• Nenhum resultado encontrado

A Proteção do patrimônio natural e cultural da serra das Russas

O TRECHO FERROVIÁRIO DA SERRA DAS RUSSAS: história, caracterização e proteção

3 O TRECHO FERROVIÁRIO DA SERRA DAS RUSSAS: HISTÓRIA, CARACTERIZAÇÃO E PROTEÇÃO

3.3 A Proteção do patrimônio natural e cultural da serra das Russas

Por causa da riqueza do seu acervo ferroviário e da importância histórica para a memória ferroviária em Pernambuco, o trecho da serra das Russas foi tombado pela FUNDARPE em meados da década 1980, juntamente com um trecho mais amplo, que vai de Recife até Gravatá.

O processo de tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá foi iniciado em março de 1984 e teve duração de dois anos, sendo concluído em março de 1986. Teve como ponto de partida a solicitação do Secretário de Turismo, Cultura e Esporte do Governo do Estado de Pernambuco à época, que sensível aos ‘valores técnicos’ das obras d’arte existentes ao longo dessa linha férrea, concentradas em maior número no trecho da serra das Russas, sugeriu à FUNDARPE o seu tombamento.

No mês de dezembro de 1984 o corpo técnico da FUNDARPE elaborou uma proposta de tombamento, que foi encaminhada em fevereiro de 1985 à Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte do Governo do Estado de Pernambuco. Essa proposta continha um breve histórico da implantação da ferrovia no Brasil e em Pernambuco, relatando de modo mais detalhado a implantação da Estrada de Ferro Central de Pernambuco, da qual o trecho Recife/Gravatá fazia parte. O documento trazia informações importantes como o nome de John Branner, renomado geólogo que foi responsável pelos estudos que definiram o ‘grade’ onde seriam implantadas as obras d’arte ferroviárias, e o nome de Eugênio de Melo, engenheiro que projetou o trecho.

Em maio de 1985, a proprietária do trecho, a RFFSA, foi notificada do tombamento e forneceu algumas informações como o comprimento exato do trecho tombado, que era de 76,04km, e o ponto de partida da linha, que era a estação de Retiro9, no Recife. No dia 17 de junho do mesmo ano, através da publicação de edital em um jornal de grande circulação (Figura 62), a FUNDARPE tornou público o deferimento do processo de tombamento, assegurando, desse modo, até a inscrição definitiva no Livro de Tombo nº 04 de Monumentos, Sítios e Paisagens Naturais, a proteção equivalente a um bem tombado, conforme estabelecido pelo Decreto Estadual nº 6239 de 11 de janeiro de 1980.

Figura 62: Publicação do edital de tombamento na edição do dia 17 de junho de 19685 no

Jornal do Comércio de Pernambuco.

Fonte: Processo de Tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá, FUNDARPE, 1986.

Passado o prazo legal para contestação do tombamento, a FUNDARPE encaminhou para a Diretoria de Patrimônio Histórico (DPH) o pedido de elaboração de uma análise final do processo. Em 6 de dezembro de 1985, uma equipe técnica da

FUNDARPE formada por 2 arquitetos e 1 historiador10, elaborou um documento bem

9

A estação de Retiro localizava-se entre as estações de Socorro e Coqueiral. Segundo trecho encontrado em Bonfim (2002, p. 131) transcrito do livro “Jaboatão dos meus avós”, essa estação “servia, apenas, para avisos telegráficos”.

10

Os técnicos responsáveis pelo exame técnico foram Rosa Virgínia de Sá Bomfim (arquiteta/coordenadora do GTPT/DPH/FUNDARPE), Glauciano Marcos de Lima e Silva (arquiteto/responsável pelo parecer conclusivo e o registro fotográfico) e Gerardo Pereira Ramos (Historiador).

mais detalhado que o primeiro, contendo uma pesquisa histórica aprofundada, registros gráficos e iconográficos e um parecer conclusivo atestando a significância cultural do trecho e a importância do seu tombamento.

