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A PROPRIEDADE FUNCIONALIZADA

No documento O DISCURSO PROPRIETÁRIO E SUAS RUPTURAS: (páginas 101-105)

CAPÍTULO 2 A PROPRIEDADE E SEUS CÓDIGOS

3.2 A PROPRIEDADE FUNCIONALIZADA

O Direito volta-se para recuperar aos excluídos o sentido do viver social, e tem relevância a função que desempenha no mundo jurídico e econômico aquele instituto - a propriedade - que era a cidadela do direito privado liberal. Se antes a função social da propriedade era exercida à medida que refletia a autonomia e liberdade humanas,315 impõe-se agora compreender sua função em face dos desprivilegiados, dos não proprietários; daqueles cuja autonomia e liberdade inexistiam por não serem proprietários.

A propriedade não funcional socialmente - isto é, aquela na qual é assegurado ao proprietário o exercício de seus poderes da forma que lhe convier, inclusive egoisticamente - é uma das faces que ela apresentou no seu percurso

313BARCELLONA, Diritto..., p.109.

314BARCELLONA, Diritto..., p. 112-113. BARCELLONA lembra que foi a mediação destas exigências com os postulados do Estado liberal que fizeram elaborar a fórmula do Estado Social de Direito, (idem, p.113).

315“A propriedade cumpriria necessariamente sua função social pela apropriação em si, como forma máxima de expressão e de desenvolvimento da liberdade humana. Esta dogmática inspiraria, com efeito, a codificação da Europa no último século e, em sua esteira, o nosso Código de 1916”. (TEPEDINO, G., A nova..., p.74).

evolutivo, e que acabou servindo para formar o discurso proprietário da modernidade. Sua configuração foi, no entanto, diversas vezes contestada. Cite-se, por exemplo, a doutrina cristã da Idade Média, reacendida pela doutrina social da Igreja,316 as lições de DUGUIT,317 e a concepção marxista acerca dos institutos econômicos e sociais.318 Depreende-se, daí, que tanto o individualismo proprietário como o funcionalismo proprietário são noções históricas.

De qualquer sorte, “da erupção do sistema individualista chegou-se à função social”.319 A visão da função social da propriedade passa pelo redimensionamento mesmo do direito de propriedade, e não como mais um limite aposto aos poderes proprietários. A concepção de que a propriedade deve ser utilizada de forma solidarística “incide sulla struttura tradizionale delia proprietà

316“A propriedade é, assim, ao mesmo tempo, um direito pessoal e uma responsabilidade social. Quem se apropria, por exemplo, de uma terra, assume a responsabilidade de utilizá-la para o seu próprio bem e para o bem dos outros. (...) A propriedade apresenta duas funções: 1.a) pessoal, de promoção do homem (contribuindo para que ele atinja a plenitude de seu desenvolvimento como homem); 2.a) social, de serviço à comunidade”. (ÁVILA, Fernando Bastos. Propriedade. In: Pequena

Enciclopédia da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1991. p.371).

317“Segundo Leon Duguit, todo o indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função social que decorre do lugar que ocupa. O proprietário, pelo fato de possuir a propriedade, tem de cumprir a finalidade social que lhe é implícita e comente assim estará socialmente protegido, porque a propriedade não é direito subjetivo do proprietário, mas função social de quem a possui”. (PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de propriedade. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.). A

questão agrária e a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.97-98). Consulte-se também

Moacir Lobo da COSTA. A propriedade na doutrina de Duguit. Revista Forense, Rio de Janeiro, v.153, p.31-39, maio/jun./jul. 1954.

318Pode-se fazer remissão aqui à explanação do tema contida na obra de Karl RENNER (op. cit.), de 1904, que é considerada por Fábio Konder COMPARATO como ponto de partida para a análise funcional do direito. (COMPARATO, A função..., p.73).

319FACHIN, Luiz Edson. Novas limitações ao direito de propriedade. Anais da XVI

dalllnterno,320 a tal ponto que se pode sustentar que a função social é a razão mesma pela qual o direito de propriedade é atribuído a um certo sujeito.321

Com a função social, a idéia de condicionamento de um direito a uma finalidade,322 geralmente adstrita ao direito público, ingressa no direito privado e conforma o direito de propriedade:

O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da

propriedade impõe ao proprietário - ou a quem detém o poder de controle, na empresa -

o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercerem prejuízo de outrem. Isto significa que a função social da propriedade atua como fonte da imposição de comportamentos positivos - prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não

fazer - ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta,

pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia.323

No dizer do Professor Orlando GOMES, a função social não se confunde com as limitações do direito de propriedade. Estas atingem o exercício do direito de propriedade, ao passo que a função social afeta a própria substância do

320PERLINGIERI, Introduzione..., p.73. 321PERLINGIERI, Introduzione..., p.71.

