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O sentido da paisagem: a relação entre a ferrovia e a Serra das Russas em Pernambuco.

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Ana Renata Silva Santos

Recife | 2013

O SENTIDO DA PAISAGEM:

A relação entre a ferrovia e a serra das

Russas em Pernambuco

(2)

Ana Renata Silva Santos

O SENTIDO DA PAISAGEM:

A relação entre a ferrovia e a serra das Russas em Pernambuco

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco, MDU/UFPE como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Urbano.

Orientadora: Prof. PhD. Ana Rita Sá Carneiro.

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4-439

S237s Santos, Ana Renata Silva

O sentido da paisagem: a relação entre a ferrovia e a Serra das Russas em Pernambuco / Ana Renata Silva Santos. – Recife: O Autor, 2013.

156 f.: il.

Orientador: Ana Rita Sá Carneiro.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Desenvolvimento Urbano, 2013.

Inclui referências e apêndices.

1. Planejamento regional. 2. Paisagens. 3. Ferrovias - Serra das Russas (PE) - Trilhos. 4. Ferrovias - Pernambuco - História. I. Carneiro, Ana Rita Sá (Orientador). II.Titulo.

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A Seu Tadeu e Dona Malu, meus pais, com afeto e gratidão.

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Em primeiro lugar agradeço a Deus, que é minha fonte inesgotável de sabedoria e inspiração. Ele que sempre abre os meus caminhos, ilumina o meu intelecto e me dá em cada fase da vida o discernimento para entender quais são as coisas que realmente importam, o que é essencial.

Agradeço aos meus pais, Tadeu e Malu, pelo apoio incondicional sempre. Se hoje consigo alcançar mais esse degrau na minha vida profissional é porque lá trás, no início da minha vida escolar, vocês investiram na minha formação, procurando me proporcionar o melhor. Essa conquista é nossa!

Agradeço a Ana Rita Sá Carneiro pela orientação deste trabalho e por alimentar o meu entusiasmo e a minha paixão pela paisagem. Agradeço, sobretudo, pela paciência em esperar o meu tempo de amadurecimento das ideias... Sei que ele foi longo. Muito obrigada por mais essa parceria. E que venham muitas outras.

Agradeço aos meus queridos colegas da turma M32 porque, sem dúvida, vocês fizeram com que esses dois anos árduos de mestrado se tornassem muito mais divertidos. Vou sentir saudade das conversas filosóficas durante os almoços de segunda-feira no Aquarela após a aula de Introdução à Construção do Conhecimento; vou sentir saudade das trilhas ‘mduanas’, dos rapels, das confraternizações; vou sentir saudade dos cafés e discussões com as minhas queridas colegas e amigas Bárbara, Paula, Helen e Lizia. Vou sentir saudade desse tempo bom! A todos desejo muito sucesso e muitas conquistas!!!

Agradeço aos meus colegas do Laboratório da Paisagem Joelmir, Mirela, Giseli e Lucia pela força e encorajamento sempre. A Mirela agradeço particularmente por ter compartilhado textos importantes de Augustin Berque, que foi a grande referência do meu trabalho.

Agradeço à FUNDARPE nas pessoas de Célia Campos, Roberto Carneiro e Ulysses Pernambucano pelo apoio na visita de campo realizada ao trecho ferroviário da serra das Russas em junho deste ano. Agradeço também à Prefeitura de Gravatá na pessoa de Patrick Serapião pelo apoio e disponibilidade em ajudar.

À FACEPE, agradeço o apoio financeiro.

Agradeço também de modo particular a todas as pessoas que se dispuseram a participar das entrevistas: Roberto Carneiro, Neide Fernandes, Rosa Bonfim, Frederico Almeida, Emília Lopes, Fábio Cavalcanti, Reinaldo de Oliveira, Luis Moriel, Nuno Souza, André Lopes, Gilberto Luna, Anderson Pacheco, Leandro Leite, Patrick Serapião, Joabe Gomes, Maria Elizabeth da Silva, Mariza do Nascimento, Severina

(7)

Agradeço ainda às pessoas que contribuíram de maneira concreta em vários momentos: a Julia Pereira por ter me emprestado o gravador para as entrevistas e por ter compartilhado as suas experiências acadêmicas; a Renata Galvão, por ter me ajudado com os mapas e por ter sempre me apoiado; a Silvia Teles, pela ajuda com as imagens e pelo incentivo; a Lorena Veloso, por ter compreendido a minha ausência no trabalho na reta final da dissertação.

Enfim, o meu obrigada a todas as pessoas que não foram aqui nomeadas, mas que contribuíram de forma direta ou indireta para a realização deste trabalho.

(8)

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração (Joaquim Nabuco, em artigo publicado no jornal o Paiz, em 30 de novembro de 1887 apud Dantas e Souto Maior, 1993, p. LVIII - LIX).

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Baseada na noção de paisagem discutida pelo filósofo e geógrafo Augustin Berque (1994), de que ela não é uma coisa em si, mas a relação entre as coisas, uma relação que se manifesta como paisagem quando ganha um determinado sentido individual ou coletivo, esta pesquisa tem como objetivo investigar em que medida a relação entre a ferrovia e a serra das Russas, no agreste pernambucano, ganha sentido e se manifesta como paisagem para os diversos grupos envolvidos.

Entendendo que a apreensão de uma paisagem implica numa certa “forma de ver”,

que passa por todos os sentidos e não apenas o da visão, e de “dizer”, que diz respeito à linguagem verbal e compreende o pensamento e as palavras que o expressam, o método utilizado para a pesquisa lançou mão de procedimentos metodológicos como a pesquisa documental e a observação direta para a compreensão do objeto de estudo a partir das relações que ele estabelece com o meio e a sociedade no tempo e no espaço. A partir disso, as entrevistas semiestruturadas e os mapas mentais foram utilizados como técnicas que ajudaram a revelar em que medida essas relações estabelecidas ganham sentido e se revelam como paisagem nas suas dimensões objetivas e subjetivas para os diversos grupos envolvidos. A análise do material coletado revelou que, assim como preconiza Berque (1994), a paisagem, apesar de sua evidência, é uma invenção sempre nova da realidade e pode ser apreendida de modo diverso pelos indivíduos que com ela estabelecem relações distintas no tempo e no espaço. A paisagem é uma entidade extremamente complexa, que requer uma multiplicidade de olhares e abordagens. Sua identificação e gestão devem ser um esforço coletivo, incluindo não apenas o olhar técnico do especialista, mas o olhar de todos os envolvidos. Entender o trecho ferroviário da serra das Russas nessa perspectiva relacional pode abrir caminho para um reconhecimento mais amplo dos seus valores culturais.

(10)

Augustin Berque (1994), that it is not a thing in itself, but the relationship between things, a relationship that manifests as landscape when it win a certain individual or collective sense, this research aims to investigate the extent to which the relationship between the railroad and mountain of Russas, in the wild of Pernambuco, makes

sense and manifests as landscape for the various groups involved. Understanding

that the seizure of a landscape implies a certain "way of seeing" that goes through all the senses, not just vision, and "tell", with regard to verbal language and understands the thought and the words express, the method used for the research drew on methodological procedures such as direct observation and documentary research to understand the object of study from the relationships he establishes with the environment and society in time and space. From this, the semi-structured interviews and mental maps were used as techniques that helped reveal the extent to which these established relationships gain meaning and reveal how the landscape in their

objective and subjective dimensions for the various groups involved. The analysis

revealed that the material collected, as well as advocates Berque (1994), the landscape, despite its obviousness, is an invention ever new of reality and can be understood differently by individuals who establish relationships with her distinct in time and space. The landscape is extremely complex entity, which requires a multiplicity of perspectives and approaches. It identification and management should be a collective effort, including not only the technical view of the expert, but the look of all involved. Understanding the railway section of Russas in this relational perspective can make way for a wider recognition of their cultural values.

(11)

Figura 01 Estação de Petrolina. 40

Figura 02 Estação Central do Recife. 40

Figura 03 Mapa do Brasil com a indicação da quantidade de bens inscritos

na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário por região.