A parte final do documento, o parecer conclusivo, é particularmente relevante para os fins desta pesquisa, pois é nele que os técnicos depositam as justificavas do tombamento e é nela, portanto, que poderemos entender quais os valores culturais identificados. Neste caso, as justificativas históricas, econômicas, tecnológicas e memoriais são preponderantes, como se pode perceber na transcrição do trecho abaixo:

Muito embora os viadutos originais tenham sido substituídos, estes, ao lado dos túneis da Russinha, merecem ser objetos da proteção do Estado, porquanto integram toda uma ambiência daquelas paragens e formam pela proximidade com que ocorrem, intercalados pelos pontilhões e viadutos, todo um conjunto à memória da Estrada de Ferro em Pernambuco.

Pelo seu significado e importância no desenvolvimento da economia do Estado, contribuindo como corredor de riquezas e meio de comunicação, a Estrada de Ferro Central de Pernambuco é, sem dúvida, um marco significativo dos meios de transporte do século passado aos meados do presente século.

Assim, somos favoráveis ao tombamento por parte do Estado, do trecho ferroviário entre Recife e Gravatá, preservando às gerações vindouras mais este legado à memória histórica de Pernambuco. (FUNDARPE, 1985, p. 42, grifos da autora).

As expressões ‘desenvolvimento da economia’, ‘meios de transporte’ e ‘memória histórica’ expressam valores econômicos, tecnológicos, históricos e memoriais, respectivamente. Apesar de reconhecer o valor tecnológico do conjunto de túneis e viadutos, o parecer relega as obras d’arte a mera ‘ambiência’ das paragens, dando- lhe um valor secundário, adjetivo, considerando-os como uma ‘soma’ de objetos individualizados, ligados apenas por uma relação de ‘proximidade’.

Encaminhado ao Conselho Estadual de Cultura, órgão responsável pelo tombamento no Estado de Pernambuco, cujo presidente à época era Gilberto de Mello Freyre, o exame técnico da FUNDARPE foi analisado pelo conselheiro Reinaldo de Oliveira. Este conselheiro, convencido da importância não apenas estadual, mas nacional do bem em questão, dá parecer favorável ao pleito, encaminhando-o à Governadoria do Estado para ser, enfim, homologado o seu

tombamento através do Decreto nº 11.238, assinado em 11 de março de 1986 pelo governador do Estado de Pernambuco, Roberto Magalhães Melo.

O processo de tombamento foi encaminhado pelo Conselho Estadual de Cultura à FUNDARPE para arquivamento apenas em maio de 1994, quando comunica que o bem foi inscrito no Livro de Tombo de nº 4, de Monumentos, Sítios e Paisagens Naturais, sob o número 02 (Figura 63). É curioso o fato deste bem ter sido inscrito neste Livro, pois indica que o seu entendimento poderia estar vinculado à ideia de conjunto, contida nas categorias de Sítios e Paisagens Naturais.

Figura 63: Texto de inscrição da Estrada de Ferro Recife/Gravatá no Livro de Tombo nº 4 – Monumentos, Sítios e Paisagens naturais.

Fonte: Conselho Estadual de Cultura.

No entanto, em entrevista realizada no dia 08 de março de 2013, a arquiteta da FUNDARPE Rosa Bonfim, que coordenou a equipe que fez o exame técnico do tombamento, disse que naquela época não era costume a FUNDARPE indicar em qual livro do tombo um bem deveria ser inscrito, isso era decidido internamente pelo Conselho Estadual de Cultura. Questionado sobre este assunto em entrevista realizada no dia 24 de janeiro de 2013, o Conselheiro Reinaldo de Oliveira disse não se lembrar porque a inscrição do bem foi feita no Livro de Tombo nº 04, repassando a responsabilidade da indicação para a FUNDARPE.

O texto de inscrição da Estrada de Ferro Recife/Gravatá existente no Livro do Tombo nº 04, como mostra a Figura 55, se resume a fazer uma descrição sintética do bem, fornecendo informações básicas como a extensão da linha e os pontos iniciais e finais, sem dar quaisquer justificativas da sua inscrição naquele Livro especificamente. Rosa Bonfim acredita que a inscrição neste livro tenha sido por causa do seu entendimento como ‘monumento’, e não como sítio ou paisagem natural, apesar dela reconhecer a paisagem que se pode apreciar a partir da ferrovia.

