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A PROPRIEDADE MODERNA: UM MODELO ABSTRATO

No documento O DISCURSO PROPRIETÁRIO E SUAS RUPTURAS: (páginas 82-85)

CAPÍTULO 2 A PROPRIEDADE E SEUS CÓDIGOS

2.8 A PROPRIEDADE MODERNA: UM MODELO ABSTRATO

As definições legislativas de propriedade, a partir do arquétipo napoleônico, concentram-se num modelo proprietário: poderes proprietários exercíveis sobre a coisa apropriada.245 Numa operação historicamente marcada, abstrai-se o conceito246 que melhor refletia os interesses colocados em jogo na transição da medievalidade para a modernidade. “Mas tudo isto é verdade porque é necessário”, diz Ana PRATA,247 justificando a constituição da ideologia liberal como produto de necessidades econômicas muito precisas.

E de fato, é a abstração plena do modelo proprietário que vai permitir a “excepcional capacidade de extensão e de resistência do princípio proprietário”.248 Por sua vez, a abstração somente será possível porque o direito se ordenava racionalmente em um sistema jurídico, em uma pirâmide conceituai.249 O princípio

245Código Civil Português: "Art. 1305.° O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas". Código Civil Espanhol: "Art. 348. La propiedad es el derecho de gozar y disponer de una cosa, sin más limitaciones que las estabelecidas en las leyes. El propietario tiene acción contra el tenedor y el poseedor de la cosa para reivindicaria". Código Civil Argentino: "Art. 2506. El dominio es el derecho real en virtud dei cual una cosa se encuentra sometida a la voluntad y a la acción de una persona" e "Art. 2513. Es inherente a la propiedad el derecho de poseer la cosa, disponer o servirse de ella, usaria y gozaria conforme a un ejercicio regular" (este artigo com a redação dada pela Lei 17.711). Código Civil Italiano: "Art. 832. Contenuto dei diritto. - II proprietário ha diritto di godere e disporre delle cosa in modo pieno ed esclusivo, entro i limiti e con íosservanza degli obblighi stabiliti daH'ordinamento giuridico". Código Civil Suíço: "Art. 641 (A. Conteúdo da propriedade) Quem for proprietário de uma coisa pode dispor dela de acordo com a sua vontade, nos limites do ordem jurídica. Tem ele o direito de reavê-la de todo aquele que a retenha e de repelir toda a intromissão não justificada".

246“A elaboração de qualquer conceito jurídico implica uma operação de abstração, afirma- se o carácter essencial de uma dada qualidade relativamente a outras, consideradas secundárias, e assim se procede à unificação numa categoria única de um conjunto de relações de conteúdos muito diversos”. (PRATA, op. cit., p.11).

247ldem, p.82.

248BARCELLONA, Formazione..., p.204.

proprietário encontra nos Códigos, cuja expansividade é ilimitada,250 um aliado à sua permanência.

A análise do modelo proprietário a partir de sua abstração - e não da quantificação dos poderes proprietários, que por sua vez serão também puras abstrações - permite compreender como o discurso proprietário está sujeito a rupturas e, paradoxalmente, a não se romper.

A concepção da sociedade atomizada, informada pelo domínio do econômico, é ponto de partida para compreender o que se vem de falar. A visão do indivíduo como força motriz da vida em sociedade, isolado de seus pares, reduzido a sujeito de suas próprias necessidades e capaz de conseguir por si só sua sobrevivência, exige a proibição de interferências na esfera alheia, princípio fundamental da ordenação da sociedade.

Esse princípio, corolário da liberdade individual, vai se realizar efetivamente na disciplina da propriedade, do contrato e da responsabilidade civil, a que se referem os institutos - fundamentais para o direito privado - dos direitos reais, do negócio jurídico e do ato ilícito.251 Como são consideradas irrelevantes as ligações sociais nas quais o sujeito está inserido - senão ele não seria livre - a juridificação desses institutos deve, também, abstrair as condições concretas, permitindo manter e reproduzir sempre a imagem do homem livre.

Há, na conceituação da propriedade moderna, uma fuga do real em direção ao abstrato,252 mesmo porque para o Estado de Direito liberal, a lei deverá

250MARTÍNEZ, op. cit., p.72.

251BARCELLONA, Diritto ., p.23-24.