44

Figura 04 Imagem de satélite indicando a localização das três ferrovias

inscritas na lista do patrimônio mundial, UNESCO. Em vermelho a Rhaetian Railway, em azul a Semmering Railway e em amarelo a ferrovias que formam a Mountain Railways of India.

45

Figura 05 Rhaetian Railway, entre a Suíça e a Itália. 46

Figura 06 Mountain Railways of India. 46

Figura 07 Viaduto sobre o Kal, Ferrovia Semmering entre os anos de 1890

e 1900.

46

Figura 08 Ferrovia Semmering pelo fotógrafo Amos Chapple (Nova

Zelândia).

46

Figura 09 Mapa com a localização do trecho ferroviário visitado na

pesquisa de campo e com a localização dos pontos onde foram realizadas as entrevistas com os moradores.

51

Figura 10 Lançamento da pedra fundamental da Estrada de Ferro Mauá,

em Fragoso, Rio de Janeiro. 29 de agosto de 1852. Publicado em 1983.

57

Figura 11 Ferrovias administradas pelo RFN em 1965. 60

Figura 12 Mapa dos trilhos do Sistema Regional Nordeste da RFFSA -

Rede Ferroviária Federal em 1974. 60

Figura 13 Mapa da malha ferroviária em Pernambuco. Na cor lilás a Linha

Tronco Norte, na cor vermelha a Linha Tronco Centro, na cor azul a Linha Tronco Sul, na cor Laranja a Estrada de Ferro de Paulo Afonso e na cor verde a Viação Férrea Leste Brasileiro.

62

Figura 14 Entrada para Estação de Cinco Pontas, Estrada de Ferro do

Recife ao São Francisco. De uma gravura do “Álbum de Pernambuco de F. H. Carls”, 1878. Foto - Alexandre Berzin (A. B.)

63

Figura 15 Mapa com as ferrovias existentes em Pernambuco. Em

vermelho a atual Linha Tronco Centro, antiga Estrada de Ferro Central de Pernambuco.

65

Figura 16 Mapa do Estado de Pernambuco destacando os Municípios de

Pombos e Gravatá dentro das suas respectivas Regiões de Desenvolvimento.

66

Figura 17 Limites Geopolíticos dos Municípios de Pombos e Gravatá e

localização dos distritos.

67

Figura 18 Mapa de localização da serra das Russas. 68

Figura 19 Neblina na serra das Russas. 69

Figura 20 Foto ilustrando o relevo ondulado da região. 70

Figura 21 Foto ilustrando o relevo ondulado da região. 70

Figura 22 Mapa dos tipos de solos predominantes no trecho ferroviário

estudado.

72

Figura 23 Vegetação na encosta sul da serra das Russas vista a partir da

encosta norte.

(12)

de subsistência são constantes na paisagem.

Figura 25 Plantações de abacaxis na encosta norte da serra das Russas. 74

Figura 26 Plantações de abacaxis na encosta norte da serra das Russas. 74

Figura 27 Mapa com a utilização do solo no trecho da serra das Russas. 75

Figura 28 Condomínios de luxo que se debruçam sobre a serra. 76

Figura 29 Prática de rapel no viaduto ferroviário nº 03, o viaduto Cascavel. 76

Figura 30 Mapa com a localização do trecho ferroviário da serra das

Russas dentro da antiga Estrada de Ferro Central de Pernambuco.

77

Figura 31 Perfis longitudinais das Linhas Troncos da GWBR. Na linha

oeste, antiga Estrada de Ferro Central de Pernambuco, destaque em vermelho para o trecho da serra das Russas, onde o perfil muda bruscamente, indicando a elevação de altitude característica da serra.

78

Figura 32 Estação Ferroviária de Pombos. Data desconhecida. 80

Figura 33 Estação Ferroviária de Russinhas. Data desconhecida. 80

Figura 34 Estação Ferroviária de Cascavel. Data desconhecida. 81

Figura 35 Estação Ferroviária de Gravatá. Data desconhecida. 81

Figura 36 Mapa com a localização das estações existentes no trecho

ferroviário da serra das Russas.

81

Figura 37 Mapa esquemático com a localização dos catorze túneis e seis

viadutos no trecho ferroviário da serra das Russas.

82

Figura 38 Vista interna do túnel 8 revestido em pedra. 83

Figura 39 Vista interna do túnel 5 revestido em rocha bruta. 83

Figura 40 Arco de entrada do túnel 1. 83

Figura 41 Vista interna do túnel 1. 83

Figura 42 Arco de entrada do túnel 11, o de maior cumprimento. 83

Figura 43 Arco de entrada do túnel 6 – Detalhe da placa de sinalização

indicando a extensão do túnel.

83

Figura 44 Viaduto em estrutura metálica na serra das Russas, 1943. 84

Figura 45 Viaduto nº 03, da Grota Funda (mais popularmente conhecido

como Cascavel) e sua inserção na paisagem serrana.

85

Figura 46 Viaduto nº 03, detalhe dos pilares e arcos da estrutura em

concreto armado.

85

Figura 47 Base e plataforma de embarque da estação de Russinhas. 86

Figura 48 Ruínas da estação de Cascavel. 86

Figura 49 Estação de Gravatá. 86

Figura 50 Esplanada de Gravatá com estrutura para eventos. 86

Figura 51 Estação de Pombos. 87

Figura 52 Esplanada de Pombos ocupada de maneira irregular e com lixo. 87

Figura 53 Edifício do depósito e banheiro ocupado de maneira irregular na

esplanada de Pombos.

87

Figura 54 Casa do chefe da Estação de Pombos em mau estado de

conservação.

87

Figura 55 Via férrea com vegetação densa obstruindo a passagem. 88

Figura 56 Deslizamento de pedra sobre a ferrovia. 88

(13)

Figura 59 Vista da serra das Russas onde se notam os desníveis do relevo com a pista antiga da BR-232 no topo, a nova pista da BR-232 no nível intermediário e a ferrovia no nível inferior.

91

Figura 60 Viaduto rodoviário sobre a serra das Russas na BR-232. 91

Figura 61 Túnel na rodovia BR-232. 91

Figura 62 Publicação do edital de tombamento na edição do dia 17 de

junho de 19685 no Jornal do Comércio de Pernambuco.

93

Figura 63 Texto de inscrição da Estrada de Ferro Recife/Gravatá no Livro

de Tombo nº 4 – Monumentos, Sítios e Paisagens naturais.

95

Figura 64 Mapa do projeto “Eco-via BR-232 – Requalificação Territorial”

com destaque para zoneamento referente à zona da serra das Russas.

98

Figura 65 Mapa do projeto “Eco-via BR-232 – Requalificação Territorial”.

Em verde mais claro no centro o Setor de Proteção da Paisagem 2 – SPP 2.

99

Figura 66 Mapa mental de técnico da FUNDARPE. 105

Figura 67 Chalés sobre a encosta sul da serra das Russas vistos a partir

do viaduto ferroviário Cascavel.

106

Figura 68 Encosta norte da serra das Russas vista a partir do viaduto

ferroviário Cascavel.

106

Figura 69 Mapa mental de um engenheiro da RFFSA. 108

Figura 70 Mapa mental de engenheiro que foi residente do trecho

ferroviário da serra das Russas.

108

Figura 71 Mapa mental de empresário do ramo do turismo. 109

Figura 72 Mapa mental de técnico da Prefeitura de Gravatá. 110

Figura 73 Vista da serra das Russas a partir da encosta norte com os

viadutos ferroviários em primeiro plano

111

Figura 74 Mapa mental de arquiteta do IPHAN 114

Figura 75 Mapa mental de arqueólogo da empresa GRAU. 116

Figura 76 Mapa mental de arquiteta da FUNDARPE. 117

Figura 77 Mapa mental de arquiteto da empresa GRAU. 118

Figura 78 Imagem de pessoas colhendo flores no trecho ferroviário da

serra das Russas.

