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2 OS ESTUDOS SOBRE A NEGAÇÃO VERBAL NO PORTUGUÊS

2.6 A PROPOSTA DA NEGAÇÃO DUPLA COMO INOVAÇÃO

Em um quadro teórico mais amplo do que o que será apresentado nesta seção, Vitral (2015) analisa a negação dupla no PB como um processo de gramaticalização por subjetificação e luta por reconhecimento. O autor considera o ciclo de Jespersen em sua

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proposta, compartilhando a ideia da redução do advérbio pré-verbal e posterior inserção de uma palavra pós-verbal que adquirirá valor negativo. Nas tentativas de provar o ciclo, haveria, a princípio, duas atestações empíricas: a equivalência entre a forma pré- verbal e a dupla, pelo menos a certa altura do ciclo, e os processos de gramaticalização, que envolvem aquisição de propriedade semântica, isto é, certa palavra passa a expressar conteúdo negativo, e redução fônica – podendo correlacioná-la aos processos de cliticização e afixação do ciclo da gramaticalização.

O autor considera que negação dupla veicula conteúdo pragmático na fala, citando trabalhos que caracterizam essa forma como enfática (SCHWENTER, 2005), contrária à expectativa do interlocutor (CUNHA, 1996) ou pressuposicional (SCHWEGLER, 1991). Vitral (2015) distingue a negação interna da externa. Ele cita a proposta de Dahl (1979), que diz que a negação interna tem por objetivo inverter o valor de verdade de uma proposição:

(1) It is raining. (2) It is not raining.

A sentença (2) só é verdadeira se a sentença (1) for falsa ou vice-versa. Já em casos de negação externa, além de negar a proposição, a negação também nega um conteúdo implícito:

(3) It is false that it is raining. (4) It is not the case that it is raining.

O conteúdo que é negado nessas sentenças é de certa forma suposto ou está implícito pelo interlocutor. Por isso, a negação externa é considerada como uma denegação25. O autor ainda menciona a hipótese de Schwenter (2005)26 para comprovar que de fato a negação dupla está relacionada à veiculação de conteúdos pragmáticos. Sobre a negação dupla, a proposta de Schwenter (2005) diz, em termos gerais, que esse tipo de negação não é capaz de negar conteúdo novo no discurso. No entanto, Sousa (2012) apresenta um caso em que a negação dupla negaria conteúdo novo no discurso. O exemplo da autora, que Vitral (2015) cita, segue abaixo:

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Segundo Sousa (2013), a denegação é um ato negativo puramente responsivo. 26

(5) a. Tentei te ligar ontem, mas você não atendeu. b. Meu celular não tá funcionando não.

Portanto, a negação dupla seria capaz de negar tanto conteúdo dado quanto conteúdo novo no discurso. Vitral (2015) adota essa perspectiva e lança sua proposta, baseada no ciclo de Jespersen:

a instalação da dupla negação, com a multiplicidade de expressões negativas inovadoras e a redução de partículas pré-verbais, é processual e retratável por meio de um ciclo no qual as construções com dupla negação tendem à neutralização no que concerne aos conteúdos pragmáticos (VITRAL, 2015, p. 105).

A multiplicidade de expressões negativas inovadores a que o autor se refere é a possibilidade de haver expressões negativas de diferentes tipos em posição pós-verbal. Alguns exemplos do autor são: Maria não viajou não/coisíssima nenhuma/porcaria

nenhuma etc (VITRAL, 2015, p. 102). O ciclo proposto por Vitral (2015) inclui as

seguintes etapas:

1ª etapa: quando o elemento pós-verbal negativo inovador se instala, coocorrendo com a partícula pré-verbal, essa estrutura veicula conteúdos pragmáticos passíveis de interpretação e descrição por meio de noções como elemento dado no discurso ou proposições inferidas. Nessa ocasião, a negação pré-verbal é reservada apenas para negar conteúdo novo.

2ª etapa: Posteriormente, a partir do momento em que a estrutura da negação dupla passa a negar conteúdo novo, ela se torna uma variante da negação pré-verbal. Nesse contexto, abre-se um caminho para o processo de variação e mudança linguística, já investigada por vários pesquisadores.

O autor menciona que Sousa (2012, p. 73) verificou que a negação dupla ocorre mais em contextos em que a informação já é dada. Isso mostraria que o estágio em que a

negação dupla sofre neutralização é posterior ao estágio em que ela seria “condicionada

por aspectos pragmáticos” (VITRAL, 2015, p. 106). O autor então propõe que é somente quando as estruturas de negação dupla são reconhecidas como estruturas inovadoras é que elas possuem valor pragmático. Desse modo, haveria uma relação de causa e efeito entre a neutralização e o surgimento de novas expressões. Ou seja, quando estruturas de negação dupla deixam de ser formas inovadoras, perdem seu

caráter inovador, “se neutralizam e adentram o padrão linguístico, os falantes criam

novas expressões com dupla negativa com o intuito de garantir o poder expressivo que

se esvai” (VITRAL, 2015, p. 106).

