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O Estado Liberal concebe-se num princípio jurisdicionalista, em que há uma identificação entre o Estado e a Religião Católica; ou seja, concebe-se a fusão entre a nacionalidade portuguesa e a religiosidade católica – como enfatiza Bernardino Joaquim da Silva Carneiro (1896, p. 51): “a religião católico-romana é felizmente a nossa religião de Estado”. O modelo português de Estado confessional estabelece-se com base no domínio do poder político sobre o poder religioso. O Estado Liberal nunca colocou em causa o monopólio da Igreja Católica, mas paulatinamente foi emergindo a diversidade ideológica e religiosa que obrigou a que se estabelecesse uma distinção entre Estado Liberal e religião católica e Estado Liberal e instituição Igreja (Diniz, 2012; Pereira, 2010). É seguramente nesta última distinção que surgem os conflitos na primeira metade de oitocentos que impregnaram na memória ultramontana a ideia de uma afronta à religião, quando o que se tratou foi precisamente de combater a Igreja enquanto estrutura do Antigo Regime.

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A matriz espacial do Estado Liberal é tendencialmente incompatível com a existência de ordens religiosas e com o regime de propriedade da Igreja. Mais, os Liberais pretendem instaurar um regime onde os privilégios das Ordens, da Nobreza e do Clero são denunciados como incompatíveis com os princípios constitucionais da igualdade perante a lei, mas colocam em causa a natureza senhorial do Clero, como também concebem uma nova relação com a economia (nomeadamente, a exploração da terra) baseada em medidas modernas que anulam os direitos banais, de aposentadoria e do foro privativo. Este é o sentido de um conjunto de medidas do triénio vintista - supressão das ordens religiosas regulares masculinas, extinção das ordens militares, transferência dos bens da Coroa para bens nacionais, proibição da entrada de noviços nas ordens religiosas, suspensão dos votos monásticos (considerados como atentados à liberdade individual), contingentação do número de mosteiros ou conventos de cada ordem religiosa; secularização do clero regular, controlo da organização eclesiástica de acordo com a tradição regalista, na linha das posições assumidas pelo Marquês de Pombal - que, no entanto, não buliu no simbolismo concedido à religião católica, quer nas cerimónias públicas, quer nos julgamentos de fidelidade política. Quem não jurasse a Constituição perdia o direito de cidadania. O Estado assegurava contudo a sobrevivência dos membros do clero necessários para a manutenção do culto religioso, bem assim como legitimava a hierarquia religiosa no campo político.

Entre 1834 e 1841, Roma acolheu mal estas reformas, nomeadamente as de carácter patrimonial e as relacionadas com a nomeação dos Bispos, rompendo as relações diplomáticas com Portugal, que são retomadas em 1841, sendo, em 1848, assinada uma Concordata. O fim do cisma implicou que as ordens religiosas fossem permitidas e que a profissão de frade fosse reintroduzida, para além de não se questionar a extinção das ordens religiosas, nem se modificar a situação do Padroado do Oriente. Note-se que já durante uma década (período Joanino e Miguelista) a legislação vintista tinha sido suspensa o que permitiu, particularmente, a admissão dos jesuítas.

Na segunda metade de oitocentos, a Igreja Católica consolida a sua influência através da instalação de várias congregações religiosas (ordens religiosas regulares) introduzidas por padres estrangeiros, com o beneplácito da aristocracia, da hierarquia da Igreja Católica e da própria Família Real, apesar de a sua instalação ser considerada ilegal. Entre os anos sessenta e anos oitenta de 1800, franciscanos José António Afonso

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e jesuítas constituíram numerosas instituições de vocação assistencial e de ensino, por todo o país, com maior evidência no Norte. Estas instituições fugiam ao controlo da inspeção do Estado e à autoridade episcopal nacional, o que motivou acesas críticas da ala liberal regalista. Em 1901, pelo Decreto de 18 de Abril, as congregações constituíram-se como associações subordinando-se à autoridade eclesiástica nacional. No entanto, tal permitiu inventariar trinta e uma congregações diferentes, com cento e sessenta e quatro estabelecimentos ou casas. O poder clerical constituía-se com novas formas. Esta conjuntura não agradou a ninguém e motivou duros protestos do anticlericalismo católico e do anticlericalismo laico.

Durante o período que medeia de 1822 até finais do século XIX pudemos assistir à reconfiguração do poder da Igreja Católica em simultâneo com um processo de secularização, pautado pela distinção entre a “ciência subjetiva” - a moral - e a “ciência objetiva” - o direito - (Carneiro, 1864, p. 21), que se traduz no modo como a liberdade se declina em termos de direitos “absolutos” e direitos “hipotéticos” (id., p. 57 sg.).