119

Figura 79 Mapa mental de arquiteto do IPHAN. 121

Figura 80 Mapa mental de técnico da Prefeitura Municipal de Pombos. 125

Figura 81 Casas sobre a linha férrea na comunidade Manibu, Gravatá. 126

(14)

Pombos e Gravatá.

Quadro 01 Atributos identificados no trecho ferroviário da serra das

Russas pelos entrevistados.

130

LISTA DE SIGLAS

CAC – Centro de Artes e Comunicação

CBTU – Companhia Brasileira de Transportes Urbanos

CONDEPE/FIDEM – Agência Estadual de Planejamento e Pesquisa de Pernambuco DER – Departamento de Estradas de Rodagem

FADE – Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da UFPE FIDEM - Fundação de Desenvolvimento Municipal

FUNDARPE – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco GRAU – Grupo de Arquitetura e Urbanismo

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional PDN – Plano Nacional de Desestatização

RFFSA – Rede Ferroviária Federal S.A. RFN – Rede Ferroviária do Nordeste

SEPLANDES - Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco

(15)

INTRODUÇÃO 14 1 PAISAGEM E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: ESTABELECENDO

UMA RELAÇÃO

23

1.1 Construindo uma ‘noção’ de paisagem 23

1.2 O Patrimônio Ferroviário: do bem isolado à paisagem 34

2 TRILHANDO UM CAMINHO 49

3 O TRECHO FERROVIÁRIO DA SERRA DAS RUSSAS: HISTÓRIA, CARACTERIZAÇÃO E PROTEÇÃO

56

3.1 A ferrovia no Brasil e em Pernambuco 56

3.2 O trecho ferroviário da serra das Russas: as relações no espaço e no

tempo

66

3.3 A Proteção do patrimônio natural e cultural da serra das Russas 92

4 A SERRA E A FERROVIA: UMA RELAÇÃO QUE DÁ SENTIDO À PAISAGEM

103

4.1 As relações e os sentidos atribuídos 103

4.2 Os atributos que dão sentido às relações 129

4.3 Os sentidos das paisagens 132

5 NA SERRA DAS RUSSAS O TREM SE FEZ PAISAGEM... 135

REFERÊNCIAS 137

APÊNDICE A 141

(16)

INTRODUÇÃO

Le paysage n’existe pas en dehors de nous, qui non plus n’existons pas hors de notre paysage. C’est pourquoi parler du paysage est toujours quelque peu une autoréférence (BERQUE, 1994, p. 27).1

A paisagem da serra das Russas sempre fez parte da minha vida. Nasci e morei em Caruaru no agreste pernambucano até os meus dezoito anos de idade, quando passei no vestibular e fui morar em Recife. O fato dos meus pais terem permanecido no interior fazia com que frequentemente tivesse que pegar a BR-232 para ir visitá-los. E para chegar em Caruaru pela BR-232 tinha que necessariamente passar pela serra das Russas, o que para mim era um prazer, pois considerava a serra o trecho mais bonito de todo o percurso da viagem.

Lembro-me que sabia que estávamos entrando na serra porque os ouvidos

começavam a se ‘fechar’ devido à altitude. A paisagem que tinha relevo plano até

Vitória de Santo Antão começava a oferecer outras visuais conforme íamos subindo a serra, permitindo que a vista fosse mais longe, alcançando um horizonte que ia ficando cada vez mais distante. Então me debruçava sobre a janela e ficava

admirando a paisagem, que ora se ‘escondia’ por trás da vegetação, ora se

descortinava após a passagem por um dos muitos paredões de pedra existentes.

A ferrovia também sempre fez parte da minha vida. Durante todo o meu período escolar estudei no colégio Diocesano de Caruaru, que ficava situado a duas quadras da estação ferroviária da cidade. Quando fiquei mais crescida e podia voltar para casa sozinha, saía do colégio e descia até a estação onde sentada sobre a escadaria principal, ficava vendo a vida passar jogando conversa fora com as minhas colegas, enquanto o ônibus urbano não chegava.

A estação ferroviária fazia parte do meu cotidiano e muitas vezes pensava, com certa nostalgia, como seria bom se o trem ainda funcionasse. Tinha o grande desejo

1

A paisagem não existe fora de nós, que também não existimos fora de nossa paisagem. É porque falar da paisagem é sempre um pouco uma autorreferência. (BERQUE, 1994, p. 27).

(17)

de um dia andar de trem. Recordo-me que vi apenas trens de carga circulando por aquela linha, mas nenhum trem de passageiros, com exceção do trem do forró, que todo mês de junho chegava à estação trazendo alegria e festa no período junino.

A serra das Russas e a ferrovia são realidades com as quais estabeleci relações distintas em minha vida. Por muito tempo elas permaneceram desse modo, isoladas em minha memória e lembranças, sem qualquer relação entre si. Foi apenas em

2008, quando fui convidada pela empresa GRAU2 para participar do Inventário do

Patrimônio Ferroviário em Pernambuco, promovido pela Superintendência do

IPHAN3 em Pernambuco, que essas relações começaram a mudar.

O primeiro levantamento de campo que eu fiz com a equipe para o inventário em maio de 2008 foi, coincidentemente, na esplanada ferroviária de Caruaru. Foi

surpreendente voltar depois de tantos anos com o olhar ‘treinado’ de arquiteta e

descobrir naquela ocasião que, apesar de ser tão familiar para mim, justamente por ter feito parte do meu dia-a-dia por tanto tempo, aquele espaço era, na verdade, ‘desconhecido’, ainda incompreendido. Até aquela ocasião eu nunca tinha entrado no edifício da estação, não sabia como era o seu interior, sua distribuição interna, nunca tinha visto a riqueza de detalhes da sua bilheteria em ferro fundido e os vários tipos de piso distribuídos em seus dois pavimentos. Até então também nunca tinha ‘notado’ o edifício do armazém, apesar de ele estar ali, em frente à estação, estabelecendo uma relação forte e importante com ela e a linha férrea, que se colocava entre os dois como um elo. Como não tinha percebido essas relações anteriormente? Naquele momento elas pareciam tão óbvias...

Aproximadamente um ano após esse primeiro levantamento de campo, já na

segunda etapa do Inventário4, foi realizada uma visita técnica ao trecho ferroviário da

serra das Russas, considerado pelo IPHAN como sendo um trecho exemplar sob o ponto de vista da engenharia ferroviária e também por causa da sua inserção ‘harmoniosa’ na paisagem serrana. De fato, esse trecho já tinha sido reconhecido

2

Grupo de Arquitetura e Urbanismo. 3

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 4

A segunda etapa do Inventário do Patrimônio Ferroviário de Pernambuco, realizada em 2009, consistiu no levantamento dos trechos ferroviários, obras d’arte, material rodante e equipamentos de manobra e sinalização.

(18)

como patrimônio cultural pela FUNDARPE5 no ano de 1986, quando foi feito o

tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá6, com 76,04km de extensão ao

todo.

Assim como ocorreu na visita à esplanada de Caruaru, foi igualmente surpreendente ver que, apesar de já conhecida, a serra é muito maior e mais exuberante do que aquela que via passar velozmente pela janela do carro ou do ônibus. Experimentar a serra sob um ponto de vista diverso, nesse caso a partir da ferrovia, e, sobretudo, sob uma velocidade mais reduzida, a velocidade de quem caminha, foi uma experiência única, marcante, que mudou a minha relação com aquela paisagem.

Adentrar a serra, dessa vez caminhando sobre os trilhos, vendo os detalhes da linha férrea, tocando na vegetação que se debruçava sobre o leito da ferrovia, passar ao lado dos paredões de pedra, ver a sua cor, a sua textura, passar por dentro dos catorze túneis no escuro ou com a luz apenas de uma tocha, ora escutando o barulho dos morcegos ora escutando o silêncio absoluto e depois, logo à frente, contemplar uma paisagem arrebatadora que se descortinava sobre alguns dos seis viadutos existentes, foi uma experiência que mexeu com todos os meus sentidos e emoções, me colocou em relação direta com a paisagem.

