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José António Afonso

Instituto de Educação, CIED Universidade do Minho

Introdução

A emergência, no Portugal oitocentista, de movimentos acatólicos levantou indelevelmente a questão da pluralidade religiosa e, de modo larvar, mas com uma maior amplitude, questionou o processo de secularização da sociedade, cujo índice de maior significância, a separação da Igreja do Estado estava longe de ser uma realidade.

Naturalmente, num contexto onde a hegemonia de Igreja Católica é radicalmente forte, apesar da sua matriz regalista, as propostas dos movimentos protestantes – e de muitos intelectuais liberais – foram lentamente impondo um conjunto de equilíbrios constitucionais que com o advento da Republica, em 1910, se estilhaçaram, dando- se inicio a um intenso e dilemático processo de laicização, que paulatinamente foi definhando até ao golpe militar de 1926, onde se (re) inaugura o regime de monopólio religioso.

Temos, como tema central, desta nossa reflexão, o modo como os protagonistas protestantes foram vivendo estas transformações da sociedade portuguesa. O ator que destacaremos para decantar a secularização da sociedade é a Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (ILCAE), que desde 1880 se assume como manifestação nacional da independência de Roma. Convocamos para a análise as crónicas e os relatórios que os elementos portugueses periodicamente enviaram para a Spanish and Portuguese Church Aid Society - sociedade missionária inglesa implicada no apoio às igrejas reformadas episcopais da Península Ibéria (Irwin, s.d).

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Seguiremos, então, todo o percurso que vai da Monarquia Constitucional até ao derrube da I República, através das formas retóricas usadas pelos protestantes nos sucessivos reportes para a revista da sociedade, Light &Truth, sobre o seu processo de inserção da sociedade.

Ao enfatizarmos um ponto de vista particular, procuraremos compreender como se foi operando a passagem de uma minoria religiosa para uma religião minoritária (declinada na sua diversidade) – bem assim como a sua regressão –, tendo presente que tal é a expressão das relações Estado-Igreja (s), e que a educação é incontornavelmente a expressão de um quadro jurídico especifico e, porventura, um amplexo das mudanças socio-simbólicas. Incidiremos, assim, a nossa análise nos modos como o projeto educativo dos protestantes portugueses - concebido desde o início da sua presença na sociedade portuguesa como crucial - se foi reconfigurando, sem, no entanto, perder a sua indelével matriz de processo de autonomia individual e, quiçá, de emancipação coletiva.

Cronologicamente, o nosso propósito está situado em dois ciclos, a Monarquia Constitucional e a I República, onde os movimentos acatólicos viveram dois regimes jurídicos: constitucionalização da religião, sem garantia de pluralismo religiosos, apesar de uma tolerância mitigada, característico da Monarquia Constitucional, e fim da confessionalidade do Estado que, paradoxalmente, representam a intromissão do próprio Estado (a partir da Lei da Separação) no desenvolvimento e autonomia das confissões religiosas. Outros dois ciclos sucedem-se, mas ficam fora do nosso objetivo da análise: o do Estado Novo, que pela sua perdurabilidade é atravessado por tensões entre o Estado e a Igreja Católica, mas onde se enraíza o teor da Concordata de 1940 e, já perto do seu estertor, ensaia em 1971, uma Lei de Liberdade Religiosa; é um tempo politico que Jónatas Machado (2008) caracteriza como de atribuição, às outras religiões, “de uma carta de tolerância, que não evitava a descriminação jurídica”, e o do Portugal democrático, fruto do 25 de Abril de 1974, que progressivamente pretende criar uma “comunidade constitucional inclusiva”, onde o direito à liberdade religiosa é uma incontornável marca de um tempo que rompa com o “ciclo vicioso da discriminação” (Jónatas Machado), de que a Lei de Liberdade Religiosa de 2001 é um momento impar (Vilaça, 2006).

O nosso inquérito a esses dois ciclos (o da Monarquia e o da República) assenta no evidenciar de uma tendência que o movimento protestante patenteia: é um projeto regenerador da sociedade, que via a educação como meio para se inserir no José António Afonso

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Laicidade, Religiões e Educação na Europa do Sul no Século XX

espaço público. Nos dois ciclos políticos a tendência assinalada desdobra-se em dois momentos: um em que se torna nítida a visibilidade pública, ora através da adesão a causas cívicas e civilizacionais, ora via o próprio processo de consolidação das comunidades protestantes; o outro momento é essencialmente de reconfiguração com base num ensimesmamento (preocupação clara pela não desagregação das comunidades) que corresponde a uma fase nitidamente evangélica.

O debate que estes protagonistas vão estimulando, ainda nestes dois ciclos, prende-se, na sua plenitude, com a assunção plena do pluralismo religioso e da liberdade de cultos - sendo a liberdade de ensino (querendo significar, também, o ensino religioso) - combatendo, portanto, todas as formulações jurídicas que se pautam pela tolerância ou pela intromissão (como sucede na República, com a Lei da Separação, apesar das revisões parciais de 1918 e 1926).

Como consequência, dois tipos de conflitos emergem. Na Monarquia Constitucional, é essencialmente um conflito religioso (e em sentido restrito, ideológico) com resiliências sociológicas protagonizadas pelos sectores mais conservadores da hierarquia religiosa. Na República, o conflito é fortemente político, sendo que as posições em confronto declinam-se em termos exclusivamente políticos, através da tradução jurídica que regula a “matéria religiosa” (como refere Marnoco e Sousa), ou seja, o sistema de Separação, não adotado expressamente na Constituição de 1911. De um Estado confessional cesaropapista até um Estado laico regalista, um sistema coerente e dinâmico de representações do mundo social foi-se constituindo, um reportório de figuras e de identidades coletivas, lançando, portanto, à sociedade desafios em momentos determinados da sua história.