúncias do fanatismo, que culminaram com a prisão - ilegal, refere-se - de um colportor. Neste ano também se reforça a ideia da reforma do Artigo 6º. e, em simultâneo, surgem os apoios incontornáveis às Escolas protestantes - cuja excelência foi progressivamente conquistada pelas ”elevadas classificações“ que os seus alunos obtinham nos Exames Públicos - “pelos sectores mais liberais do Catolicismo Romano” que, com delicadeza e cortesia” reconheciam (especialmente nas Conferências Pedagógicas) tal circunstância sem qualquer tipo de preconceito.

Nos anos seguintes a tónica dos relatos vai no sentido de denunciar a intolerância, frequentemente associada à questão dos cemitérios e à “queima” de Bíblias. Mas a “agressividade da população católica instigada pela hierarquia” também encontra terreno nas perseguições movidas a elementos da Igreja Lusitana (como aconteceu com Guilherme Dias em 1889), como favorece o fanatismo, que é o caldo para a emergência de organizações ultramontanas, que por sua vez exponenciam a “superstição e a ignorância” das classes populares. Assim, até 1900, os textos incidem na denúncia de um clima de intolerância que medra pelo país, alimentado pelas forças católicas. Mas deixa também antever uma constante apologia à Imprensa Liberal, pela crítica imparcial que faz das “políticas de superstição”, em paralelo com a publicitação de Bíblia Ilustrada, editada por Herbert W. Cassels, mas também destacando inúmeras conversões, como exemplares de um cristianismo independente de Roma, e o trabalho social desenvolvido pelas comunidades da Igreja Lusitana, cuja expressão máxima são as Escolas.

Em 1900 ainda continuam as referências circunstanciais a fenómenos de intolerância. Reitera-se, nas crónicas, que o “povo português tem um espírito liberal” - aliás um argumento que é constantemente, e com subtileza, abordado nas crónicas e, com alguma frequência, declinado como sendo Portugal um dos “países da Europa” mais tolerantes,

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através dos seus insofismáveis exemplos históricos relativos aos Judeus e aos Mouros, como ainda ao impedir que “as maquinações jesuítas alastrassem” – o que, no entanto, não é suficiente, nos tempos que correm, para cercear, ou impedir, os permanente atentados à liberdade religiosa. Escrevem que a “ignorância popular” é o grande suporte da Igreja Católica, porque cegamente acolhe e replica as suas ordens, legitimando a ausência de “direitos civis” a muitos cidadãos, surgindo como exemplos mais lancinantes as situações em que cristãos evangélicos morrem, em Hospitais, sem terem qualquer serviço exequial ou as situações, frequentes no mundo rural, em que aqueles que ousaram “romper com a Igreja Católica” vivem sem qualquer “liberdade religiosa”, para além obviamente daquelas que se prendem com as perseguições, os serviços fúnebres, a difusão da Bíblia, como ainda muitas outras resultantes de impedimentos promovidos pelas autoridades civis locais, certamente, escreve-se, “influenciadas pelos Jesuítas”. Em 1900 levanta-se, com veemência, a contradição entre o Código Penal (Artigo 130º., Capítulo I) e a Constituição (Artigo 145º., Secção 4), argumentando-se que se esta garante a perfect toleration, aquele inclui restrictive clauses que impedem o “triunfo do espirito de liberdade que pontua cada linha da Magna Carta Portuguesa”, ressalvando- se, no entanto, que tal não tem “impedido o progresso”, apesar dos incidentes mais controversos ou do excessivo protagonismo dos clérigos católicos.

Em 1901 a questão da contradição é retomada, acrescentando-se um argumento: a pressão ultramontana e o peso dos Bispos no Parlamento serão os instigadores de bloqueios na administração pública, que se traduzem na coação do estabelecimento da liberdade religiosa. Em reforço desta posição os protestantes socorrem-se da manifesta vontade do Rei D. Carlos I, expressa numa deslocação a Inglaterra. D. Carlos recebeu, no Palácio de Buckingham, uma delegação da Aliança Evangélica que, diplomaticamente, lhe manifestou o seu agravo por incidentes ocorridos em Lisboa com protestantes. A reunião decorreu num ótimo ambiente, manifestando o Rei o seguinte, de acordo com a notícia:

He was very much pleased to assure the members of the Evangelical Alliance representing all the Churches that it was his distinct wish that the religious liberty should be granted to all Protestant Christians throughout his dominions, and that it was his determination to enforce this rule. He also said that he had now given the necessary orders to ensure this.

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Em 1907, noticiam-se situações exemplares de apoio a iniciativas protestantes, muito especialmente o investimento, no campo educativo, por parte de autoridades civis e elementos católicos, saudando-se vivamente esse espírito colaborativo e liberal; mas se estas aproximações de alguns sectores católicos são vistas com muito agrado, não há qualquer inibição em denunciar as mobilizações fanáticas dos ultramontanos contra os “protestantes” e as suas Escolas. O articulista explora esta dissonância no seio do campo católico, argumentando que há uma fação que pugna pela sua reforma e independência, mas existe uma outra fação que está eivada de superstições e que recebe “ajudas” do Governo. Uma apoia a liberdade de consciência; outra, subserviente, manipula e pressiona para que não haja liberdade religiosa. Em síntese, este é um debate que se vai prolongar até à República e que, convocando diversos argumentos, pretende inventariar os modos de “romper com as cadeias ultramontanas” tomando a religião como “uma força extraordinária” capaz de promover a emancipação, respeitando um conjunto fundamental de tradições arreigadas no povo.