Naquela ocasião fiquei imaginando como seria sensacional percorrer aquele trecho de serra no vagão de um trem, vendo a paisagem enquadrada pela janela passar vagarosamente ao som do seu apito. Deve ter sido uma experiência única para aqueles que tiveram a sorte de ter vivenciado isso. Pensei também na engenhosidade dos engenheiros que conseguiram ‘costurar’ a serra com a linha férrea de maneira tão harmoniosa com a topografia existente, de forma que muitas vezes a ferrovia ‘desaparece’ na paisagem.

Diferentemente da experiência vivida na esplanada de Caruaru, nesse caso eu sabia exatamente porque não tinha jamais percebido as muitas relações que se estabelecem na paisagem da serra e que permanecem ocultas para quem passa na

5

Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. 6

O processo 1322/85 do tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá teve duração de dois anos, sendo iniciado em março de 1984 e concluído em março de 1986, quando foi homologado por meio de Decreto nº 11.238 assinado pelo então Governador de Pernambuco, o senhor Roberto Magalhães Melo.

(19)

rodovia... É que para conhecê-la é preciso mais que a observação passiva, é preciso o diálogo, que pressupõe não apenas o intelecto, mas também o coração.

Sem nenhuma dúvida, de todos os trechos percorridos durante o Inventário do Patrimônio Ferroviário, o trecho da serra das Russas foi o mais surpreendente. Aquela paisagem se tornou para mim um marco, uma referência, se tornou ‘minha’. A relação entre a serra e a ferrovia a partir de então se revelou tão forte que hoje não consigo pensar em uma sem necessariamente relacionar com a outra.

No entanto, apesar da relação entre a serra das Russas e a ferrovia parecer tão evidente e se manifestar como paisagem para mim, ela pode simplesmente não existir ou não ser interpretada dessa forma por outras pessoas. Para os técnicos que participaram do tombamento da Estrada de Ferro Recife/Gravatá, por exemplo, a relação entre a ferrovia e a serra parece não ter sido percebida e interpretada como paisagem. Apesar de destacar o trecho da serra das Russas dentro de um trecho mais amplo que foi objeto de proteção, eles não traçaram nenhum paralelo entre a serra e a ferrovia, justificando o valor desta como bem cultural apenas pelo conjunto de obras d’arte ferroviárias existentes, que segundo eles, mereciam ser conservadas porque integravam “uma ambiência daquelas paragens”, constituindo “um conjunto de interesse da memória da estrada de ferro de Pernambuco” (FUNDARPE, 1986, p. 04).

Apesar de ter sido identificado como um ‘conjunto’, o trecho ferroviário da serra das

Russas foi entendido pelo tombamento como uma soma de elementos individuais (as obras d’arte e estações) ligados por uma relação de proximidade, que parece não ter relação com o meio do qual é parte constituinte. A análise do processo de tombamento nos indica que a paisagem ainda era uma dimensão incompreendida pelos técnicos da época. A visão técnica, única considerada no processo, ainda estava vinculada a valores histórico-documentais e a ideia de monumento isolado, o que limitou a interpretação e o reconhecimento do bem cultural em toda a sua complexidade e extensão.

A consequência do entendimento limitado e do reconhecimento restritivo do tombamento se traduziu no isolamento do bem em relação ao seu meio e no

(20)

enfraquecimento ou perda das relações materiais e imateriais estabelecidas entre a ferrovia, a serra e a sociedade. Soma-se a essa problemática a desativação da linha férrea no início dos anos 2000, a falta de fiscalização e conservação do bem por parte do poder público, o que contribuiu sobremaneira para o seu abandono e esquecimento ao longo dos anos.

Mas, qual a explicação que podemos encontrar para o fato de podermos interpretar ou não como paisagem um determinado meio? Segundo Berque (1994, contra capa), a explicação pode estar no fato de que a paisagem, não sendo o meio

ambiente que nos circunda, “est une invention toujours nouvelle de la réalité”7

e por isso, apesar de sua aparente evidência, pode ser apreendida ou não pelos indivíduos que com ela estabelecem relações distintas no tempo e no espaço. É justamente por isso que Berque (1994) afirma que é preciso duvidar da paisagem.

Ainda segundo este autor a história e a antropologia comprovam que “a noção de

paisagem não existiu em todas as épocas, muito menos em todas as culturas” (BERQUE, 1994, p. 15, tradução nossa). Na Grécia antiga e na Idade Média romana, por exemplo, apesar de existir pinturas com motivos paisagísticos e termos linguísticos que os nomeassem, não existia uma consciência de paisagem. Foi na China do sul, no início do século V da era passada, dentro de um contexto sócio

político turbulento com profundas transformações de mentalidade e

comportamentos, que a natureza (de ordem moral) passou a ser entendida como paisagem (de ordem estética), tomando consciência por meio da poesia e ganhando expressão por meio da pintura (BERQUE, 1994).

Assumir que a noção de paisagem não existiu nem em todas as épocas nem em todas as culturas nos força a distinguir dois enfoques para ao seu estudo: o enfoque das ciências da natureza e o enfoque ecumenal. O estudo da paisagem segundo o enfoque das ciências da natureza (como a geografia física e a ecologia, por exemplo) se justifica no nível ontológico do planeta (entidade física) e da biosfera

(entidade ecológica), mas não pode ser aplicado no nível ontológico da ecúmeno8,

7 “é uma invenção sempre nova da realidade”. (BERQUE, 1994, contra capa).

8 O uso do termo ‘a ecúmeno’ está em conformidade com a intenção do autor, Augustin Berque, que recorrendo à etimologia da palavra grega ‘oikoumenê ge: terra habitada’, prefere o seu emprego no feminino, mesmo se em português a palavra seja masculina.

(21)

que por se referir à relação que a humanidade estabelece com a extensão terrestre, diz respeito não só à sua realidade física e ecológica, mas também, simbólica e fenomenal (BERQUE, 1994).

No enfoque ecumenal, que será o adotado nesta pesquisa, a noção de paisagem é algo que não diz respeito apenas ao objeto ou apenas ao sujeito, mas se refere a uma determinada relação humana com o meio, uma relação que ocorre em um tempo concreto e em um espaço concreto e impregna a realidade com um determinado sentido (BERQUE, 1994). Por ser fruto de uma relação concreta no tempo e no espaço, o sentido de uma paisagem deve ser analisado temporalmente, como o sentido de uma época, e espacialmente, como sentido de um determinado meio (BERQUE, 1994).

No âmbito desta pesquisa a ‘época’ analisada será o ano de 2013 (tendo sempre como referência o ano de 1986, marco do tombamento) e o ‘meio’ será o trecho da serra das Russas cortado pela ferrovia, cujo ponto inicial é a estação de Pombos e o ponto final é a estação de Gravatá. Esse trecho é, na realidade, um pequeno recorte de um trecho ainda mais amplo, a Estrada de Ferro Recife/Gravatá, que foi o trecho efetivamente contemplado pelo tombamento.

A análise do sentido da paisagem, ao contrário do que possa parecer, não deve se restringir unicamente ao aspecto sensorial, já que todos os seres humanos, independentemente do tempo e do espaço, são sensíveis ao meio ambiente e

podem senti-lo, mas deve se colocar no âmbito da “interpretação” e é desse ponto

que devemos partir, pois esse caminho pode permitir o estudo da paisagem de modo objetivo, científico (BERQUE, 1994).

Considerando a possibilidade de interpretações distintas para um mesmo meio e tendo como prova disso as percepções divergentes dos técnicos na época do tombamento e as minhas percepções pessoais no ano de 2009 e 2013 quando visitei o trecho ferroviário, surgiram alguns questionamentos que motivaram as reflexões desta pesquisa: a relação entre a serra das Russas e a ferrovia poderia ser interpretada como paisagem pelos técnicos e especialistas de hoje? Essa relação poderia se revelar como paisagem também para outras pessoas como os gestores

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locais, os empresários e os moradores? A relação entre a ferrovia e a serra seria evidente para eles como é para mim? Ou seria tênue ou até mesmo inexistente?

