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4. Blocos regionais e o Direito do Consumidor

4.1. A proteção do consumidor na União Europeia

Embora o objeto do presente trabalho concentre-se na região sul no continente americano, ocupando-se dos mecanismos postos à disposição do consumidor no âmbito do bloco mercosulista, é importante para a análise empreendida a observação do tratamento dado à matéria pela União Europeia. Tal esforço justifica-se não só por se mostrar uma iniciativa bem-sucedida, como por, como vimos, configurar-se em paradigma pela presença de órgãos supranacionais, tendo dado início a uma tendência pelo modelo comunitário de integração econômica.

Ao abordar os ensinamentos trazidos pela experiência da União Europeia no campo da proteção ao consumidor, Cláudia Lima Marques62 constata que tal esforço se efetivou tanto por meio de tratados e convenções (instrumentos do Direito Internacional Público clássico), quanto por regulamentos e diretivas (próprios do Direito Comunitário). Aduz ainda que os primeiros foram mais utilizados para tratar da lei aplicável às relações de consumo e do foro competente, ao passo que os últimos tiveram a função primordial de impor ou sugerir a elaboração de normas materiais por parte dos países membros. A partir do momento em que determinado domínio de intervenção é objeto de um tratado a Comissão pode propor legislação a seu respeito.

Tendo em vista o grande volume de diretivas tratando do assunto, e não sendo compatível com o escopo desse trabalho uma análise minuciosa dessa legislação, focaremos nos instrumentos de maior relevância na evolução do processo da integração da UE e na proteção ao consumidor ocorrida em seu âmbito.

O tratado constitutivo da Comunidade Econômica Europeia, assinado em 1957, em Roma, já trazia menções feitas aos consumidores. A esse respeito Perin Júnior63 relata que o artigo 39, alínea “c”, ao tratar da política agrícola, trazia o objetivo de assegurar preços razoáveis nas entregas ao consumidor. Entretanto, em que pese o referido autor julgar tal inserção como digna de nota, Paula Santos de Abreu tem percepção diversa e destaca que, à época, o tema não foi objeto de preocupação ou de regulamentação:

A tutela do consumidor limitava-se a algumas referências indiretas que eram simples consequência do respeito à prática da livre concorrência. Estas referências estavam

62 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e proteção do consumidor (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 371.

63 PERIN JÚNIOR, ÉCIO. A Globalização e o Direito do Consumidor: Aspectos relevantes sobre a

implícitas no art. 2, relativo á promoção da melhoria o nível de via; no art. 30, que legitima a prática de medidas de efeito equivalente e restrições quantitativas necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas; no art. 39, relativo à política agrícola, e nos artigos relativos ao direito concorrencial.

A Convenção de Bruxelas de 1968, que regulou a competência direta dos juízes e o reconhecimento e execução de sentenças no âmbito do bloco, trouxe um artigo específico sobre a jurisdição de litígios com o consumidor na União Europeia. Destaque-se que, nessa convenção, proibiu-se a eleição de foro em contratos de consumo sobre crédito (com financiamento em anexo) ou, em qualquer tipo de contrato, caso a oferta, publicidade, ou outro ato negocial tiver ocorrido no país de domicílio do consumidor, sendo-lhe facultado litigar em seu domicílio ou no do fornecedor64.

Paula Santos de Abreu65 relata que, logo depois, o primeiro programa de ação aplicado à relação consumerista foi apresentado durante a Cimeira de Paris, em 1972. Por meio dele, a legislação a respeito da matéria deveria ser baseada em cinco categorias de direitos fundamentais, quais sejam: à proteção da saúde e da segurança; à proteção dos direitos econômicos, à reparação de danos; à informação e à educação; e à representação. Importante a ressalva feita pela autora de que estes programas se compunham prioritariamente de diretivas66, e não de normas jurídicas de caráter impositivo.

A Convenção de Roma, que data de 1980, ao abordar a lei aplicável aos contratos internacionais, traz, em seu artigo 5º, uma “norma uniforme especial para a proteção do consumidor” 67, sendo considerado essencial para a integração. Tal dispositivo enumera casos

em que a escolha pela lei aplicável não pode excluir a aplicação das normas e leis imperativas do país de domicílio habitual do consumidor (como, por exemplo, se a oferta, a publicidade ou algum ato de conclusão tiver acontecido no país de seu domicílio habitual). Portanto, havia já a preocupação de que determinadas situações expunham o consumidor internacional a níveis menores de assistência e se buscava a aplicação da lei que lhe fosse mais favorável.

O Ato Único Europeu fixou o propósito de que fossem propostas buscando sempre um “elevado nível de proteção” do consumidor, embora tenha deixado em aberto qual

64 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e proteção do consumidor (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 388. 65

ABREU, Paula Santos de. A proteção do consumidor no âmbito dos tratados da União Européia, Nafta e Mercosul. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 7, n. 73, p. 01-20, junho/julho, 2005, p. 4.

66 Nesse ponto, adequado o esclarecimento acerca da natureza jurídica das diretivas. Trata-se de leis flexíveis que definem um objetivo a ser alcançado por um, vários, ou todos os integrantes do bloco. Devem ser incorporadas ao ordenamento jurídico interno do(s) Estado(s) dentro de um prazo estipulado, mas não tem caráter vinculativo quanto à forma de atingir o objetivo previamente definido.

seria o nível aceitável. Apesar disso, nos dizeres de Abreu68 que o artigo que tratou do tema constituiu o “fundamento do reconhecimento jurídico da política dos consumidores”.