O autor explica que o processo que envolve a neutralização é conhecido como perda do estatuto de trunfo, no mecanismo de luta por reconhecimento, o que faz com que os falantes busquem novas formas consideradas inovadoras. Tais formas adviriam da subjetividade dos falantes na luta por reconhecimento que, por sua vez, é o desejo do falante de ser reconhecido como sujeito pelo outro nas trocas simbólicas. Esse desejo é fruto de “uma impulsividade que leva o sujeito a divergir das normas sociais, buscando se satisfazer individualmente e reivindicando, em sua comunidade, a legitimidade de

seus desejos como indivíduo” (VITRAL, 2015, p. 97). Esse seria o cerne do processo

que leva à criatividade do indivíduo. Desse modo, a inovação linguística está diretamente associada à subjetividade, fazendo parte do processo de luta por reconhecimento. Quando uma dada forma passa a ser usada de forma frequente, isto é, quando sua frequência aumenta na língua, ela perde o estatuto de trunfo no processo de

luta por reconhecimento. É nesse ponto que “as formas inovadoras são criadas pelos

falantes de maneira a reaver a capacidade de ser trunfo na luta por reconhecimento que se reduz, ou é perdida, pelas formas conservadoras” (VITRAL, 2015, p. 98).

Levando em consideração a pragmática neo-griceana, o autor cita dois princípios de Horn (1989), reproduzidos abaixo (VITRAL, 2015, p. 101):

(6) A. O Princípio-Q:

Torne sua contribuição suficiente;

Diga tanto quanto você possa (dado o Princípio-R). B. O Princípio-R:

Torne sua contribuição necessária;

Não diga mais do que é necessário (dado o Princípio-Q).

Vitral (2015) explica que se esses princípios são violados ao falante introduzir formas inovadoras mais longas que expressam o mesmo valor de verdade encontrado

nas formas conservadoras, “o ouvinte é chamado a inferir um conteúdo adicional, subjacente, que introduz aspectos de conteúdos associados à subjetividade do falante”

(VITRAL, 2015, p. 101). Dessa forma, se o falante utiliza a negação dupla, quando essa forma é inovadora, ele veicula tanto o valor expresso pela composicionalidade dos itens

lexicais, ou seja, a operação de negação propriamente dita, quanto o valor de natureza subjetiva oriundo do estatuto de trunfo do mecanismo da luta por reconhecimento.

2.6.1 Breve comentário sobre a proposta da inovação linguística

A proposta de Vitral (2015) é de que a negação dupla advém de um processo cíclico de gramaticalização que envolve a subjetificação e a luta por reconhecimento. As formas inovadoras estão ligadas à subjetividade do falante. No entanto, quando a frequência de uso dessas formas aumenta, elas se neutralizam e entram de certa forma no padrão linguístico. É preciso mencionar que essa hipótese envolve uma série de outras propostas na literatura, que pode ser visto a partir do número de trabalhos que o autor cita em seu texto. É uma hipótese que merece uma comprovação empírica e maior investigação, pois leva em consideração conceitos fora do campo da Linguística, como a impulsividade do sujeito, o processo de criatividade do indivíduo e o desejo do sujeito ser reconhecido dentro de sua comunidade. A proposta não esclarece, no entanto, o que leva o indivíduo a ser reconhecido em certas comunidades e não em outras, isto é, qual seria a razão por trás das pesquisas empíricas mostrarem um número menor de formas inovadoras em certas regiões do Brasil, e em outras comunidades haver um número maior de negação dupla ou pós-verbal. Outra questão a ser investigada seria o processo de construção das formas inovadoras, pois, obviamente, elas devem obedecer a certas restrições no sistema linguístico. Por exemplo, não seria possível violar um padrão fonotático do PB por mais que o sujeito tenha uma impulsividade de ser reconhecido através do uso de formas inovadoras. No campo da estatística, seria interessante mostrar se outros fenômenos linguísticos também estariam sujeitos à relação diretamente proporcional entre a frequência e a neutralização das formas inovadoras na língua. Testes experimentais poderiam fornecer base à questão levantada se os falantes percebem, de fato, se certas formas já estão neutralizadas. É uma proposta que ainda precisa de embasamento empírico e experimental.