Tendo em vista essas questões, esta pesquisa adotou como objetivo geral compreender em que medida a relação entre a ferrovia e a serra das Russas, no agreste pernambucano, ganha sentido e se manifesta como paisagem para as pessoas presentes nos diversos grupos envolvidos. A identificação dos atributos materiais e imateriais que estão na base das relações que as pessoas estabelecem com a ferrovia e a serra foi um ponto também discutido por entendermos que é a presença desse conjunto de atributos que permite que a paisagem ganhe forma, cor, cheiro, textura, permeie as memórias, ganhe sentido.

Em vista de alcançar esse objetivo foram adotados alguns passos. O primeiro foi a definição do referencial teórico-conceitual que embasou o método de apreensão da paisagem para os diversos grupos envolvidos. Com o referencial teórico e o método definido, o segundo passo foi conhecer o objeto de estudo, o trecho ferroviário da serra das Russas, nas suas relações no tempo e no espaço. Para isso, foram utilizadas como técnicas para a coleta de dados a pesquisa bibliográfica e a pesquisa de campo. O terceiro passo foi a realização de entrevistas semiestruturadas e a aplicação dos mapas mentais que nos ajudaram a entender as relações que as pessoas estabeleciam com o meio estudado e em que medida essas relações ganhavam o sentido de paisagem.

A análise do material coletado por meio da análise de conteúdo revelou que, assim como preconiza Berque (1994), a paisagem, por ser uma invenção sempre nova da realidade, pode ser apreendida de maneira diversa pelos indivíduos que com ela estabelecem relações distintas no tempo e no espaço. A paisagem é uma entidade extremamente complexa, que exige uma multiplicidade de olhares e abordagens e por isso, a sua identificação e interpretação deve ser um esforço coletivo, incluindo não apenas o olhar técnico do especialista, mas o olhar de todos os envolvidos. Entender o trecho ferroviário da serra das Russas numa perspectiva relacional possibilitou o reconhecimento mais amplo dos seus valores culturais.

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Por fim, o documento foi estruturado em cinco capítulos. O primeiro capítulo trata da fundamentação teórica e tem como objetivo construir uma noção de paisagem que possa servir de referencial teórico-metodológico para a pesquisa compreendendo, nesse bojo, uma reflexão sobre a problemática da conservação do patrimônio ferroviário no âmbito da paisagem. O segundo capítulo apresenta o método construído para a apreensão do sentido da paisagem do trecho ferroviário da serra das Russas. O terceiro capítulo traz uma caracterização do objeto de estudo abordando aspectos referentes à sua história, localização, dados físico-ambientais e legislação de proteção. O quarto capítulo apresenta a análise das entrevistas e mapas mentais, revelando em que medida a relação entre a serra e a ferrovia se manifesta como paisagem para as pessoas entrevistadas. Por fim, no capítulo quinto, à guisa de conclusão, procuramos refletir sobre o elemento trem, que mesmo ausente na paisagem física da serra, ainda carrega o simbolismo e os sentidos presentes na paisagem interior de tantas pessoas.

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PAISAGEM E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO:

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1 PAISAGEM E PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO: ESTABELECENDO UMA RELAÇÃO

A theoria não é uma instrumentalização abstrata e confusa, mas a dimensão absoluta mais ampla e genuína do concreto e do prático. (Emanuele Severino apud Kühl, 2008, p. 35).

Este primeiro capítulo tem o objetivo de construir uma noção de paisagem que possa ser utilizada como referencial teórico-metodológico para esta pesquisa. A problemática da conservação que envolve os bens da industrialização de um modo geral e do patrimônio ferroviário de um modo específico, também será discutida à medida que se pretende entendê-la nessa perspectiva de paisagem. O nosso desafio será transitar entre esses dois campos do saber, o da paisagem e o do patrimônio, buscando os pontos onde eles se aproximam e estabelecer uma relação que possa auxiliar na construção de um método de apreensão do sentido da paisagem do trecho ferroviário da serra das Russas para os grupos envolvidos.

1.1 Construindo uma ‘noção’ de paisagem

Por causa da sua natureza polissêmica, controversa, transgressora, caótica, multifacetada e plural, alguns autores (BERQUE, 1994; CAUQUELIN, 2007; CUECO, 1995; ROGER, 2000) preferem tratar a paisagem não como um conceito fechado (BERTRAND, 1995), mas como uma “noção vaga” (CUECO, 1995, p. 177),

uma ideia que é construída ou ‘inventada’ a partir das referências culturais que

acumulamos ao longo de nossas vidas (CAUQUELIN, 2007).

De fato, apesar de parecer ‘cotidiana’ e ‘dada’ para nós ocidentais, a paisagem simplesmente não existe para algumas sociedades que não possuem um termo linguístico específico para nomeá-la. Grandes civilizações como a Índia e o Islã, por exemplo, “apreenderam e julgaram o seu meio ambiente em termos irredutíveis à noção de paisagem” (BERQUE, 1994, p. 1). Este fato comprova que a paisagem não é um acontecimento absoluto, mas relativo, circunstancial.

Mesmo nas sociedades cujo idioma existe uma palavra específica para dizer ‘paisagem’, esta pode assumir acepções diferentes dentro do seio de uma mesma

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cultura, variando conforme a percepção de cada indivíduo. Isso acontece porque "L'image social du paysage est le produit d'une pratique économique et culturelle"1 (BERTRAND, 1995, p. 96), o que faz com que ela seja interpretada de modo diferenciado pelos diversos grupos sociais que a vivenciam. A paisagem está enraizada na vida social e por ela é condicionada num processo contínuo e dinâmico (BERQUE, 1994).

No campo científico, assim como no campo linguístico, a impossibilidade de uma ‘definição clara’ do que seja paisagem persiste. Estudada por diversas disciplinas do conhecimento como a geografia, a ecologia, a geologia e a arquitetura, dentre outras, a paisagem é, na prática, apreendida de modo segregado por cada uma delas, que limitadas ao campo disciplinar do qual fazem parte, conseguem estudá-la apenas sob um ponto de vista restrito. Essa abordagem compartimentada e unilateral reduz a complexidade inerente à paisagem, que exige um enfoque multidisciplinar para a compreensão das suas nuances e dimensões, quer sejam elas materiais ou imateriais. Na realidade, a maioria das disciplinas estuda a paisagem sob um ponto de vista material, a exemplo da geografia e da ecologia, ficando os mecanismos que a movem, que são de ordem imaterial, obscuros ao conhecimento (BETRAND, 1995).

Essa predileção pelos aspectos materiais da paisagem é uma herança da modernidade tão presente na nossa cultura ocidental, que privilegia os aspectos objetivos em detrimento dos subjetivos. De fato, Berque (1994) situa a descoberta da paisagem na sociedade ocidental, mais precisamente na sociedade europeia, com o surgimento da perspectiva no Renascimento e o advento da modernidade no século XVII, que colocou o sujeito e o objeto como entidades apartadas e independentes, sem uma relação mútua. Essa visão extremamente física do mundo, que não apresenta nenhuma consideração ao ponto de vista do sujeito é, segundo Berque (1994), completamente estranha à paisagem. Por isso este autor afirma que a modernidade é incompatível com a paisagem, pois ela extrai o seu sentido, esvaziando-a.

1 “A imagem social da paisagem é o produto de uma prática econômica e cultural” (BERTRAND, 1995, p. 96 tradução livre).

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Em se tratando do estudo da paisagem, nem o aspecto objetivo nem o subjetivo podem ser negligenciados, pois ficar apenas no lado objetivo é tirar da paisagem o espírito que a anima, enquanto ficar apenas no lado subjetivo é tirar da paisagem o seu corpo, a estrutura que lhe dá forma e feição. É preciso corpo e alma para que a paisagem exista. De fato, Berque (1994, p. 5) afirma que

Le paysage ne se réduit pas aux données visuelles du monde qui nous entoure. Il est toujours spécifié de quelque menière par La subjectivité de l’observateur; subjectivité qui est davantage qu’um simple point de vue optique. L’étude paysagère est donc autre chose qu’une morphologie de l’environnement.