[...] na época houve justamente isso, se alertou para esse trecho e realmente, em questão de obras d’arte, na malha ferroviária de Pernambuco esse trecho é o mais importante, talvez por isso tenha se tombado. (Rosa Bonfim, em entrevista concedida no dia 08 de março de 2013, à autora). Talvez porque nesse tinham os monumentos e realmente o que você percebe porque você está num carro de linha em cima do trilho, você percebe mais a paisagem em redor do que o próprio viaduto, entendeu? Só o túnel que quando você passa é escuro aí é diferente, mas quando abre e descortina aquela paisagem... talvez tenha sido escolhido por isso. (Idem).

A análise do processo de tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá nos indica que a dimensão da paisagem era uma questão ainda fora de ‘pauta’ nas decisões e análises técnicas do Estado na época do tombamento. De fato, na década de 1980, as discussões conceituais sobre a preservação do patrimônio cultural ainda estavam muito vinculadas à ideia de monumento isolado e a preservação de um entorno como ambiência do bem, que não tinha valor em si.

Quando questionada se hoje caberia na inclusão do tombamento um alargamento do entendimento englobando a questão da paisagem da serra das Russas, Rosa Bonfim (em entrevista concedida no dia 08 de março de 2013, à autora) disse que

sim, “porque é realmente uma coisa que chama muito a atenção. A paisagem é

muito bonita, porque Pernambuco é plano e aquela serra é diferencial”.

Diante dos desafios que a preservação de bens culturais nos impõe na atualidade, a visão restritiva e segregada que reduz o bem cultural a um simples objeto, sem considerar as relações que ele estabelece com o meio onde está inserido, precisa ser superada. No caso da serra das Russas, a visão e o entendimento segregados

no tocante à conservação não se restringem apenas aos seus bens culturais, mas também aos seus bens naturais.

No ano de 2002, o Governo do Estado de Pernambuco em parceria com a Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social (SEPLANDES) e a Fundação de Desenvolvimento Municipal (FIDEM) lançaram a proposta preliminar do macrozoneamento do projeto “Eco-via BR-232 – Requalificação Territorial”. Esse projeto tinha como objetivo principal

Promover a integração do território do entorno da BR-232, trecho Recife- Caruaru e de suas potencialidades através do zoneamento do uso e ocupação do solo, de sorte a facultar um desenvolvimento econômico espacialmente harmônico bem como uma valorização ambiental condizente com o conceito de Eco-via (FIDEM, 2002, p. 7).

A utilização do termo ‘ambiental’ nas propostas foi fundamental para introduzir o modelo de ‘desenvolvimento sustentável’ e também para enquadrar o projeto da BR- 232 no conceito de “Eco-via”, conceito mais amplo que o simples conceito de ‘corredor viário’. O conceito de Eco-via visou englobar ainda seis temas centrais: o social, o econômico, o uso do solo, a infraestrutura, o institucional e o meio ambiente, que dentre outras ações, visava promover a apreciação dos patrimônios natural e cultural (FIDEM, 2002). Em relação ao zoneamento, a proposta do projeto dividia a rodovia em três grandes macrozonas: a mata, a serra e o agreste. Essas macrozonas, por sua vez, foram subdividas em zonas (urbana, expansão e rural), em setores, áreas especiais ou corredor de requalificação da paisagem (Figura 56).

Para a macrozona serra, a proposta de zoneamento definiu a área da serra das Russas como sendo a ‘Área Especial 9’ (Figura 64), “onde a preservação do meio ambiente e da paisagem é prioridade” (FIDEM, 2002, p. 32). Além dos atributos naturais da serra, o documento também reconhece outros elementos a serem valorizados como o comércio de frutas ao longo da BR, os condomínios e restaurantes e a própria rodovia com o novo viaduto que “possibilitará o descortino de novas paisagens” (FIDEM, 2002, p. 46). Interessante notar que apesar de reconhecer a ferrovia como um ‘atrativo’, o documento não a identifica como sendo um elemento de ‘interesse antrópico’, assim como fez com a rodovia.

Figura 64: Mapa do projeto “Eco-via BR-232 – Requalificação Territorial” com destaque para

zoneamento referente à zona da serra das Russas.

Fonte: FIDEM/SEPLANDES, 2002.

Além da Área Especial 9, a proposta do projeto da Eco-via BR-232 propôs a delimitação um outro setor para a proteção da paisagem: o Setor de Proteção da Paisagem 2 - SPP 2, que localizado na transição entre a serra e a zona urbana de Gravatá teria como função manter o contraste entre as áreas rurais e urbanas, admitindo a instalação de equipamentos de apoio ao turismo (Figura 65).