322A funcionalização dos institutos jurídicos vai muito além do direito de propriedade: funcionaliza-se todo o direito, que se torna promocional. Esta funcionalização exige novos métodos de abordagem do fenômeno jurídico: “Importa assim promover, na abordagem, a transposição do acento estrutural para o problema da função social do direito na sociedade, em termos “promocionais”, entendendo-se, na esteira de Bobbio, por função promocional, “a ação que o direito dá lugar através do instrumento da 'sanção positiva1, pela qual se busca 'promover' e 'incentivar' o cumprimento de determinada conduta socialmente desejável”. Est função não é nova. Mas é nova a extensão que ela tem tido e continua a ter no Estado contemporâneo: uma extensão em contínuo aumento que, por assim dizer, faz parecer inadequada e de alguma forma insuficiente qualquer abordagem do ponto de vista de uma teoria geral do direito que continue a considerar o ordenamento jurídico tão-somente do ponto de vista da sua função tradicional puramente protetora e repressiva. Neste sentido é que cremos poder afirmar a insuficiência conceituai e a aplicação anacrônica de um purismo metodológico, de caráter formal, na ciência jurídica, que tem privilegiado nos estudos de teoria geral do direito, ao longo do tempo, muito mais a análise estrutural dos ordenamentos jurídicos do que sua função social”. (RIBEIRO, Paulo de Tarso. Direito e mudança social. In: FARIA, José Eduardo (Org.) A crise do direito numa sociedade em mudança. Brasília: UnB, 1988. p.81-82).

323GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e

direito proprietário,324’325 constituindo-se “no seu fundamento, na sua justificação, na sua ratio”:326

As limitações, os vínculos, os ônus e a própria relativização do direito de propriedade constituem dados autônomos que atestam suas transformações no direito contemporâneo, mas que não consubstanciam um princípio geral que domine a nova função do direito com reflexos na sua estrutura e no seu significado e que seja a razão pela qual se assegura ao proprietário a titularidade do domínio.327

A função social da propriedade é tema dos mais complexos, cabendo discussões sobre várias de suas performances: se a propriedade tem função social ou é uma função social; se, com sua funcionalização, a propriedade deixa de ser um direito subjetivo; se o direito de propriedade é compatível com o vínculo da responsabilidade social; se, diante da funcionalização, resta ainda um conteúdo mínimo à propriedade, e outras, das quais a doutrina tem se ocupado proficientemente.328 Trata-se de um debate acérrimo, no qual variam os parâmetros de compreensão conforme as diversas orientações interpretativas.329 Para este trabalho importa, sobremaneira, a idéia que a funcionalização do direito de

324GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Estudos em homenagem ao Prof.

Dr. Ferrer Correia. Coimbra, número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra, v.2, p.432, 1989.

325Em análise do direito italiano, com base em MESSINEO, o Prof. Orlando GOMES nota que o fundamento dos limites aos poderes proprietários deixam de ser mera acidentalidade do direito de propriedade e são postos no elemento social. (GOMES, O., Direitos..., p.395).

326GOMES, O., A função..., p.432.

327GOMES, O., A função..., p.425. O notável civilista baiano marca a diferença entre limites e função social da propriedade: “Limitações, vínculos, ônus comprimem a propriedade, porque outros interesses mais altos se alevantam, jamais porque o proprietário tenha deveres em situação passiva característica”. (A função..., p.434).

328Qualquer tentativa de indicar a produção doutrinária sobre o tema conteria falhas e faltas. Pelas mãos, principalmente, do professor Gustavo TEPEDINO o melhor da doutrina italiana sobre o tema tem sido absorvido pela contemporânea civilística brasileira, e dela pode-se citar, exemplificativamente: Stefano RODOTÀ. op. cit.; Pietro PERLINGIERI. Introduzione...; Salvatore PUGLIATTI. La proprietà nel

nuovo diritto; Pietro RESCIGNO. Intervento. In: Crisi dello stato sociale e contenuto minimo delia proprietà. Ata da Convenção realizada em Camerino em 1982. Napoli: ESI, 1983.

propriedade causa uma ruptura no discurso proprietário da modernidade: “Per il diritto di proprietà, “alia vera linea di frattura si arriva quando, abbandonata l'idea di godimento pro se, si entra nel concetto di funzione di carattere socialé’.330

No documento O DISCURSO PROPRIETÁRIO E SUAS RUPTURAS: (páginas 101-105)