Inversement, le paysage n’est pás que ‘miroir de l’âme’. Il se rapport à des objets concrets, lesquels existent réellement autour de nous. Ce n’est ni um revê ni une hallucionation; car si CE qu’il représente ou évoque peut être imaginaire, il exige toujours un support objectif. L’étude paysagère est donc autre chose qu’une psychologie Du regard.

Autrement dit, le paysage ne reside ni seulement dans l’objet, ni seulement dans le sujet, mais dans l’interaction complexe de ces deux termes.2

Bertrand (1995), assim como Berque (1994), considerando como indissociáveis essas duas dimensões que compõe a paisagem, levanta alguns postulados para o seu estudo, postulados estes que são assumidos nesta pesquisa como válidos e pertinentes. Primeiramente, segundo este autor, a paisagem se situa na fenda entre natureza e sociedade, e por isso depende de uma dialética entre leis físicas e leis sociais. Essa dialética consiste em admitir a paisagem como um objeto social, ou seja, como uma imagem construída a partir do fenômeno da percepção e da interpretação sócio-psicológica dos indivíduos, e também como uma estrutura natural concreta e objetiva, que independe do observador. De fato, Cauquelin

(2007, p. 11) também assumindo essa posição, afirma que “os dados do ambiente

físico mantêm um contato estreito com os dados perceptuais formados pela

paisagem”.

2

A paisagem não se restringe aos dados visuais do mundo que nos cerca. Ela é especificada de qualquer

maneira pela subjetividade do observador, subjetividade que é mais do que um simples ponto de vista ótico. O estudo paisagístico é então outra coisa que uma morfologia do meio ambiente.

Inversamente, a paisagem não é só o “espelho da alma”. Ela se refere a objetos concretos, que existem realmente ao nosso redor. Não é nem um sonho nem uma alucinação; pois se o que e ela representa ou evoca pode ser imaginário, ela exige sempre um suporte objetivo. O estudo paisagístico é então outra coisa que uma psicologia do olhar.

Ou seja, a paisagem não reside nem somente no objeto nem somente no sujeito, mas na interação complexa desses dois termos. (BERQUE, 1994, p. 5 tradução para o português Maria Clara C. Malta).

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Essa abordagem, que considera tanto a dimensão objetiva quanto a subjetiva, ajuda a superar uma visão maniqueísta comumente encontrada no estudo da paisagem, que procurando defini-la a partir de pontos de vista contraditórios e muitas vezes antagônicos, coloca-a em um beco sem saída sob o ponto de vista teórico-conceitual, dificultando a compreensão de todas as suas dimensões.

Desse modo, procurando superar uma visão predominantemente morfológica advinda das ciências da natureza, que reduz a paisagem ao meio ambiente geográfico e outra predominantemente idealista, que reduz a paisagem a um simples fenômeno da percepção, esta pesquisa buscará abordar a paisagem como uma noção que surge da interação indissociável das dimensões objetivas e subjetivas, materiais e imateriais, ou seja, entendendo a paisagem como uma entidade essencialmente relacional.

Or l’histoire nous apprend, d’une part, qu ele paysage n’est pás l’environnement – lequel existe objectivement toujours et partout -, mais une entité relationnelle qui n’apparait que dans certaines conditions. D’autre part, l’exemple de la Chine montre que le paysage est advantage qu’une forme extérieure offerte à la vue; c’est, encore une fois, une entité relationnelle, qui engage toute notre sensibilité. (BERQUE, 1994, p. 26-27).3

Para explicar a essência relacional da paisagem Berque (1994; 2010; 2012) usa o enfoque ecumenal em oposição ao enfoque das ciências da natureza, e partindo da definição de ‘meio humano’ e ‘ecúmeno’ lança mão de outras noções complementares como mediância e trajecção. O meio humano, segundo Berque (2012), é a relação que uma sociedade estabelece com o seu meio ambiente. Nessa

mesma lógica relacional ele define a ecúmeno4 como o conjunto dos meios humanos

e, portanto, igualmente uma relação, porém numa escala mais ampla, da humanidade com a extensão terrestre (BERQUE, 2012). A ecúmeno apesar de pressupor o planeta (entidade físico-química) e a biosfera (dimensão da vida) não pode ser confundida com eles porque a relação ecumenal não é formada apenas por

3

A história nos ensina de uma parte, que a paisagem não é o meio ambiente – o qual existe objetivamente sempre e em todo lugar – mas uma entidade relacional que só aparece em certas condições. De outra parte, o exemplo da China mostra que a paisagem é mais que uma forma exterior oferecida à visão; é mais uma vez, uma entidade relacional que engaja toda nossa sensibilidade. (BERQUE, 1994, p. 26-27 tradução para o português de Maria Clara C. Malta)

4 O uso do termo ‘a ecúmeno’ está em conformidade com a intenção do autor, Augustin Berque, que recorrendo à etimologia da palavra grega ‘oikoumenê ge: terra habitada’, prefere o seu emprego no feminino, mesmo se em português a palavra seja masculina.

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relações de ordem ecológica, mas também por relações de ordem técnica e simbólica (BERQUE, 2010), que são próprias de meios humanos.

(...) os meios humanos, cujo conjunto forma a ecumene, são eco-tecno-simbólicos. O que quer dizer que a ecumene é irredutível à biosfera, assim como o humano é irredutível ao seu corpo animal, que é somente o seu topos. (BERQUE, 2010, p. 19).

A definição de topos vem da filosofia de Aristóteles que no livro IV da Física “definiu

o topos de uma coisa como o recipiente dessa coisa” (BERQUE, 2012, p. 5). Esse

recipiente é entendido como algo móvel que pode ser dissociável do lugar e da coisa em si, sem uma relação mútua, porque ambos, a coisa e o recipiente, são compreendidos como meros objetos. A essa lógica aristotélica que cria o espaço neutro abstraído do sujeito, Berque (2010, 2011, 2012) contrapõe outra lógica, que é relacional e traz uma concepção de lugar mais próxima ao que Platão define como

Chôra e que Heidegger define como Ort. Tanto no Chôra como no Ort uma coisa ‘é’

quando estabelece uma relação ontológica com o lugar, que por sua vez é “necessário à existência da coisa, e que ultrapassa a sua definição física” (BERQUE, 2012, p. 6). Para explicar melhor a diferença entre o que seria o Chôra ou Ort de um objeto e o que seria o topos desse mesmo objeto, Berque (2012) usa como exemplo um simples lápis.

Há duas maneiras de dizer o que é um lápis. Uma consiste em descrever um objeto desse gênero. É o método científico, o qual posicionará o dito objeto de acordo com coordenadas cartesianas e medirá a sua forma, sua massa e seus constituintes. Nós saberemos, desta forma, o que é fisicamente um lápis. Isso é suficiente? Não, pois isso não diz o essencial, a saber: que o lápis é uma coisa para escrever. Nós passamos aqui a uma definição existencial; com efeito, é somente enquanto coisa para escrever que pode existir um lápis (mesmo quando se pode, secundariamente, desviá-lo deste uso). Ora, esta concepção supõe necessariamente todo um tecido relacional irredutível ao topos do lápis em questão. Inicialmente, esta concepção supõe ao menos dois sistemas simbólicos: diretamente, a escrita e, indiretamente, a palavra que a escrita representa. Em seguida, uma série de sistemas técnicos: exploração florestal para a produção de madeira, minério para o grafite, fábricas de papel (pois os lápis não escrevem no vazio), transporte, etc. Estes sistemas simbólicos e técnicos são combinados por relações sociais de diversas ordens; por exemplo, as trocas comerciais, as quais supõem simultaneamente as técnicas de transporte e os símbolos monetários.

Tudo isso não é menos necessário à existência do lápis do que o ar para as bactérias aeróbicas, ou a água para os peixes. O conjunto dessas relações necessárias constitui o lugar existencial ou o meio do lápis: sua chora. Esta, como se vê, excede o seu topos físico. (BERQUE, 2012, p. 6-7).

