• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1: A Ciência, o Capitalismo e a Psicanálise

1.2 A Psicanálise e seu cotejamento com a ciência

Não há ciência do homem, o que convém entender no mesmo tom do ‘não existem pequenas economias’. Não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito. (LACAN, 1966a/1998, p. 873)

Freud, médico e pesquisador, esteve referenciado ao espírito científico de seu tempo. Cidadão de Viena no início do século passado, respirava o projeto da modernidade em todas as esferas de sua vida. Como assinala Jacques-Alain Miller:

Pode-se pensar que, na Viena do começo do século, que foi referência, o ponto de ancoragem, o lar do que se chamou o Círculo

de Viena – Wittgenstein, Carnap etc. – Sigmund Freud devia

conhecer os trabalhos desses autores. A irmã de Wittgenstein estava em análise. Freud se casou com uma senhorita Bernays, que pertencia à mesma família que Paul Bernays, que nos deu uma axiomática da teoria dos conjuntos. (MILLER, 2012, p. 18)

A posição da psicanálise no campo da ciência foi uma questão com a qual Freud se debateu ao longo de sua obra. Inicialmente, encontramos na produção freudiana uma busca por torná-la reconhecida cientificamente, afastando-a, para isso, de qualquer lugar filosófico ou “visão de mundo” (Weltanschauung). Contudo o estatuto de saber inconsciente conferido aos sintomas neuróticos e psicóticos põe em pauta as contradições que atribuíram à psicanálise um lugar peculiar na ciência. Freud (1916/2006) atentou-se ao fato de suas descobertas questionarem o ideal de seu tempo.

A psicanálise, porém, não pode evitar o surgimento dessa contradição; não pode aceitar a identidade do consciente com o mental. Ela define o que é mental, enquanto processos, como o sentir, o pensar e o querer, e é obrigada a sustentar que existe o pensar inconsciente e o desejar não apreendido. Dizendo isso, de saída e inutilmente, ela perde a simpatia de todos os amigos do pensamento científico solene, e incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma doutrina esotérica, fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em águas turvas. Contudo as senhoras e os

senhores naturalmente não podem compreender, por agora, que direito tenho eu de descrever como preconceito uma afirmação de natureza tão abstrata como ‘o que é mental é consciente’. (p. 31)

O excerto acima comporta uma atualidade desconcertante. Desde os primórdios, a descoberta do inconsciente anuncia que não somos senhores do nosso pensar e tal revelação abala a segurança da consciência indivisa como suporte do sujeito da ciência. Também se vê ameaçada a noção de juntura do sujeito com uma atividade psíquica consubstanciada em algum lugar determinado do sistema nervoso. Assunto que sofreu evoluções na obra de Freud e encontrou novos desdobramentos na produção lacaniana quando, aos 45 anos, ele escreveu o texto Formulações sobre a causalidade psíquica (LACAN, 1946/1998).

Em tal artigo, produziu-se uma crítica à teorização organo-dinamicista do psiquiatra Henry Ey (1900-1977), associando a ideia difundida de que o cérebro gera a consciência a um sonho de fabricação de um autômato. Lacan faz a seguinte afirmação em tal escrito: “[...] Ey sabia tão bem zombar comigo no passado, dizendo-me espirituosamente que em toda concepção organicista do psiquismo sempre encontramos, dissimulado, ‘o homenzinho que está dentro do homem’, atento a fazer a máquina responder.”(1946/1998, p. 161). Esse homenzinho que habita cada um, como um Eu dentro do eu e assim sucessivamente em uma repetição eterna, é, de acordo com Bassols i Puig (2015b) ligada à fantasia inexorável que as neurociências encontram encarnadas na consciência, na cognição e em seus correlatos neuronais.

Embora encontremos em Freud a ideia de um Eu cindido (Ichspaltung) desde sua constituição, o ensino de Lacan foi preciso ao localizar a consciência e o Eu ao lado das formações imaginárias e vincular as miragens do mental ao arraigado pensamento cartesiano, que rompe com toda certeza condicionada à intuição e atribui especial relevância aos fenômenos ligados à consciência. De fato, percebe-se que o que vivenciamos com o corpo e o mental, elementos tão diferenciados e precisamente localizáveis em nossos tempos, após as ponderações feitas por Lacan, coabitam a mesma casa.

