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2 OS ESTUDOS SOBRE A NEGAÇÃO VERBAL NO PORTUGUÊS

2.3 A PROPOSTA DA CLITICIZAÇÃO DO ADVÉRBIO NEGATIVO PRÉ-

VERBAL

Através de análise fonética e de testes sintáticos, alguns pesquisadores procuram demonstrar o estatuto de clítico do advérbio negativo pré-verbal no PB. É certo que há, no mínimo, duas formas de realização do não pré-verbal. Esse fato refletiu, por exemplo, no processo de transcrição do advérbio não nos textos do corpus C-ORAL- BRASIL, em que foram adotadas duas formas de representação desse advérbio, conforme pode ser visto nos exemplos abaixo:

(1) bfamdl23

*BAR: [173] eu não estou sendo gravada //

(2) bfamdl31

As formas não e nũ foram adotadas na transcrição para representar justamente o que foi percebido pelo transcritor, no ato da transcrição, como uma forma plena e uma forma reduzida do advérbio negativo pré-verbal, respectivamente.

A primeira evidência a favor da cliticização seria o fato de haver uma forma reduzida foneticamente para o advérbio. Ramos (2002) faz cinco predições acerca do comportamento de um clítico, a fim de demonstrar tal estatuto do não pré-verbal. De acordo com Ramos (2002, p. 157), as condições abaixo favoreceriam a realização da forma reduzida do advérbio:

a) posição não final na sentença:

b) a presença da variante plena “não”, na mesma sentença;

c) a posição pré-verbal; e

d) a presença de quantificadores do tipo “ninguém”, “nada”, na mesma sentença; e

e) contiguidade com V

Se atestadas, as cinco predições acima demonstrariam o estatuto de clítico do

não pré-verbal. Ramos (2002) apresenta outros dois fatores de favorecimento da forma

reduzida: a realização em orações principais e fatores extralinguísticos como faixa etária jovem e escolaridade baixa. A princípio, as cinco predições de fato ocorrem em PB:

a) impossibilidade de realização da forma reduzida em final de sentença: (3) *ele falou nũ ~ *ele não falou nũ

Nenhum dos estudos consultados para este trabalho registrou uma ocorrência desse tipo. Além disso, não houve nenhum caso semelhante no corpus C-ORAL-BRASIL.

b) a presença da variante plena “não”, na mesma sentença:

(4) bfamdl23

*JAN: [14] cê nũ toca guitarra não //

c) a posição pré-verbal: (5) bfamdl14

*MAU: [174] eu nũ entendo //

(6) bfamdl10

*REG: [100] nũ <arruma nada> //

e) contiguidade com V: (7) bfamdl15

*DML: [119] nũ foi //

Se a hipótese dos testes sintáticos estiver correta, parece que a proposta de Ramos ganha respaldo empírico. Contudo, há muito debate em torno da natureza de identificação dos clíticos, isto é, se seria sintática ou fonética.

Após analisar qualitativa e quantitativamente os dados de sua pesquisa, a autora

chega à conclusão de que “a alternância não/num constitui uma mudança linguística em progresso, condicionada por fatores internos e externos” (RAMOS, 2002, p. 165). Este

estudo não pretende analisar sociolinguisticamente a alternância não/nũ. Contudo, a título de ilustração, apresentamos abaixo um gráfico baseado nas transcrições do corpus C-ORAL-BRASIL com respeito à distribuição da realização da forma plena e da forma reduzida em estruturas Neg V e Neg V Neg:

Gráfico 2 – Frequência da realização da forma plena e da forma reduzida do advérbio negativo pré-verbal baseado nas transcrições do corpus C-ORAL-BRASIL

15,60%

61,53% 0,31%

22,56%

Formas plenas e reduzidas do advérbio

"não" em posição pré-verbal no corpus C-

ORAL-BRASIL

Forma plena (Não V) For a reduzida Nũ V

Forma Plena/Plena (Não V Não) For a Reduzida/Ple a Nũ V Não)

Salientamos que uma análise fonética é muito importante para que a distribuição das formas do gráfico acima reproduza os verdadeiros valores encontrados nessa quantificação preliminar. É preciso dizer que a transcrição não é um parâmetro confiável, uma vez que o transcritor pode cometer erros perceptuais involuntários, isto é, ele pode substituir uma forma plena por uma reduzida, por exemplo. Portanto, o gráfico acima é apenas uma ilustração do que os dados do corpus C-ORAL-BRASIL mostrariam a respeito da distribuição entre formas plenas e reduzidas do advérbio de negação em posição pré-verbal acompanhado ou não de outro não no final da sentença. É possível notar que as formas reduzidas estão presentes em maior número tanto em construções Neg V, quanto em construções Neg V Neg. Após os dados passarem por uma análise fonética refinada, um tratamento estatístico poderia evidenciar se de fato a maior quantidade de formas reduzidas em relação às plenas encontrada nos dados do C- ORAL-BRASIL é significativa.

