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2 | TRILHANDO UM CAMINHO

2 TRILHANDO UM CAMINHO

Compreender em que medida a relação entre a ferrovia e a serra das Russas adquire sentido e se manifesta como paisagem para as pessoas presentes nos diversos grupos envolvidos foi a linha que norteou cada etapa da presente pesquisa. Com esse objetivo em mente adotamos alguns passos que nos ajudaram a trilhar um caminho metodológico.

O primeiro passo foi a definição do arcabouço teórico-conceitual que serviu de suporte metodológico-operacional para a pesquisa. Fundamentados na teoria da paisagem, construímos uma ‘noção’ que influenciou diretamente o nosso olhar sobre o patrimônio ferroviário, que assim como a paisagem, foi entendido numa perspectiva relacional.

A noção de paisagem discutida pelo filósofo e geógrafo francês Augustin Berque (1994, 1997, 2010, 2011, 2012), de que ela não é uma coisa em si, mas uma relação entre as coisas, uma relação que se manifesta como paisagem quando ganha um determinado sentido individual e coletivo, foi a chave conceitual e analítica escolhida para um embasamento mais consistente do método empregado.

Os pensamentos de outros estudiosos da Teoria da Paisagem como Cauquelin (2007), Roger (2000, 2012), Bertrand (1995) e Cueco (1995) também foram considerados de forma complementar. Esses autores, apesar de possuírem posicionamentos muitas vezes distintos sobre o tema da paisagem, possuem também pontos de tangenciamento e se complementam em determinados aspectos. Desse modo, todos eles foram utilizados na construção de uma ‘noção’ de paisagem que pudesse guiar as reflexões desenvolvidas nesta pesquisa.

A problemática da conservação que envolve os bens da industrialização de um modo geral e do patrimônio ferroviário de um modo específico, também foi discutida à medida que se pretendeu compreendê-la numa perspectiva de paisagem. Desse modo o pensamento de autores como Kühl (1998; 2008), Rufinoni (2010) e Rodrigues (2010), e ainda as informações e diretrizes contidas na Carta de Nizhny Tagil (ICOMOS, 2003), no Inventário do Patrimônio Ferroviário em Pernambuco

(IPHAN, 2008, 2009) e em alguns dossiês de inscrição de ferrovias pela UNESCO na lista do patrimônio mundial, foram utilizados como suporte para essa reflexão.

O referencial teórico-conceitual escolhido nos permitiu entender que o sentido da paisagem do trecho ferroviário da serra das Russas nas suas dimensões objetiva e

subjetiva poderia ser apreendido a partir da maneira como as pessoas ‘veem’

(envolvendo todos os sentidos e não apenas o da visão) e a partir do que elas ‘dizem’ sobre a paisagem (envolvendo a linguagem verbal e o raciocínio).

Desse modo, o método utilizado para a pesquisa lançou mão de procedimentos metodológicos como a pesquisa documental e a observação direta para a compreensão do objeto de estudo a partir das relações que ele estabelece com o meio e a sociedade no tempo e no espaço. A partir disso, as entrevistas semiestruturadas e os mapas mentais foram utilizados como técnicas que ajudaram a revelar em que medida essas relações estabelecidas ganham sentido e se revelam como paisagem nas suas dimensões objetivas e subjetivas para os diversos grupos envolvidos.

A pesquisa documental foi realizada no arquivo do Conselho Estadual de Cultura, no arquivo da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), na Biblioteca da Superintendência do IPHAN em Pernambuco (Biblioteca Almeida Cunha), na Biblioteca da Agência Condepe/Fidem, no arquivo da SUDENE (Biblioteca Celso Furtado), na Biblioteca do Centro de Artes e Educação (CAC) da UFPE e em sites especializados e institucionais da internet. Compreendeu o levantamento da bibliografia (referencial teórico, trabalhos acadêmicos relacionados ao tema estudado e planos e projetos propostos para a área), da legislação incidente (tombamento e Plano Diretor Municipal), da cartografia e da iconografia referentes ao objeto de estudo.