O inconsciente não é algo na realidade psíquica que delimita o círculo daquilo que não tem a virtude da consciência, nos diz Lacan, “[...] o inconsciente é aquilo que dizemos, se quisermos ouvir o que Freud nos apresenta em suas

teses.”(1960/1998, p. 844). À cisão que segrega o subjetivo em prol do mental, localizado no cérebro e em sua atividade neuronal, Lacan responde com o materialismo da cadeia significante que estabelece o texto inconsciente da vida do sujeito. Nessa direção, Bassols i Puig afirma:

Não existe sujeito fora do significado produzido pela linguagem na cadeia significante. E aí onde existe sujeito, o significante ingressou no real. Se a cadeia significante é uma cadeia ‘bastarda’, é porque encontrará sua genealogia não no loop infinito das miragens da consciência, e sim, no matrimônio sempre estranho entre a figura de um destino indeterminado e a inércia da repetição, na esteira do acaso dos lances de dados e do assombro dos encontros imprevistos. (2015b, p.23)

Pensar na consciência como instância unívoca e concentradora das funções cognitivas é desprezar o sujeito como ser falante, que se faz presente naquilo que claudica, que falha e que faz marcas sobre as quais se assentam justamente os mecanismos localizáveis no sistema nervoso central. É nessa direção que a afirmação lacaniana de que não existe ciência do homem, que abre a presente seção, encontra sua explicação. É a partir do sujeito, cindido entre a verdade e o gozo, entre a bolsa ou a vida, como subordinado ao Outro da linguagem – que encontra sua formulação mínima em S1 ! S2 – que se produzem todas as

formações humanas, inclusive sua ciência.

A respeito desse ponto, Lacan (1966b/2003) propõe que a enunciação cartesiana obtida de uma ascese, ao contrário do rigor metódico e das certezas que almeja, evidencia a cisão do ser. Ao reescrevê-la “Sou pensando, ‘Logo sou.’” (1966b/2003, p. 206), o que se produz não é a fundação da consciência, mas o corte irredutível da certeza pensante que se afirmava indubitável. A fórmula de Descartes propõe de um lado o eu que pensa e, de outro, o que é, promovendo o desmembramento da identidade entre o sujeito do ser e o sujeito do pensamento (BASSOLS I PUIG, 2015b).

Após examinarmos aquilo que, da psicanálise confronta a ciência moderna, sendo por isso retirada de uma posição confortável entre as ciências, passemos àquilo que as aproxima, a saber, sua gênese.

Embora seja certo que a reflexão psicanalítica coloque em suspenso as certezas das Luzes, representadas pelo cogito cartesiano, também é verdadeiro

que, sem o advento da ciência moderna, sua existência seria impensável. A psicanálise é filha dos ideais científicos da época de Freud16 e, como destaca Lacan (1966c/1998, p. 232), “[...] não surgiu num momento histórico qualquer. Surgiu correlativamente a um passo capital, a um certo avanço do discurso da ciência.”. Desse modo, nos é possível pensar que o sujeito do inconsciente e o sujeito da ciência são homólogos não só no que diz respeito à sua localização, mas partilham de uma gênese comum.

Reafirmando a impossibilidade de a psicanálise se erigir sem a existência da ciência e do confronto proposto pelo pensamento científico no tempo de seu surgimento, Miller (2012) participa da discussão, alegando que foi o movimento de excomunhão de toda crença prévia promovido por Descartes que, ao desmantelar os mitos e desencadear um conflito de longa duração com a religião, permitiu a emergência da psicanálise. O autor afirma:

Ela nasceu no seio da própria ciência, pois pedir a alguém que fale ao acaso, do que quiser, e supor que há uma lei no que ele diz é uma manifestação do espírito científico – reduzido à pura crença, como Hume indicou com precisão em sua demonstração sobre a causalidade. Se a psicanálise não é uma ciência, ela é, entretanto, condicionada pela ciência. (p.33)