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Entender o significado do que seria o Chôra ou Ort de um objeto nos ajuda a compreender como é possível, por exemplo, que uma pessoa que não tenha uma relação física direta com um determinado lugar, como a serra das Russas, por exemplo, possa se sentir ligado a ele ou lhe atribuir significados pelo simples fato daquele lugar lembrar um período importante na sua infância ou ter sido por um período de tempo curto o seu lugar de trabalho. É que este lugar como Chôra é o conjunto das relações que estabelecemos com o nosso meio (BERQUE, 2010), relações estas que não são apenas de ordem material, mas também imaterial e por isso, ultrapassam a barreira física.

É dentro desse paradigma ecumenal, ou seja, relacional, que entendemos a paisagem como uma realidade relativa que deve ser considerada de modo concreto dentro do tempo e do espaço, existindo apenas em um meio (Chôra ou Ort), que nada mais é que o conjunto de relações que o indivíduo estabelece com o ambiente (BERQUE, 2010). Esse meio participa do ser, que por sua vez participa do meio, constituindo a essência do mundo sensível no qual estamos submersos (BERQUE, 2010).

É porque cada um de nós possui a identidade de um corpo individual, sempre identificados a um meio comum, que somos plenamente humanos, e que podemos estabelecer relações com as coisas. Em um mundo humano as coisas não são puros objetos; elas combinam, como nós, a identidade do seu em si e a sua identificação aos termos comuns – quer dizer, a esse meio que é nosso – onde podemos apreendê-las. (BERQUE, 2010, p. 18) A apreensão desse meio onde estamos submersos só é possível quando ele adquire um determinado sentido para nós, sentido este que é definido por Berque (1994, 2010, 2011, 2012) como sendo a mediância, termo derivado do latim que significa metade. A mediância é “o momento estrutural da existência humana” (BERQUE, 2010), ou seja, é o momento onde ocorre a junção dinâmica das nossas duas metades: o nosso corpo animal (topos) e o nosso corpo medial (chôra), que é comum e partilhado com os outros seres humanos.

A mediância (o sentido), ao contrário do que se possa pensar, não está apenas em nós seres humanos, mas encontra-se também impregnada nas coisas que estão à nossa volta, que por sua vez não se limitam ao seu topos, como um simples objeto,

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mas pela metade são constituídas também pelo chôra, motivo pelo qual podemos nos sentir ligados a um determinado meio e a outros seres humanos (BERQUE, 2010). É por meio da mediância que apreendemos a paisagem e é na paisagem que encontramos o sentido da nossa relação com o meio.

(...) na ecumene, a mediania (mediância - grifo nosso) marca tanto o indivíduo como marca o meio comum, em diferentes escalas. A territorialidade humana é uma expressão dessa mediania. Ela é um aspecto do corpo medial, sem o qual não somos humanos, e sem o qual, em particular, nenhum de nós pode ser uma pessoa, já que o momento estrutural de sua existência não poderia se estabelecer”. (Berque, 2010, p. 19).

Sob esta ótica, a mediância é concebida como “o sentido ao mesmo tempo subjetivo e objetivo (uma significação, uma sensação, uma tendência), da relação de uma sociedade com a extensão terrestre (relação que é um meio)” (BERQUE, 2012, p. 193). Ela é, pois, uma trajecção, ou seja, é um contínuo ir e vir, “um movimento no qual o mundo subjetivo e o mundo objetivo não cessam de interagir” (BERQUE, 2012, p. 193), como numa espiral que põe tudo em relação. Essa relação articula três níveis distintos: o nível do mundo físico, objetivo; o nível das relações ecológicas que ligam o homem ao meio ambiente; e o nível das relações simbólicas (BERQUE, 2012).

O termo trajecção é importante porque nos faz entender que a paisagem sendo a realidade das coisas humanas é irredutível ao puro objeto e à ilusão subjetiva. A paisagem, assim como todas as realidades existentes na ecúmeno é concreta, pois é feita de coisas concretas e “não de objetos abstratos representados por um olhar abstrato” (BERQUE, 2012, p. 210).

Sendo o sentido da paisagem, a mediância é, assim como ela, dinâmica e relativa, ou seja, pode variar no tempo e no espaço, pode existir ou não nas diversas culturas, pode inclusive variar dentro do seio de uma mesma cultura, entre os indivíduos, como já foi dito. A natureza ‘mutável’ da mediância e consequentemente da paisagem, nos coloca o problema da sua análise e apreensão, pois imersos no nosso etnocentrismo podemos cair na tentação de achar que em todas as épocas e em todas as culturas a noção de paisagem sempre existiu, o que é um equívoco.

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Visando superar esse problema Berque (1994, 2012) propõe inicialmente quatro critérios empíricos, que depois se tornaram sete, para a comparação objetiva das sociedades que possuem uma cultura de paisagem daquelas que não a possuem. Esses critérios são (em ordem crescente de importância): 1. Uma literatura, que pode ser oral ou escrita, enaltecendo a beleza dos lugares; 2. Uma toponímia (nome próprio de um lugar) referenciando a beleza visual do ambiente; 3. Jardins de embelezamento; 4. Uma arquitetura concebida para a apreciação de uma bela vista; 5. Representações de pinturas de paisagens; 6. Uma ou várias palavras para dizer ‘paisagem’; 7. Uma reflexão explícita sobre “a paisagem”.

Analisando os sete critérios sugeridos por Berque (1994; 2012), constatamos que os cinco primeiros estão ancorados diretamente em valores estéticos e propriedades visuais do meio ambiente. As expressões “beleza visual”, “embelezamento”, “apreciação de uma bela vista”, “representação de pinturas” traduzem essa abordagem. Por sua vez os critérios seis e sete, que segundo Berque (2012) são os mais decisivos, possuem um apelo mais intelectual, ou seja, tem a ver com a construção de um pensamento de paisagem.

Os critérios elencados por Berque nos dão a pista de que a paisagem pode ser apreendida em basicamente dois níveis distintos: o nível da sua representação estética, mais superficial e evidente, e o nível do pensamento, mais profundo e complexo. Essa apreensão da paisagem implica numa certa “forma de ver” e “de dizer” paisagem (BERQUE, 2012), que passa por todos os sentidos, principalmente o da visão, e também pela linguagem verbal, que compreende o pensamento e as palavras que o expressam.

Para Roger (2000; 2012) essa ‘forma de ver’ a natureza como paisagem se dá por meio de um processo que ele chama de dupla ‘artialização’, que significa algo que é derivado da arte. Essa artialização pode acontecer de maneira direta, in situ, ou de

maneira indireta, in visu “através da mediação do olhar” (ROGER, 2012, p. 157). A

artialização in situ corresponde ao terceiro critério estabelecido por Berque (2012), ou seja, à arte milenar dos jardins, enquanto a artialização in visu "on opère sur le

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regard collectif, on lui fournit des modèles de vision, des schèmes de perception et de délectation"5 (ROGER, 2000, p. 33).

Para Roger (2012) a apreensão da paisagem é um ato essencialmente estético, que envolve o gosto e o sentimento e que, ao contrário do que possa parecer, não é um privilégio apenas dos letrados ou intelectuais, mas diz respeito também aos ‘amadores’, porque mesmo quando acreditamos que o nosso olhar é pobre, ele é

[...] rico e está saturado de uma profusão de modelos latentes, inveterados e, portanto, insuspeitos: pictóricos, literários, cinematográficos, televisivos, publicitários, etc., que trabalham em silêncio para, a cada instante, modelar a nossa experiência, perceptiva ou não. (ROGER, 2012, p. 156).