Sousa (2007) faz uma análise fonética fina de dados de negação pré-verbal extraídos de entrevistas sociolinguísticas. A autora encontrou as formas (i) plena (não), (ii) reduzida (nũ), (iii) reduzida desnasalizada (nu), (iv) vogal alta posterior nasalizada (ũ) e (v) a consoante nasal + uma forma livre (n’adianta). Abaixo são apresentados dois exemplos da autora (SOUSA, 2007, p. 59) ilustrando as formas (iii)-(v):

(8) Mariana nu1 tem uma indústria ainda... Ũ1 tem uma fábrica de calçados... (E3)

(9) Na época n‟aceitava. (E17)

Em (8), a autora aventa a hipótese de vogal alta posterior nasalizada ser um índice anafórico ligado à forma reduzida desnasalizada, por isso foi inserida a anotação subscrita nas duas formas, indicando coindexação.

Ancorada em sua análise fonética, outra hipótese sugerida por Sousa (2007) é a existência de um ciclo de gramaticalização envolvendo as formas reduzidas da negação pré-verbal no PB. De acordo com o ciclo proposto por Hopper & Traugott (1993), os itens que passam pelo fenômeno da gramaticalização seguem determinadas etapas até a conclusão do processo:

Um item inicialmente com função lexical passa a desempenhar função gramatical, posteriormente esse item gradativamente será reduzido foneticamente, funcionando como um clítico, até desempenhar a função de afixo, etapa essa em que o item já se encontra bastante reduzido foneticamente. Inicialmente, Sousa (2007) propõe que as formas reduzidas nũ e nu estariam na etapa “clítico” do ciclo de gramaticalização, ao passo que a forma n’ seria parte da etapa “afixo” desse ciclo. Contudo, é preciso ressaltar que essa hipótese precisa ser testada com dados de outros dialetos do PB, já que a autora analisou apenas dados de entrevistas sociolinguísticas da cidade de Mariana/MG. Além disso, é possível que haja restrições no uso de cada forma, o que, de certa forma, barraria a hipótese do ciclo de gramaticalização. Por exemplo, a forma denominada afixal n’, provavelmente, não ocorreria em contextos

fonéticos seguidos por consoantes (*n‟cai, *n‟guarda). A autora encontrou somente

dados que mostram a incorporação da consoante nasal em verbos iniciados por vogais

(n‟importa, n‟adianta). Por outro lado, a forma ũ, dificilmente ocorreria no contexto

inverso, ou seja, seguida por um verbo iniciado por vogal (*ũ adianta, *ũ importa). Essas propostas de restrições merecem um estudo empírico aprofundado, dispondo de uma análise fonética refinada.

2.3.1 Breve comentário sobre a proposta de cliticização

A proposta de cliticização objetiva elevar o advérbio de negação que ocorre em posição pré-verbal ao estatuto de clítico. São feitas análises acústicas e, principalmente, testes sintáticos, no intuito de comprovar a hipótese. No entanto, esse tipo de análise precisa estabelecer uma metodologia adequada. Ferrari (2015) investiga o estatuto do pronome cê no PB, que comumente é tratado na literatura como um clítico, sobretudo por evidências de testes sintáticos (cf. VITRAL, 1996 e RAMOS, 1997). A autora propõe que a tonicidade (os clíticos são considerados formas átonas) deve ser medida com parâmetros acústicos, e não sintáticos. Baseada em outros trabalhos (BARBOSA, 2000, 2002), Ferrari (2015) diz que a sílaba acentuada em PB apresenta maior duração. Desse modo, tal parâmetro acústico deve ser levado em consideração na análise dos dados. Esse método torna possível identificar itens átonos (clíticos, por exemplo) ou tônicos (formas plenas). Como num corpus de fala espontânea há, principalmente, grande variabilidade do conteúdo locutivo do enunciado e a possibilidade de mudança

da taxa de elocução de um falante, a autora adotou o método de se comparar “as formas pronominais com as sílabas de um mesmo enunciado e de uma mesma unidade tonal”

(FERRARI, 2015, p. 99). Nesse tipo de análise, deve-se considerar o espectrograma e a percepção do sinal acústico para segmentar o enunciado em sílabas fonéticas. Depois de segmentar as sílabas para comparação, ainda é preciso normalizá-las. Isso se deve ao fato de que

[s]ílabas que apresentam a mesma duração, mensurada em milissegundos, podem na realidade possuir valores diferentes, dependendo das vogais e das consoantes nelas contidas. Faz-se, portanto, necessário implementar um processo de normalização das sílabas que leve em conta tais fatores e permita comparar as sílabas diferentes de forma mais adequada. (FERRARI, 2015, p. 104).

Essa normalização é feita através de um script para o software Praat chamado SGdetector (BARBOSA, 2006). Além de todos esses processos, é necessária ainda uma validação estatística dos dados analisados. A metodologia adotada por Ferrari (2015) é bastante inovadora e permite vislumbrar resultados interessantes no que se refere ao estatuto de cliticização de formas reduzidas no PB. Seria o caso de incorporar tal metodologia na investigação das formas reduzidas do advérbio não em posição pré- verbal no PB.