Foi a partir do Tratado de Maastricht, no entanto, que houve a positivação das normas protetivas. Isso porque conferiu à UE competência para estabelecer a política de proteção dos consumidores, ainda que limitada ao princípio da subsidiariedade, ou seja, só intervindo quando os Estados-membros não apresentarem ações apropriadas para garantir o objeto primordial do mercado comum, qual seja, a livre circulação de pessoas e mercadorias sem discriminação. Acerca de sua efetividade, Perin Júnior69 afirma que:

O Tratado obriga de fato todos os países subscritores a tutelar a segurança, os interesses econômicos e a saúde dos consumidores e também a realizar uma obra de divulgação das leis que disciplinem a tutela. (...) especifica também que as ações adotadas pelo Conselho não impedem que Estados individuais membros mantenham ou tomem medidas de proteção mais rigorosas, contanto que sejam compatíveis com aquele e comunicadas à Comissão.

As orientações do Tratado de Maastricht foram ampliadas com a entrada em vigor do Tratado de Amsterdã, em 1997, que fortaleceu a política comunitária de proteção ao consumidor. Além de conter normas abordando a proteção de diversos aspectos da relação consumerista, no que concerne aos elementos referidos por Perin Júnior, ainda dispõe da inter-relação entre as medidas protetivas dos consumidores com as outras políticas comunitárias europeias.

Outras alterações disseram respeito ao fato de que o Direito Internacional Privado e o processo civil internacional passaram e a ser considerados matérias de competência subsidiária da UE70, sendo objeto de regulamentos. Além disso, houve o crescimento de poderes da União Europeia para legislar sobre a proteção do consumidor, chegando ao ponto de uma transferência de competência direta e flexível no Tratado de Maastricht para a harmonização do Direito do Consumidor.

Abordando os dispositivos do soft law, Jayme e Kohler71 ressaltam a importância de cinco diretivas de proteção do consumidor que trazem normas específicas de DIPr: a sobre

68 ABREU, Paula Santos de. A proteção do consumidor no âmbito dos tratados da União Européia, Nafta e Mercosul. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 7, n. 73, p. 01-20, junho/julho, 2005, p. 4.

69 PERIN JÚNIOR, ÉCIO. A Globalização e o Direito do Consumidor: Aspectos relevantes sobre a

harmonização legislativa dentro dos mercados regionais. Barueri: Manole, 2003, p. 103.

70 MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e proteção do consumidor (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, p. 391.

cláusulas abusivas (93/13/CEE), a sobre time-sharing ou multipropriedade (97/47/CE),a a sobre contratação a distância (97/7/CE), a sobre garantias (1999/44/EC) e a sobre comércio eletrônico (2000/31/CE).

A partir do exposto, observa-se, ao longo dos anos, a afirmação progressiva dos direitos dos consumidores na evolução do ordenamento comunitário. Com o aprofundamento do processo de integração e o empoderamento dos órgãos supranacionais, desenvolveram-se planos plurianuais acerca do tema e se consituiu também um aparato institucional de órgãos de representação dos interesses dos consumidores, como, por exemplo, o Comitê Consultivo de Consumidores (composto por organizações representativas) e o Serviço para o Ambiente e a proteção dos Consumidores72.

Cumpre, por fim, apontar algumas das medidas atualmente em vigor que mostram o elevado nível de proteção ao consumidor atingido na União Europeia e a complexidade de sua estrutura. No caso de problemas que envolvam mais de um país, por exemplo, o consumidor tem à sua disposição a Rede de Centros Europeus do Consumidor, que presta aconselhamento e apoio gratuitos aos residentes na UE que adquirem bens ou serviços noutros Países-Membros do bloco. Ressalte-se que o site oficial da UE73 disponibiliza um aplicativo74 para uso em celulares que ajuda consumidores a lidar com dificuldades em viagens e traz os direitos aplicáveis no idioma do país de destino, assim como uma série de situações possíveis e os endereços dos Centros Europeus do Consumidor.

No que concerne especificamente à segurança dos consumidores, há um sistema de alerta rápido da UE (RAPEX75), que transmite o compartilhamento ágil de informações a fim de possibilitar a tomada a tempo de medidas adequadas. Operacional desde 2004, o sistema informa os inspetores de todos os Estados-membros sobre as medidas tomadas por um dado Estado-membro em relação a um produto perigoso. Tem início, assim, uma reação em cadeia para a retirada do produto notificado por um Estado-Membro através do RAPEX dos outros mercados nacionais da UE.

72 PERIN JÚNIOR, ÉCIO. A Globalização e o Direito do Consumidor: Aspectos relevantes sobre a

harmonização legislativa dentro dos mercados regionais. Barueri: Manole, 2003, p. 102. 73 Disponível em: <http://europa.eu/index_pt.htm>. Acesso em 12 mai 2015.

74 Disponível em: <http://ec.europa.eu/consumers/solving_consumer_disputes/non-judicial_redress/ecc-

net/index_en.htm>. Acesso em 12 mai 2015.

75 UNIÃO EUROPEIA, Comissão Europeia. Compreender as Políticas da União Europeia – Consumidores.

Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2014. Disponível em:

No que tange ao campo normativo, importante instrumento é o Regulamento (CE) nº 861/200776, do Parlamento Europeu e do Conselho77, uma vez que institui um processo europeu simplificado para ações de pequeno porte, de natureza civil ou comercial, cujo valor não ultrapasse 2000 euros, sendo justamente esta uma característica da grande maioria das ações envolvendo litígios consumeristas.

Apesar de todo o crescimento aqui exposto, alguns desafios ainda se mostram para que a UE concretize seus objetivos para o nível desejado de tutela do consumidor e eles dizem respeito às inovações tecnológicas, ao comércio eletrônico, ao consumo sustentável e responsável, exclusão social, vulnerabilidade e acessibilidade e a falta de confiança dos consumidores78.