252“Quanto rordinamento medievale (...) aveva tentato di costruire un sistema oggettivo di

proprietà, construendolo dalle cose e sulle cose, riproduttore fedele delia trama complessa delle cose, tanto 1'ordine nascente deWetà nuova si volge in direzione opposta, tutto teso a scardinare le figure giuridiche dal reate in una disperata ricerca di autonomia”. (GROSSI, Proprietà, p.45). Tradução livre:

"Quanto o ordenamento medieval (...) havia tentado construir um sistema objetivo de propriedade, construindo-o das coisas e sobre as coisas, reprodutor fiel da trama complexa das coisas, a ordem nascente da idade nova se desenvolve em direção oposta, tendente a retirar as figuras jurídicas do real, em uma desesperada busca de autonomia".

ser abstrata e geral. A abstração justifica-se também porque, centrada no sujeito, a nova ordem deve deixar a ele o papel de efetivar e exercitar os poderes que lhe são garantidos pela lei.253 Ademais, sendo os sujeitos únicos e iguais, o modelo proprietário deverá ser único e universal. Assim, na ordem jurídica liberal- individualista, tudo é neutro: o sujeito, a propriedade e a própria ordem jurídica.254 Com o tratamento pandectístico dado aos institutos jurídicos, sua abstração se consolidará: tudo é neutro, formal e técnico.255

A abstração do conceito livra a propriedade das condições empíricas das coisas e das pessoas.256 Na palavra de Karl RENNER, “chiunque può essere propiretario di qualunque cosa e alio stesso modo”.257 Vai se formar uma dogmática

253“ Y aquí se capta realmente el profundo significado revolucionário de la idea de sujecto abstracto, dei hecho de conseguir pensar la subjetividad como abstracción. Sólo la abstracción puede fundar el orden. Sólo el sujecto abstracto puede mediar entre el individuo empírico y el orden general y convencional. Es precisamente mediante la categoria dei hombre racional, de la racionalidad como cualidad formal, como se hace possible la abstracción constitutiva de la subjectividad abstracta”.

(BARCELLONA, El individualismo..., p.45).

254“Um sistema pretensamente neutro, calcado em abstratas categorias jurídicas, destinado a um ser impessoal, com pretensões à perenidade, desenhou a formulação mais acabada do projeto de sustentação do direito civil nos últimos dois séculos”. (FACHIN, O novo..., p.73).

255A abstração da norma civil pode se dar tanto na sua formulação como na sua aplicação. No primeiro caso, manifesta-se pelo modo de apresentação textual da norma; no segundo, pressupõe que os critérios de aplicação serão norteados pela própria norma, ou por norma alheia. O direito de cunho individual-liberal requer a utilização de critérios e métodos formais de formulação, interpretação e aplicação da lei. (PERERA, Angel Carrasco. El derecho civil: senas, imágenes y paradojas. Madrid: Tecnos, 1988. p.60-61).

256MARTÍNEZ, op. cit., p.33. O autor encontra em KANT a fundamentação basilar da abstração da propriedade, que seria, para o filósofo de Königsberg, uma apropriação não física, mas um princípio da razão, o que a identifica com a liberdade e a origina no acordo de todos, (idem, p.33). O mesmo diz Régis de Castro ANDRADE: “O ponto de partida é a distinção entre a posse física e a posse inteligível. A posse jurídica corresponde a esta última: ter direito a um objeto significa que o uso do que é meu por outra pessoa, mesmo quando eu não o esteja utilizando, constitui uma ofensa. A posse empírica, por sua vez, é fortuita e baseada na vontade unilateral do possuidor. Como se observa, a posse jurídica “faz abstração de todas as condições da posse empírica no espaço e no tempo” (seu caráter fortuito e sua unilateralidade). Ela é puramente racional”, (op. cit., p.57).

257RENNER, Karl.Gli istituti dei diritto privato e la loro funzione sociale. Bologna: II Mulino, 1981. p.66. Tradução livre: "Qualquer um pode ser proprietário de qualquer coisa, e a seu modo mesmo".

proprietária, formalista e abstrata, que consiste em "a construção jurídica se alienar de todos os elementos relativos à situação histórica e concreta das relações humanas, e trabalhar sobre situações abstractas, sem qualquer correspondência real".258

No documento O DISCURSO PROPRIETÁRIO E SUAS RUPTURAS: (páginas 82-85)