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De uma minoria religiosa que se constrói à afirmação identitária de uma religião minoritária

Ao longo de Oitocentos foram-se disseminando as manifestações acatólicas, algumas delas intimamente conectadas com a presença de protestantes estrangeiros no âmbito das legações diplomáticas. Em 1809 a Sociedade Bíblica de Londres começa a operar em Portugal.

Entre 1830 e 1900 é o período em que se começam a institucionalizar as primeiras confissões: Igreja Evangélica Espanhola (1870), Igreja Presbiteriana (1875) e a Igreja Metodista (1877) bastante influenciadas pelo espírito do Réveil e pela instalação de Missões, como são os casos de Robert Kalley na Madeira em 1838 ou o de Helena Roughton em Lisboa. Mas este período é também marcado pela criação das primeiras igrejas portuguesas como sejam a de Robert Stwart, em Lisboa, tida como a primeira comunidade presbiteriana; a do anglo-português James (Diogo) Cassels, que em 1868 cria em Vila Nova de Gaia a primeira igreja metodista; a iniciativa de George Robinson em Portalegre, a partir de 1889; ou a instalação de Maxwell Wright, em 1880, nos Açores; e a Igreja Evangélica Lusitana, em 1880, resultante do protagonismo de padres católicos egressos e dissidentes de outras confissões com fortes raízes no Norte (Vila Nova de Gaia e Porto) estendia a ação pelo País, com presença assinalável nas cidades do litoral. Este período caracteriza-se por uma evangelização aguerrida e por uma implantação social crescente, nomeadamente pela criação de escolas elementares e dominicais, como ainda as Uniões Cristãs da Mocidade. Note-se que este momento corresponde ao aumento do protagonismo das correntes do catolicismo social.

Entre 1900 e 1910 é o tempo da consolidação das comunidades protestantes e do surgimento da primeira geração de protestantes portugueses, como é também o início das correntes evangélicas (batistas, darbistas e pentecostais). Neste período reforça-se a evangelização pela introdução de novas formas e novos territórios de ação social – clínicas, lares, cooperativas, associações de socorros mútuos, entre outras modalidades de assistência aos membros das comunidades evangélicas – mas é também o momento em que a concorrência, mesmo com a Igreja Católica e os movimentos sociais, se torna mais visível no campo social, em simultâneo com um conjunto de hesitações de ordem política face à Monarquia, chegando mesmo alguns membros protestantes, como seja o caso de Joaquim dos Santos Figueiredo,

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a fazer um apelo à “criação de correntes democráticas” (Cardoso, 1998; Cassels, 1906, Moreira,1995; Moreira, 1944).

A ILCAE é apoiada pela Spanish and Portuguese Church Aid Society, criada em 1870 com objetivos amplos, nos quais naturalmente sobressai o de consolidar uma nascente igreja episcopal. É neste quadro que o órgão da Sociedade, a revista Light & Truth, se mostra sensível às colaborações portuguesas.

As páginas do Light & Truth são indelevelmente a expressão de como a ILCAE se foi afirmando na sociedade portuguesa (nos dois ciclos políticos identificados – o da Monarquia Constitucional e o da 1ª República) forjando uma identidade muito particular. As narrativas (crónicas, relatos e esporadicamente artigos – que no período republicano vão sendo cada vez em maior número, em detrimento dos registos mais factuais, abundantes no período monárquico) evidenciam como os protagonistas quotidianamente vivenciaram as dinâmicas locais de criação de comunidades e se empenharam na organização episcopal e nas definições litúrgicas e teleológicas da ILCAE. O clima político onde esta afirmação se foi consolidando é marcado, desde os anos de 1880, por inúmeras incongruências e contradições. Mas esse período também permite captar o momento republicano desde o seu alvor até ao seu definhamento, patenteando os sonhos, as esperanças, assim como as desilusões e a frustração por não se conseguir implementar o sonho – que os evangélicos apoiaram, sem qualquer espécie de reservas, logo em 1910. O ciclo republicano é relatado num registo mais reflexivo (abandonando o tom etnográfico que quase em exclusivo é o característico do ciclo monárquico), com uma tónica extremamente polémica, mas sem se isentarem de conteúdos onde a autoreflexão está patente. O que foi intuído e experienciado como um potencial estado axial que possibilitaria a incontornável afirmação de uma identidade religiosa vai-se pulverizando (apesar do intenso empenho na consolidação da República), roçando, por vezes, o desânimo e o desalento.

Os registos escritos para um destinatário estrangeiro – putativamente um leitor anglicano e anglófono – desvendam o porquê de algumas considerações menos diplomáticas e uma relativa abertura a temas que normalmente não surgiam na hemeroteca protestante portuguesa. A convicção das narrativas espelha uma proposta de adesão, de apoio, em suma, do incondicional reconhecimento pela luta contra o Romanismo, materializada numa Igreja Nacional independente – situação que nem sempre (ou muito raramente) se sentia que em Portugal fosse uma realidade política. Este é pulsar que os textos deixam antever e com um certo grau grande de José António Afonso

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Laicidade, Religiões e Educação na Europa do Sul no Século XX

plausibilidade vão forjando um repertório das diferenças – ou da especificidade da ILCAE – mais nítido no período monárquico, com a distinção de três entradas.

Uma onde se privilegiam as dinâmicas locais e regionais, expressando as múltiplas referências dos processos de implantação e paulatina disseminação, e ainda se detalha o processo de constituição e consolidação das comunidades (públicos, redes de sociabilidade, adesões e alianças com outros protagonistas sociais, etc.), bem assim como é lançada uma memória através de pequenas histórias de vida das primeiras conversões. São nesta entrada recordados e louvados os colportores, A segunda entrada é a dimensão legitimadora da constituição da ILCAE (liturgia, teleologia, organização paroquial), mas evidenciando a oferta educativa, através de uma rede escolar consolidada e a criação (ao nível das comunidades) de organismos associativos e filantrópicos. A terceira entrada é pautada por um conjunto de considerações sobre a inserção da ILCAE no espaço público, que captam com detalhe as resistências ao nível local, as sensibilidades liberais, as oscilações das posições políticas, os entendimentos diversos das autoridades públicas sobre a aplicação da legislação ou as múltiplas faces da resistência católica, assim como os debates nacionais em torno das incoerências legislativas sobre a liberdade de cultos. Estes são em traços gerais os pontos essenciais dos registos patentes no Light & Truth – dada a extensão das referências convocadas (cerca de 100) não se optou por descriminá-las, mas sim sistematizá-las na globalidade, remetendo-se para a revista, onde só se indicam os anos consultados.

Para findar, os textos evidenciam uma lógica identitária ancorada nos “pontos de interação” (James, Good, 1977) - ou seja, as comunidades na sua autonomia sociológica e cultura genesíaca – e uma lógica de projeto educativo moderno – fomentar socializações e estimular sociabilidades (Bountry, 1998).