As posições liberais vão paulatinamente abrindo o campo semântico da cidadania: dos direitos da primeira geração - liberdade de expressão, de consciência e de livre opinião - até aos da segunda geração - sufrágio, associação profissional e sindical, igual acesso aos cargos públicos. Tal vai implicar, nomeadamente, que a distinção entre moral civil e moral religiosa surja cada vez com mais substantivação de que é paradigmática a criação, em 1878, do Registo Civil (que desde 1830 é esboçado). Este Registo Civil é, por definição, laico, o que significa que é extensível a todos os “portugueses não católicos”, e representa, do ponto de vista das relações Estado- Igreja, uma evolução no sentido de criar um elo orgânico entre o Estado, os cidadãos e a religião católica, já que compagina a garantia da liberdade de consciência com a integração dos não-católicos no sistema administrativo; é, no essencial, a legitimação da distinção entre contrato civil e sacramento religioso. Aliás, o Registo Civil vai no sentido do já estipulado pelo Código Civil de 1858, em que se abria a possibilidade de que os casamentos, entre súbditos portugueses não-católicos, produzisse efeitos civis, apesar de estipular que o casamento tivesse que ser obrigatoriamente católico. (Coelho, 1906).

Entre as múltiplas reações que este processo originou, poder-se-á recensear a que o casamento civil desencadeou. A título ilustrativo evocamos os argumentos de Sebastião António Barbosa (1866). Ironicamente, o Autor começa o seu opúsculo escrevendo que o casamento civil é a “mania mais recente” do Século; compara-o

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com a inovação do caminho-de-ferro, dizendo que se, em teoria, todas as “inovações são ótimas” é contudo “preciso regulá-las entre os limites do razoável e do justo” (p. 1). Se tal sucedeu com o caminho-de-ferro, por inúmeras razões, tal, contudo, não sucede com o casamento civil. Barbosa encontrou esta imagem para introduzir a polémica: “pode a autoridade civil, que é católica em Portugal, mandar ou permitir aos súbditos católicos o casamento civil?” (p.2), especificando que tal significa um “atentado contra a liberdade de consciência” e, por extensão, um “atentado contra a consciência católica”; diz, sentencioso, que “admitida uma religião admitem-se os seus princípios” (id.), o que certamente não está acontecendo porque “um governo católico, quando regula esses efeitos civis” não deve “pôr em conflito a consciência do católico com o seu dever de cidadão” (p. 3).

É verdade, que o culto católico, quando celebra os seus atos públicos também entra no domínio das temporalidades, que pertence à autoridade civil, mas entra com todo o respeito; faça-o assim esta autoridade, quando entra no domínio do catolicismo; permita, ou mande se quiser, que os católicos vão fazer os seus casamentos perante o magistrado civil; e mande que o católico celebre o seu casamento diante do próprio pároco; e se quer o registo civil, mande que este casamento vá depois registar-se perante o magistrado; assim ficará garantida a liberdade das diferentes comunhões (onde as há) e achará a consciência católica sempre humilde e respeitosa às suas leis, a que ela tem obrigação de obedecer em tudo, e, em toda a parte, menos em queimar incenso aos ídolos, porque somente ali não poderá acompanhar a sociedade civil (p. 4).

O Autor, em seguida, afirma que tal princípio se refere só às “comunhões reformadas que não admitem o sacramento do matrimónio” (id.), não concebendo, portanto, que tal se aplique em Portugal. Reitera, agora, o argumento, com base na seguinte premissa:

Em Portugal não há, na verdade, esse imperioso mandato, que envolve a necessária transgressão da doutrina do concílio, mas há a franca permissão da transgressão proposta no código por José António Afonso

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um governo católico, que por sua crença e posição, não deve querer lançar mais este pomo de discórdia no seio de uma nação geralmente católica, e com que nada lucrariam as diferentes comunhões quando as houvesse; porque pode muito bem legislar- se para estas regularizarem os seus casamentos sem permitir aos católicos a transgressão das suas crenças (p. 5).

Sebastião António Barbosa admite veladamente a existência de “diferentes comunhões” e, perante tal facto, enreda-se nos meandros constitucionais, convocando os Artigos 6º. e 145º. da Carta para concluir que “se a liberdade de consciência consiste em cada um não ser inquietado no exercício da sua religião, com a mais forte razão não deve ser inquietada a crença católica no exercício da sua religião, que é a do Estado, e dominante no país” (p. 6). Em síntese o Autor argumenta que a questão se reduz “a conciliar a liberdade civil com a liberdade religiosa” (p. 7) e, de novo, jogando com os dois Artigos da Carta Constitucional, é liminar numa inequívoca conclusão:

Se algum português tiver a desgraça de deixar o catolicismo, entendo que deve ser considerado como estrangeiro; pode nesse caso praticar o seu culto particularmente, sem ofender a religião do Estado, e como tal fica excluído dos cargos públicos, em virtude do Artigo. 6º. da Carta, que declara o catolicismo a religião do Estado (id.).