A visita de campo foi realizada no dia 14 de junho de 2013 e contou com a participação de 2 técnicos da FUNDARPE, 1 técnico da Prefeitura Municipal de

Gravatá e 1 pesquisadora do Laboratório da Paisagem da UFPE (LAP)1. Teve como objetivo principal conhecer a situação em que se encontrava o trecho ferroviário e também explorar pontos de vistas novos para a sua apreensão. Diante das péssimas condições de conservação da linha férrea em diversos pontos, optou-se por percorrer apenas um pequeno trecho que estava em melhores condições e concentrar a observação a partir de pontos externos à ferrovia, procurando observar a sua inserção na paisagem serrana (Figura 09).

Figura 09: Mapa com a localização do trecho ferroviário visitado na pesquisa de campo e com a

localização dos pontos onde foram realizadas as entrevistas com os moradores.

Fonte: Elaborado pela autora sobre Planta Diretora de Gravatá (2003).

As entrevistas semiestruturadas, que foram aplicadas em Recife, Pombos e Gravatá entre janeiro e julho de 2013, tiveram o número total de 21 participantes, dentre eles técnicos ligados à preservação do patrimônio cultural nas três esferas de poder (federal, estadual e municipal), especialistas da iniciativa privada, empresários e residentes. O critério de escolha dos entrevistados foi o contato direto ou indireto

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Os técnicos da FUNDARPE foram um arqueólogo e um técnico em preservação do patrimônio; o técnico da Prefeitura Municipal de Gravatá foi um turismólogo; A pesquisadora do Laboratório da Paisagem da UFPE foi uma arquiteta.

com o objeto de estudo, pois para nós era imprescindível que houvesse algum tipo de relação estabelecida entre o indivíduo e o trecho ferroviário da serra das Russas.

Foram entrevistados 4 funcionários do IPHAN, 4 da FUNDARPE, 1 do Conselho Estadual de Cultura, 2 técnicos da RFFSA (dentre eles o antigo engenheiro residente do trecho estudado), 2 especialistas da GRAU (empresa que realizou o Inventário do Patrimônio Ferroviário em Pernambuco), 2 empresários que atuam ou atuaram na área (um ligado a esportes de aventura e outro que explorava a linha com o trem do forró), 1 técnico da Prefeitura Municipal de Gravatá e 1 da Prefeitura de Pombos, ambos da Secretaria de Turismo, e por fim, 2 moradores do entorno da estação de Pombos e 2 moradores residentes numa comunidade carente localizada ao longo da linha férrea em Gravatá (Figura 09). É importante frisar que as entrevistas tiveram caráter qualitativo e não quantitativo, tendo em vista que o nosso objetivo era apreender as diferentes percepções dos indivíduos em relação ao nosso objeto de análise. Das 21 entrevistas realizadas foram selecionadas posteriormente 18 para a transcrição e análise por considerar que elas continham mais informações relevantes ao tema da pesquisa.

Para os diversos grupos envolvidos foram elaborados roteiros distintos, que foram estruturados basicamente em três temáticas: a primeira dizia respeito à relação das pessoas com a serra das Russas; a segunda tratava do sentimento e da relação das pessoas com a ferrovia; e a terceira versava sobre a percepção das pessoas com relação à paisagem do trecho estudado por meio da elaboração dos mapas mentais. Apenas no roteiro dos residentes foi acrescida uma quarta temática que procurou compreender a relação que eles estabeleciam com o lugar onde moravam, fosse ele o entorno da estação ou ao longo da linha férrea. Os roteiros, que serviram como um guia para a condução da entrevista, foram usados de maneira flexível de modo a permitir a inclusão de novas questões e o aprofundamento de outros temas relevantes colocados pelos próprios entrevistados. Todos os roteiros estão apresentados nos apêndices deste volume (Apêndice A).

