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2 OS ESTUDOS SOBRE A NEGAÇÃO VERBAL NO PORTUGUÊS

2.5 A PROPOSTA DA IMPLEMENTAÇÃO DA NEGAÇÃO DUPLA NA

Na proposta de implementação da negação dupla na escrita são considerados dados diacrônicos, pois o objetivo é observar em qual período essa estrutura surge no PB. Além disso, essa proposta considera que há uma transição, ou seja, uma mudança da negação pré-verbal em direção à negação dupla. Dessa forma, a negação dupla é tratada como uma variante inovadora na língua. Nessa proposta, busca-se, de certa maneira, correlacionar os dados de escrita a características oriundas da fala, como a pausa. Isso pode ser observado nessa passagem, em que as autoras mencionam um dos

objetivos de sua pesquisa: “mostrar a correlação entre construções negativas e

pontuação como índice de limite sintático/marcador de pausa, dentro da estrutura frasal” (SEIXAS; ALKMIM, 2013, p. 86).

Seixas (2013), utilizando textos dos séculos XVIII-XIX, data a implementação da negação dupla na escrita na primeira metade do século XVIII (cf. exemplo 1 abaixo). A autora menciona que, provavelmente, essa estrutura já constituiria parte do repertório

da fala há algum tempo antes, tendo em vista que a escrita é mais conservadora do que a fala no que diz respeito à adoção de formas inovadoras. Segundo Seixas (2013), inicialmente a negação dupla ocorreria em estruturas sintáticas complexas desde o século XVIII até a primeira metade do século XIX, conforme pode ser visto em alguns exemplos que a autora apresenta (SEIXAS, 2013, p. 98-99):

(1) “Não he com as nossas péssoas que o fasem, não; he com o nosso dinheiro.” (Peça: O marido confundido, Alexandre de Gusmão, 1ª metade do XVIII)

(2) “Nao exigimos, que entrem para o Ministerio membros da opposiçao; nao, nao.”

(Jornal O Despertador Mineiro, 1842)

(3) “Fazemos estas reflexoes, nao por desconhecer a autoridade da Realesa e menos presa-la, nao, nao: he antes por amarmo-la muito.” (Jornal: O Despertador Mineiro, 1842)

A partir da segunda metade do século XIX, a negação dupla ocorreria em estruturas sintáticas mais simples, em que frequentemente os dois operadores de negação estão contíguos ao verbo (SEIXAS, 2013, p. 99-100):

(4) “Não põe, não.” (Peça de teatro : Uma véspera de Reis, Artur Azevedo, 1873) (5) “Não desconfia não.” (Peça de teatro: Nova viagem à lua, Artur Azevedo, 1877) (6) “Não ouso não.” (Peça de teatro: Os Noivos, Artur Azevedo, 1880)

A transição da forma canônica à dupla poderia ser comprovada não só pela redução da complexidade sintática, como também pela pontuação. De acordo com Seixas (2013), o ponto e vírgula que separa o segundo não ocorre em praticamente todos os exemplos pesquisados da negação dupla na primeira metade do século XIX. A partir de estudos realizados sobre as funções da pontuação na escrita, Seixas (2013) explica que o ponto e vírgula marcava uma pausa maior do que a vírgula. A autora diz que

havia uma articulação da pontuação com a organização discursiva e sintática da sentença. Desse modo, o uso do ponto e vírgula em sentenças longas parece indicar que, em um primeiro momento, este pontema surgiu como um efeito retórico, para denotar uma pausa ainda mais longa do que a da vírgula (SEIXAS, 2013, p. 105).

A hipótese é de que, se o ponto e vírgula denotava uma pausa maior do que a vírgula, quando o segundo operador não é separado por nenhum tipo de pontuação, ele teria se gramaticalizado, passando a fazer parte da sentença. O ciclo que a autora propõe é apresentado abaixo:

1ª etapa → [estrutura oracional] + não [...] (com o uso do ponto e

vírgula):

(131) “Nao se pense que nós nos oppomos ao recrutamento; nao [...]”

(Editorial de jornal, 1841)

2ª etapa → [estrutura oracional] + não [...] (com o uso da vírgula):

(159) “Tu não vai mesmo, não, Toinho?” (Peça de teatro, 1892)

3ª etapa → perda da vírgula:

(164) “É mentira, não vou não.” (Obra literária, 1899) (SEIXAS,

2013, p. 105).

Na primeira etapa, que vai da primeira metade do século XVIII até a primeira metade do século XIX, o segundo não era separado por ponto e vírgula, e tal pontuação indicava uma pausa longa em sua realização na fala. Na segunda etapa, que compreende a segunda metade do século XIX, o segundo não é separado por vírgula, o que indica uma menor duração da pausa. N terceira e última etapa da transição, que compreende o final do século XIX, o segundo não não é separado por nenhum tipo de pontuação, por isso teria se gramaticalizado e passado a integrar a sentença sem nenhum tipo de pausa.

2.5.1 Breve comentário sobre a hipótese da implementação da negação dupla na escrita

A hipótese da implementação da negação dupla na escrita, a princípio, preveria

um processo de mudança linguística, conforme pode ser visto na passagem a seguir: “a

hipótese apresentada pelo presente trabalho descreve o percurso da mudança linguística (da [NãoV] para a [NãoVNão]) em três etapas (...)” (SEIXAS, 2013, p. 119). A três etapas da mudança mencionadas levam em consideração tanto a complexidade sintática da sentença, quanto o uso da pontuação, que indicaria, em última análise, uma marcação

de pausa. É importante ressaltar que pausa é uma propriedade da diamesia falada, pois é uma característica acústica perceptível auditivamente. Desse modo, correlacionar pontuação, uma categoria da diamesia escrita, à pausa, uma categoria da diamesia da fala, é um critério de difícil comprovação.

Raso (2013)24 elenca as diferenças entre a fala e a escrita. De acordo com o

autor, estudar a fala com base na língua escrita “leva à não compreensão da modalidade falada” (RASO, 2013, p. 38). A pontuação, segundo Raso (2013), “não se trata de um recurso natural como a prosódia” (RASO, 2013, p. 23). Isso significa que não seria

possível correlacionar, a princípio, um parâmetro acústico, como a pausa, a um sinal gráfico, como a vírgula, ainda que a escrita de peças de teatros e as partes dialógicas de uma obra literária tentem reproduzir a fala, de certa forma (cf. NENCIONI, 1983). A escrita é baseada em princípios lógico-sintáticos, portanto a vírgula “marca uma

separação lógica entre sintagmas que não possuem regência direta” (RASO, 2013, p.

23).

As etapas de transição propostas compreenderiam períodos muito curtos de tempo para ocorrer uma mudança linguística no sistema. A separação do segundo operador por ponto e vírgula ocorreria no período que vai da primeira metade do século XVIII até a primeira metade do século XIX (o exemplo número 131 da autora data de 1841, cf. Seixas, 2013, p. 105), a separação por vírgula data da segunda metade do século XIX (o exemplo número 159 citado pela autora data de 1892, cf. Seixas, 2013, p. 105), já em 1899, ou seja, no final do século XIX, o segundo operador de negação já não apresenta mais a vírgula (exemplo 164 da autora, cf. Seixas, 2013, p.105). Poderia não ser o caso de uma mudança linguística, no sentido de os sinais de pontuação corresponderem à presença ou à ausência de pausa na fala, mas apenas de uma mudança ortográfica para representar o fenômeno da negação dupla que já fazia parte do sistema de negação verbal do PB.