Esses modelos funcionam, segundo Cauquelin (2007), como uma ‘moldura’ que orienta o nosso olhar, a nossa percepção. A imagem da moldura é usada aqui como uma abstração e serve muito bem para ilustrar essa questão. Como elemento essencial da pintura, a moldura limita e enquadra a cena pintada pelo artista, é por excelência, um dos principais instrumentos de ordenação paisagística justamente por lançar mão do artifício do enquadramento. Os limites impostos pelo enquadramento, segundo esta autora, são indispensáveis à constituição da paisagem, pois é ele que faz com que o infinito da natureza caiba no finito das nossas limitações intelectuais, convertendo as diferenças presente na natureza em unidade, ou seja, em paisagem. O nosso olhar estará sempre impregnado da herança cultural que carregamos e por isso, jamais estará livre de esquemas mentais pré-concebidos (CAUQUELIN, 2007).

Na cultura japonesa as mitates, termo que literalmente significa ‘instituir pelo olhar’, funcionam como esses modelos do quais falaram Roger (2012) e Cauquelin (2007). Segundo Berque (1994), muito longe de serem imitações ou simples reproduções do meio ambiente, as mitates japonesas evocam por meio de metáforas o imaginário coletivo, permitindo, por exemplo, que a paisagem à chinesa seja descolada do seu lugar real e viaje de maneira alusiva ao outro extremo da Ásia Oriental, ao Japão.

5 “[...] opera-se sob o olhar coletivo, fornecendo modelos de visão, esquemas de percepção e de deleitamento” (ROGER, 2000, p. 33, tradução livre).

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Cela consiste par exemple à évoquer dans um poème tel paravent qui evoque tel jardin qui evoque tel haut lieu paysager qui evoque telle figure historique... etc. (BERQUE, 1994, p. 20).6

Uma mitate, ao contrário do que se possa supor, não é uma abstração, mas “é a assimilação de um caso concreto a um paradigma também concreto” (BERQUE, 2010, p. 17). Nas mitates a lógica dominante é a do devir e da identificação, também

chamada por Berque (2010, p. 17) da “lógica da metáfora” ou da identidade do

predicado, que opera tendo como base um mesmo referencial artístico ou literário.

A metáfora, figura de linguagem que lançamos mão cotidianamente para produzir “sentidos figurados por meio de comparações implícitas” (pt.wikipedia.org, 2012), é um poderoso instrumento simbólico que recorremos para ‘dizer’ paisagem. Sem as metáforas

não veríamos nada além daquilo que vemos, limitados à visão próxima e quase justaposta, e não teríamos o sentimento do ilimitado típico da paisagem. E mais, não teríamos referência comum alguma para designar nosso ambiente, ampliar seus limites, passar de um objeto a outro. (CAUQUELIN, 2007, p. 160).

Desse modo, a metáfora faz parte da maneira como nos expressamos por meio da linguagem e sob essa mesma ótica, a linguagem é um importante recurso que utilizamos para perceber, admirar ou descrever uma paisagem. ‘Dizer’ uma paisagem é na verdade, um ato de fundação porque “o nome é definição essencial, é parte constituinte do objeto que nomeia” (CAUQUELIN, 2007, p. 161). De fato, na China, civilização paisagística por excelência, a paisagem surgiu primeiramente "dans les mots et dans la littérature avant de se manifester en peinture"7

Além da linguagem, a representação por meio da pintura é outro meio que podemos utilizar para perceber uma paisagem. Para alguns autores, dentre eles Cauquelin (2007) e Roger (2000), o nascimento da paisagem ocidental se deu por volta de 1415, na Holanda, por meio da pintura. A paisagem pintada tem a capacidade de expressar diferentes valores e elementos de uma cultura, oferecendo “uma ordem à

6

Isto consiste, por exemplo, ao evocar num poema tal paravento, que evoca tal jardim, que evoca tal lugar

paisagístico, que evoca tal figura histórica... etc.. (BERQUE, 1994, p. 20, tradução para o português de Maria Clara C. Malta).

7 “[...] nas palavras e na literatura antes de se manifestar na pintura” (BERQUE, 1994, p. 19, tradução de Maria Clara C. Malta).

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percepção do mundo” (CAUQUELIN, 2007, p. 14). A pintura, portanto, é um poderoso instrumento de representação que pode revelar um conjunto de valores presentes no universo no qual o indivíduo encontra-se imerso. Quando representamos uma paisagem por meio de uma pintura ou desenho, temos a impressão de que ela se torna mais ‘visível’.

Porque a pintura dá a ver não os objetos, mas o elo entre eles, como se tentasse também tecer um vínculo incorruptível entre o que se sabe e o que se vê. (CAUQUELIN, 2007, p. 83).

A paisagem pintada ou desenhada é vista não pelo olho, mas pela razão que nos impele a construir de maneira simbólica um elo entre os elementos que representamos em traços e cores. Assim, quanto mais vemos, mais compreendemos e quanto mais compreendemos, mais podemos ver. E o que vemos? Não as coisas isoladas em si, “mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem” (CAUQUELIN, 2007, p. 85).

A visualização de um lugar, qualquer composição feita pelo artista, atribui àquilo que é representado um valor de verdade que o texto ainda não oferece: as palavras podem mentir; a imagem, por seu lado, parece fixar o que existe. (CAUQUELIN, 2007, 93).

É como se só pudéssemos ‘ver’ (compreender) aquilo que já foi visto, contado, dito, relatado, desenhado, pintado, destacado. Nesse ponto é como se ocorresse uma operação de retorno onde o relato (a linguagem) se coloca em um plano posterior ao desenho, apontado por Cauquelin (2007) como o instrumento epistemológico por excelência, tornando a imagem anterior à fala.

Longa travessia de signos. Idas e vindas entre imagem e fala, entre ideia e imagem. (CAUQUELIN, 2007, p. 98).

Imagem e fala, eis os modos que utilizamos para ‘olhar’ e ‘dizer’ o sentido que uma paisagem tem para nós. Sentido que, como vimos, é mediância, ou seja, uma contínua relação entre o nosso corpo animal e o corpo medial ao qual estamos ligados e no qual nos reconhecemos como seres humanos.

Essa noção de paisagem, como o fruto de uma determinada relação com as coisas, uma relação que se manifesta como paisagem quando ganha um determinado

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sentido individual ou coletivo e que pode ser apreendido por meio da imagem e da fala, será o marco conceitual e metodológico adotado para a compreensão do sentido que a paisagem do trecho ferroviário da serra das Russas tem para os grupos envolvidos, sejam eles especialistas internos, externos, gestores, empresários ou residentes.

No próximo item, fundamentados na teoria da paisagem e tendo como marco teórico-conceitual a noção de paisagem que foi aqui construída, vamos abordar o patrimônio ferroviário a partir da mesma lógica relacional, ou seja, considerando não a individualidade de cada elemento ferroviário, mas as relações que esses elementos estabelecem entre si, com o meio onde se inserem e com a sociedade, ou seja, considerando-o no âmbito da paisagem.

1.2 O patrimônio ferroviário: do edifício isolado à paisagem

A partir da década de 1960 o conceito de patrimônio histórico ganhou mais reconhecimento e expandiu o seu campo de atuação não só do ponto de vista tipológico, mas também cronológico e geográfico. A Carta de Veneza de 1964 foi o grande marco desse processo. A partir dela o antigo conceito de ‘patrimônio histórico’, que antes sempre esteve mais associado ao edifício isolado e àquelas obras monumentais de valor histórico e artístico mais relevante, teve o seu entendimento ampliado. A consequência disso foi que muitas obras que antes eram consideradas ‘menores’, como edificações da arquitetura vernacular, edifícios de épocas mais recentes, a exemplo da arquitetura industrial e moderna, além de conjuntos urbanos e paisagens, passaram a ter status de patrimônio cultural.

Os bens vinculados ao processo de industrialização sejam eles edifícios isolados, sítios industriais ou paisagens industriais, foram inseridos nessa nova perspectiva. A importância da preservação desse tipo de patrimônio para as futuras gerações é devido ao seu caráter universal e ao conjunto de valores que condensa, valores estes que dizem respeito não só à história da ciência e da técnica, mas a toda revolução sociocultural que o processo de industrialização desencadeou em escala planetária.

Referências

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