Os mapas mentais, empregados pelo urbanista Kevin Lynch2 (1997) e também por

Cristina Freire3 (1961), foi uma técnica utilizada de forma complementar às

entrevistas e teve como objetivo entender como os entrevistados representavam

aquilo que poderíamos chamar de ‘paisagem interior’. Foi interessante perceber que

em muitos casos os atributos e as relações que não apareceram na paisagem ‘dita’, se revelaram na paisagem ‘pintada’, comprovando que “a pintura dá a ver não os objetos, mas o elo entre eles” (CAUQUELIN, 2007, p. 83), ou seja, a paisagem. A solicitação do desenho dos mapas era feita ao final das entrevistas e em poucos casos foi rejeitada por alguns entrevistados que preferiram não se expressar por meio da pintura por alegarem não ‘ter jeito para isso’.

A fase que se seguiu às entrevistas foi a de transcrição e análise do material

coletado por meio do método conhecido como ‘análise de conteúdo’. A análise de

conteúdo é um método que procura codificar de forma sistemática e objetiva as mensagens produzidas por distintos modos de comunicação (BAUER, 2002). No

nosso caso essa codificação foi feita por meio de uma ‘matriz analítica’, que foi

estruturada em categorias, escolhidas conforme os objetivos da pesquisa (PEREIRA, 2012). Para os diferentes grupos envolvidos (especialistas nas diferentes instâncias, empresários e moradores) foi elaborada uma matriz específica.

O preenchimento da matriz se deu da seguinte forma: inicialmente foram selecionados em cada entrevista alguns trechos considerados relevantes por conter palavras ou expressões significativas que expressavam os diferentes sentidos atribuídos pelos entrevistados ao objeto estudado. Esses trechos foram recortados e transcritos em sua forma literal em uma categoria chamada ‘indicativo do sentido’. Essas palavras ou expressões mais significativas existentes nos trechos transcritos foram destacadas e preencheram outras duas categorias: a de ‘atributo físico-

materiais’ e a de ‘atributos imateriais’. Com o preenchimento dessas categorias e

tendo os mapas metais como referência foi preenchida a última categoria analítica, a

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Os mapas mentais foram utilizados por Kevin Lynch (1969) em estudo realizado em três cidades americanas (Boston, Jersey City e Los Angeles) que culminou na publicação do livro “A imagem da Cidade”.

3 No livro “Além dos Mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo”, Cristina Freire procurou cruzar as informações contidas nos mapas reais com os mapas traçados pelo imaginário dos moradores de São Paulo e descobriu uma outra cidade, cheia de lembranças e memórias.

da ‘relações com a paisagem’, esta fruto da interpretação pessoal da pesquisadora. As matrizes estão apresentadas nos apêndices deste volume (Apêndice B).

A organização do conteúdo de cada entrevista em uma matriz analítica específica permitiu a comparação dos diferentes sentidos atribuídos por cada indivíduo e também identificar as relações e os atributos que estão na base das relações estabelecidas pelos diversos grupos. A identificação dos atributos é uma questão extremamente importante, pois os sentidos que revelam a paisagem estão impregnados nos atributos, sem os atributos não podemos estabelecer relações e nem atribuir sentidos. Portanto, identificar e preservar os atributos significa preservar as condições para que os diversos indivíduos no tempo e no espaço possam continuar a estabelecer relações com um determinado meio e, por sua vez, lhe atribuir novos sentidos, perpetuando a herança cultural que assim será passada de geração em geração.

O caminho metodológico trilhado nesta pesquisa é apenas um dos possíveis a serem trilhados no estudo de um tema tão instigante e desafiador como é o tema da paisagem. De forma alguma o método aqui apresentado pretende se mostrar acabado ou conclusivo, mas sendo fruto de uma escolha conceitual procura ser coerente com o referencial teórico assumido. Entendemos que a serra das Russas poderia ser estudada a partir de tantas outras relações que consequentemente descortinaria tantos outros sentidos, mas no âmbito dessa pesquisa o nosso interesse está focado na compreensão da relação entre a serra e a ferrovia e em que medida essa relação adquire o sentido de paisagem para as pessoas.

O TRECHO FERROVIÁRIO DA SERRA DAS RUSSAS: