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Capítulo 1: A Ciência, o Capitalismo e a Psicanálise

1.3 Teoria dos discursos de Jacques Lacan

1.3.1 O Discurso do Mestre

A primeira formação a ser apresentada é a do Discurso do Mestre e Lacan atribui razões históricas a tal proposição. Ele se constitui em uma retomada da problemática hegeliana do mestre e do escravo, apresentada em Fenomenologia do Espírito. Lacan frequentou as aulas de Alexandre Kojéve (1902-1968), que era grande estudioso de Hegel. A partir delas, algo de tal pensamento se transmitiu, visto que o psicanalista, a certa altura do Seminário O Avesso da Psicanálise, confessa não ter conseguido percorrer todos os recantos da obra.

Escrita na convergência dos acontecimentos que produziram a Revolução Francesa de 1789, a Fenomenologia do Espírito (1807/1992) expressa a Weltanschauung da burguesia, classe que, à época, ainda primava pela manifestação das contradições da realidade. Hegel reconhecia que a era em que vivia era “um tempo de nascimento e trânsito para uma nova época” (op. cit p.26). Na obra, o pensador desenvolve a noção de consciência-de-si e seu desdobramento como uma outra consciência advinda da autoprodução da consciência-de-si e que permite o reconhecimento dessas. Acerca de tal tópico, ele articula:

A consciência- de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido” (op. cit. p. 126).

A movimentação dessa díade de consciências reverbera em um agir duplicado mediante a dinâmica de exteriorização (Entäusserung) e interiorização ou rememoração (Er-innerung) de ambas. Nos diz Hegel (1807/1992, p. 127): “[...] esse agir de uma tem um duplo sentido de ser tanto o seu agir como o agir da outra; pois a outra é também independente, encerrada em si mesma, nada há nela que não seja mediante ela mesma.”. A independência, a liberdade e o estatuto de alteridade

idênticas a elas atribuídos somente serão experimentados, no entanto, em forma de saber absoluto, ou seja, quando a consciência-de-si passar à condição de espírito.

No mundo da realidade objetiva, todavia, o reconhecimento do outro ocorre sobre o jugo do conflito e da luta de consciências. Ao invés do reconhecimento recíproco no nível histórico, o que encontramos é uma recognição partidária, na qual uma exerce a função de senhor e a outra, de escravo. Diante da contenda travada, a Outra consciência, obrigada a recuar, aparece subjugada, coisificada e sem possibilidade de ascender a uma identidade. A consciência vitoriosa adquire status de senhor e se considera como a “potência que está sobre o Outro” (HEGEL, 1807/1992, p. 130), relacionando-se com a coisa pela mediação do escravo. Esse também se relaciona com o senhor por meio da coisa, mas enquanto o primeiro visa ao consumo e à satisfação dos desejos, o segundo respeita a autonomia da coisa. O escravo sabe que não pode “[...] acabar com ela até a aniquilação; ou seja, o escravo somente a trabalha.” (idem, ibid.).

A partir dessas e de outras reflexões hegelianas, Lacan toma a dialética do senhor e do escravo como matriz para a escrita o discurso do mestre.

DISCURSO DO MESTRE

S1__ ! ____S2___

$ a

Caracterizado por ter como agente S1, o funcionamento desse discurso é

definido por meio da clivagem provocada pela distinção entre o significante-mestre e a relação com o saber. Como nos diz Lacan (1969-1970/1992, p. 23), “[...] um verdadeiro senhor não deseja saber absolutamente nada – ele deseja que as coisas andem.”. Dessa forma, observamos no matema acima que a localização primordial do saber reside no espaço destinado ao Outro. É, portanto, no nível do escravo, possuidor do saber sobre o que deseja o seu senhor, que se encontra S2.

com todas as ilusões que comporta, ao significante-mestre, ao passo que a inserção no gozo se deve ao saber.

O elemento pequeno a é completamente identificável à função da mais-valia, haja vista que se encontra precisamente no lugar da produção. E, no espaço da verdade, situa-se o sujeito dividido, ambos instalados na linha que denota impotência. De tal disposição advém a conjuntura de que não há relação entre o que se configuraria como causa de desejo e a verdade.

Rahme (2014, p. 62) aponta para o fato de que tal operação elucida que “[...] o agente (nesse caso S1) desconhece o que o mobiliza – o sujeito barrado ($) – e

não acessa aquilo que produz o objeto a, mais-de-gozar.”. Ainda sobre as limitações impostas por tal discurso, Lacan designa que ele é o único a tornar impossível a articulação com a fantasia, expressa pela escrita $ ◊ a, na medida em que a relação de a com a divisão do sujeito está impedida por uma barreira “[...] e é isto exatamente o que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego.” (1969-1970/1992, p. 114). O princípio do discurso do mestre é acreditar-se unívoco, pois a questão da cisão do sujeito é mascarada por sua própria estrutura.

Lacan declara que tal discurso, que se configura como operador do poder, ao ser materializado por uma autoridade instituída socialmente, é semelhante ao discurso do inconsciente, organizado por um significante-mestre, S1.

Miller (2005), ao refletir sobre seus desdobramentos como operador de poder em nossos tempos, concebe como parâmetro para o discurso do mestre o discurso da ciência atual e suas reverberações no delineamento das formas de mal-estar dos sujeitos às voltas com a globalização.

A teorização sobre o discurso do mestre é de capital importância nas ponderações de Lacan, tanto no que depois dele derivará o discurso do capitalista, sobre o qual me deterei mais adiante, quanto pelo que representa no bojo da abordagem psicanalítica sua interface com outros conceitos. Pouco mais de quatro anos depois do fim de seu Seminário 17, em novembro de 1974, temos mais uma ponderação que nos é pertinente por marcar o que, no discurso do mestre, se distingue do real. Embora ao senhor é posto que as coisas são como são e, por isso, tome como real o que se denomina realidade, as coisas não são assim, o real não é o mundo. Diz-nos, Lacan:

O discurso do mestre, por exemplo, seu fim é que as coisas caminhem no passo de todos. Bom, isto não é de modo algum a mesma coisa que o real, pois este, justamente é o que não caminha, é o que cruza a frente da charrete, e mais, o que não cessa de se repetir para impor um entrave a essa marcha. (1974/2011, p.16)

O raciocínio expresso no excerto acima, ao precisar que não há como o apreender o real, mesmo quando se acredita tê-lo feito, será importante no exame, no Capítulo quatro, das reportagens extraídas dos periódicos selecionados, pois encontraremos em algumas delas uma tomada de palavra que se posiciona a partir de um nada querer saber, tanto no que concerne ao real como aquilo que retorna, quanto tomado como o impossível de uma modalidade lógica. Passemos agora à segunda formação proposta por Lacan.