Lacan vai adiante em seu retorno a Freud e não só aponta para a necessidade do surgimento da ciência, em sua configuração moderna, para que a psicanálise pudesse se forjar, como lhe atribui também seu posicionamento ímpar, isto é, em seu avesso. Termo esse entendido não no sentido de opositivo, antagônico, mas sim, como:

[...] parte do ‘mesmo pano’, não qualquer parte, mas aquela que se pretende ‘esconder’. Ali onde a costura foi malfeita, sem um cuidado estético, a tinta não foi considerada, e a estampa ficou opaca, mas ali, também, fundamentalmente, onde a estrutura da roupa encontra sua ‘amarração’, sem a qual nenhuma beleza externa poderia resistir. Por conta desta posição, a Psicanálise está condenada a ser um lembrete crônico à ciência daquilo que ela esconde ao erigir a

16 A esse respeito, podemos acompanhar mais atentamente a seguinte passagem de “Projeto para

uma psicologia” (1895): “A finalidade desse projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural, ou seja, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, dando a esses processos um caráter concreto e inequívoco.” (FREUD, 1895/2006, p. 211).

bela roupa que constrói com seus instrumentos hábeis para criá-las. (VOLTOLINI, 2011, p.237)

Assumindo, portanto, tal função de lembrete, a psicanálise se vê chamada a responder às acusações de uma suposta ineficácia no tratamento das pessoas autistas. O pensamento cartesiano suspende metodicamente todas as certezas e produz a ruptura de toda a crença na realidade externa, apoiando-se no cogito para erigir os alicerces da ciência moderna. O sujeito moderno, portanto, é fruto do discurso que evidencia o pensamento, a razão como objeto de sua ciência, um pensamento autorreferenciado.

Aos poucos, o discurso cientificista expande-se e envolve seus tentáculos em todas as instituições que se constituem como liames sociais da pós-modernidade. Basta nos atentarmos às discussões cotidianas para percebermos que é algo insustentável tomar a palavra para discutir sobre educação, economia, política e saúde, sem nos referenciarmos em um arcabouço teórico determinado, ao menos se desejamos gozar de alguma confiança por parte dos interlocutores. E mais: a credibilidade nos tempos atuais está atrelada à roupagem de eficácia que a ancoragem científica lhe confere. A busca pelo sentido, pela resposta final, expressa-se também quando falamos da infância, que tem como componente intrínseco o desencontro com o mundo adulto, que, por provocar tal mal-estar, foi possuída pelo cientificismo atual, que dela tenta dar conta.

Cabe aqui recorrer, mais uma vez, à precisão apontada por Lebrun, amparada pela teoria lacaniana dos discursos, sobre aquilo que denominamos Discurso da Ciência:

Queremos designar, com esse termo ‘discurso’, o que organiza o laço social, uma vez que a ciência adquiriu desenvolvimentos tais que modificou a legitimidade da autoridade do mestre [...]. Insistamos que não se trata, aqui, de confundir a ciência, as ciências, o científico e o discurso da ciência. É preciso, com efeito, claramente diferenciar a ciência como procedimento de conhecimento e discurso da ciência como laço social inaugurado pela existência desse tipo de conhecimento, inclusive a forma pela qual ele se adquire e é adquirido. (2004, p. 53-54)

Retomando os textos utilizados na Introdução para ilustrar o debate acerca de qual abordagem tem os predicados científicos necessários para tratar do autismo (com se houvesse um), gostaria de relembrar algumas palavras destacadas, não por acaso, com o recurso negrito nos artigos da coluna Tendências/Debates, do jornal Folha de S.Paulo. Elas se configuram em significantes difundidos na atualidade que conferem, sob o ponto de vista dos autores (e não só deles), credibilidade e feição científica a seus discursos em defesa da ABA. São elas: aprimorar, desenvolver, dar respaldo científico, promover levantamento, eficácia, tecnologia e referencial teórico- conceitual, dentre outras.

Tais expressões visam estabelecer uma relação entre a teoria e seus resultados diante dos denominados clientes e se apoiam em uma faceta da ciência que se pretende única, universal e sem limites. O que vemos no apanhado de textos que introduzem o presente trabalho é mais um aspecto desse cientificismo contemporâneo, a serviço do que Lacan cunhou como Discurso do Capitalista.