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Capítulo 1: A Ciência, o Capitalismo e a Psicanálise

1.3 Teoria dos discursos de Jacques Lacan

1.3.4 O Discurso Universitário

A última produção que obtemos após um quarto de giro é o discurso universitário, que aparece na história em torno da Idade Média, quando o saber veio confrontar o lugar do mestre.

Quando Lacan o apresenta em o Avesso da Psicanálise, é interessante situar que as conferências realizadas ocorrem após maio de 1968. Contudo, mais do que uma pura coincidência cronológica, tal movimento é abordado claramente por Lacan em seu seminário e participa das ponderações acerca do discurso universitário.

Sua posição em relação a maio de 68, destoante da voz que vinha das ruas no período, propôs uma relação entre os gritos de ordem e os latidos dos cachorros. Observemos a seguinte passagem da aula de 10 de junho de 1970:

Dado um certo estilo da palavra em uso no mês de maio, não pode deixar de me ocorrer que um dos representantes do a, [...] é seguramente o animal doméstico. Neste caso, não se pode mais usar as mesmas letras, mas é claríssimo que o que corresponde ao nosso $, foi preciso um certo saber para domesticá-lo – o cachorro, por exemplo, é o latido. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 177).

O que poderia ser entendido como um posicionamento conservador, no entanto, advém de seu entendimento de que a única subversão verdadeira é a do sujeito. Por tal compromisso, qualquer análise que empreenda encerra a

investigação sobre qual sujeito estava em questão ($), qual era sua causa (a), sua determinação significante (S1) e que saber (S2) dali se desprendia.20

Lacan faz isso em sua exposição, dizendo que, ao latir, o animal late S1 e,

por sua condição de estar apenas implicado na linguagem de um saber primitivo, “[...] só lhe resta evidentemente remexer no que lhe é dado de mais próximo ao significante S1, – a carniça.” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 177). O psicanalista

continua ao nos chamar a atenção para o fato de que, em um nível mais elevado de objeto a e de espécie, “[...] a palavra pode fazer o papel da carniça.” (idem, ibid.).

Ao bradar palavras de ordem, os revolucionários de maio desconheciam o que faziam porque estavam capturados por uma palavra-carniça. Sem se atentarem, continuavam dominados por aqueles contra os quais se rebelavam. Lacan enuncia o seguinte no fim desse trecho de reflexão da seção XII do Seminário:

Estas observações têm o objetivo de provocar-lhes espanto e levá- los pelo menos a essa pergunta reativa ao discurso do mestre – como é que esse discurso, que se escuta tão maravilhosamente bem, pode ter mantido sua denominação? [...] Isto é um sucesso, então, do que chamo discurso do mestre. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 178).

Poderíamos desenvolver outra dissertação a respeito da discussão sobre o que de revolucionário e o que de dominação é possível encontrar nas manifestações e reverberamentos de maio de 1968, que, segundo Zuenir Ventura (2008), é o “ano que não terminou”.

Acerca das ponderações de Lacan, especificamente, não posso deixar de pensar os atuais acontecimentos do Brasil, durante os quais a população foi às ruas bradando inúmeras palavras de ordem e sustentando diversas bandeiras. Poderia precisar o que significa o bordão “fulano ou sicrano não me representa” a partir da ideia de que a palavra pode fazer o papel de carniça e dar a ilusória ideia de quebra de grilhões. Também caberia uma leitura do poder aglutinador das redes sociais

20LAIA, S. Texto, escrito para a Oitava Seção do Seminario de Orientación Lacaniana (SOL) de la Nueva Escuela Lacaniana – Sede Bogotá, no dia 28 de maio de 2009.

Disponível em: http://www.institutopsicanalise-

nesse cenário e de suas facetas revolucionária e opressora na era do capitalismo tardio. Embora enveredar por tais temas me deixe a desejar, retomemos o percurso das proposições discursivas de Lacan. Voltemos ao discurso do universitário.

DISCURSO UNIVERSITÁRIO

S2__ ! ____a___

S1 $

No lugar dominante, encontramos S2 que se especifica por erigir-se com a feição

“não saber-de-tudo (...) mas todo-saber.”. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 32). O S2

tem aí o lugar dominante na medida em que foi no lugar da ordem, do mandamento, no lugar ocupado pelo mestre fez surgir o saber.

Na posição do Outro, temos o objeto a que tem como produção o sujeito barrado, incompleto. Ao se colocar em marcha o discurso, há uma propensão para se objetificar o outro por causa da dominância do saber.

No que diz respeito à verdade, encontramos S1 em seu lugar, apontando

para o fato de que, situada no degrau designado como o da impotência, é inacessível ao sujeito.

Após essa explanação em relação aos termos, poderíamos sintetizar o discurso universitário, postulando tratar-se de um tipo de laço que toma forma como um saber (S2) que pretende objetificar o outro (a), de forma a ter como produção um

sujeito ($) apartado de seus significantes primordiais (S1). O resultado dessa

operação é a manifestação de “[...] um saber desnaturado de sua localização primitiva no nível do escravo, por ter se tornado puro saber do senhor, regido por seu mandamento.” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 110).

Essa forma de laço é crucial para a presente pesquisa. É a partir de seus desdobramentos como alicerce do campo da ciência e do imperativo imposto por aqueles que falam a partir dessa formação discursiva que encontraremos situadas as reportagens analisadas no Capítulo quatro. São textos que apontam para um

sujeito – autista, no caso – coisificado a partir de um saber que se propõe todo. O sujeito é posto à margem em sua relação com seus significantes primordiais e toda a leitura que se faz de seu sofrimento ocorre a partir do próprio empuxo a saber que caracteriza tal discurso.

A respeito desse saber pleno, total, há uma passagem do Seminário 17 essencial porque nos chama a atenção para que, após desvendarmos o mecanismo do discurso universitário, fiquemos atentos ao lugar de onde nós, analistas, tomamos a palavra para não incorrer nele.

O mito do Eu ideal, do Eu que domina, do Eu pelo qual alguma coisa é pelo menos idêntica a si-mesma, a saber o enunciador, eis precisamente o que o discurso universitário não pode eliminar do lugar onde se acha sua verdade. De todo enunciado universitário de uma filosofia qualquer, mesmo aquela que se poderia etiquetar como sendo-lhe a mais oposta, a saber, [...] o discurso de Lacan -, surge irredutivelmente a Eu-cracia. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 65)

Como não cair em tal artifício? Que garantias temos de que a psicanálise não se configure como uma Eu-cracia? Que está pesquisa não se expresse assim, tendo em vista que ela se insere no ambiente universitário? Garantia nenhuma, visto que a abordagem psicanalítica não se inscreve no âmbito das garantias e certificados de qualidade. O que nos é possível é tomar a palavra tendo em conta as diversas formas de se estabelecer um laço e, por meio de uma literal tomada de posição discursiva preservar o lugar que podemos sustentar, a saber o de tomar a palavra ciente de que todo enunciado se inscreve sobre um recôndito de não saber. Nossa resposta, talvez, caminhe na direção de levar em conta o não saber tanto no que diz respeito à clínica quanto à teoria. Deixemos as coisas assim, por hora. Iremos nos deter acerca desse questionamento mais adiante.

Amparados pelo ensino de Lacan sobre as formas de laço social, veremos agora o desdobramento que o discurso do mestre sofre no ventre do capitalismo e que em nossa era assume proporções vertiginosas: o discurso do capitalista.