Figura 65: Mapa do projeto “Eco-via BR-232 – Requalificação Territorial”. Em verde mais claro

no centro o Setor de Proteção da Paisagem 2 – SPP 2.

Fonte: FIDEM/SEPLANDES, 2002.

No final do ano de 2002 a FADE, em parceria com a FIDEM, elaborou o Plano Diretor do Município de Gravatá. A análise da proposta de zoneamento tomou o projeto da Eco-via BR-232 como referência, adotando todas as suas recomendações para a proteção da paisagem da serra das Russas. Desse modo, o zoneamento do Plano Diretor Municipal também definiu a serra das Russas como uma Área Especial, onde deveriam ser “incentivadas atividades compatíveis com a

preservação ambiental” (FADE/FIDEM, 2002, p. 69), além de defini-la como uma

Área de Proteção Permanente – APP, pois sendo área de caráter ambiental

relevante, deve ser protegida por lei federal11.

O Setor de Proteção da Paisagem no projeto Eco-Via BR-232 foi renomeado como ‘Zona de Proteção da Paisagem’ pelo Plano Diretor, tendo a mesma função, criar uma zona de amortização e transição entre a zona rural e urbana, incentivando a instalação de equipamentos de lazer e turismo numa zona onde a urbanização é restrita.

Considerando ainda o tombamento estadual e o projeto da Eco-via BR-232 (2002), o Plano Diretor Municipal de Gravatá, criou ainda no seu zoneamento a “Faixa de Proteção da Linha Férrea – FPLF”, que se estende aos dois lados da ferrovia, porém sem dimensões definidas, e tem como objetivo “incentivar a exploração turística da paisagem” (FADE/FIDEM, 2002, p.69) no percurso entre Pombos e Gravatá. Ou seja, além da proteção dos elementos ferroviários em si, a faixa pretende ‘explorar’ a paisagem a partir da ferrovia.

Tanto o projeto da Eco-via BR-232 quanto o Plano Diretor do Município de Gravatá procuram contemplar os aspectos ambientais e culturais da serra das Russas. No entanto, é claro que o entendimento de paisagem aplicado em ambos os zoneamentos está muito mais voltado ao valor ambiental do que cultural. Um exemplo disso é o tratamento dado à ferrovia, que apesar de ser contemplada com uma ‘faixa de preservação’ ela não é entendida como um elemento que faz parte da paisagem, mas como um elemento que limita a zona de paisagem da serra, como uma espécie de barreira que diz até onde a paisagem alcança.

A questão da preservação de áreas históricas de valor cultural e áreas naturais surgiu basicamente na mesma época, na década de 1930. No entanto, apesar das muitas interfaces existentes entre esses dois aspectos, há muitas divergências de abordagens. Um exemplo muito claro dessa problemática é o trecho ferroviário da serra das Russas, cujos elementos culturais da ferrovia e os elementos naturais da

11

serra são protegidos por instrumentos distintos nos três níveis governamentais (federal, estadual e municipal). Esses instrumentos abordam e reconhecem os bens de modo isolado, dentro das suas especificidades, como se o cultural não fizesse parte do natural e vice-versa, gerindo-os de modo desintegrado e ineficiente.

O tratamento dos dois aspectos, o natural e o cultural, em um mesmo instrumento poderia significar uma proteção e gestão muito mais eficaz dos elementos que compõem a paisagem do trecho ferroviário da serra das Russas. A introdução de uma abordagem de paisagem poderia significar nesse caso a superação da dicotomia natural x construído e promover um reconhecimento mais ampliado e uma conservação mais eficaz dos valores culturais e naturais existentes.

***

No próximo capítulo, embasados na noção de paisagem construída no item 1.1 do primeiro capítulo e com o entendimento de que o patrimônio ferroviário deve ser estudado no âmbito da paisagem, vamos analisar o conteúdo das entrevistas realizadas e refletir a partir delas sobre as diferentes relações que as pessoas entrevistas estabelecem com a ferrovia e a serra das Russas e como essas relações adquirem sentidos diversos, revelando (ou não) paisagens diversas. Refletiremos ainda sobre a importância da preservação dos atributos que dão sentido às relações que as pessoas estabelecem com o meio, pois são esses atributos, materiais ou imateriais, que transmitem os diferentes sentidos de paisagem.