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Capítulo 1: A Ciência, o Capitalismo e a Psicanálise

1.4 O discurso do Capitalista

Ampliando sua teoria, em 1972, diante de um contexto social, no qual mudanças delineavam-se rapidamente, Lacan anunciou – com uma precisão que se tornaria evidente nos anos posteriores – sua percepção de que o capitalismo se tornara o mestre contemporâneo. Então, ele propôs o Discurso do Capitalista como uma variação do discurso do mestre em conferência realizada na Universidade de Milão (1972/1978). Essa asserção é oportuna para a problematização das formas atuais de constituição do laço social e da feição atual do discurso científico.

Alguns anos antes, em Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola, Lacan anunciava o mercado comum como ocupando lugar dominante na sociedade e expressava sua preocupação com os processos de segregação advindos daí. Ampliando essa discussão, podemos encontrar já, em O Avesso da Psicanálise, elementos que dizem respeito à forma de laço que ele denominaria discurso do capitalista. Logo na segunda seção, enquanto tematiza sobre as mudanças no discurso do mestre, verificamos a seguinte consideração: “[...] o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber.” (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 32).

Algumas páginas adiante, podemos encontrar a primeira utilização direta do termo discurso do capitalista: “Não se esperou, para ver isso, que o discurso do mestre tivesse se desenvolvido completamente para mostrar sua clave no discurso do capitalista, em sua curiosa copulação com a ciência.”(op. cit. p. 115).

Retomando o texto, encontraremos nas páginas posteriores mais uma referência importante. Ao mencionar o sucesso do mestre moderno e o lugar privilegiado dado ao trabalho, como um claro indício deste êxito, Lacan sinaliza que: “Para isso, foi preciso que ele (discurso do mestre) ultrapassasse certos limites. Em poucas palavras, isso acontece àquilo, cuja mutação tentei apontar-lhes. [...] Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista.” (op. cit. p. 178).

Os extratos de texto acima transcritos parecem-nos suficientes para percebermos que tal formação discursiva já está lá, em O Avesso da Psicanálise, no

momento em que Lacan desenvolve seu ensino sobre as modalidades de enlaçamento propostas como discurso, em estado avançado inclusive.

Passemos agora à escrita algébrica do discurso do capitalista:

DISCURSO DO CAPITALISTA

$__ ! ____S2___

S1 a

Partindo do discurso do mestre e com uma pequena inversão do lado esquerdo, alterando o lugar de S1 e de $, temos o discurso do capitalista. Mudança

mais do que suficiente, nas palavras de Lacan , para fazer com que ele “[...] funcione como um relógio, não pode funcionar melhor, mas justamente anda muito rápido, que se consome, se consome tão bem que se consuma.”(1972/1978, p. 48).21

No que concerne à circularidade do discurso, a impotência expressa-se no não acesso de a ao significante primário (S1). Em contrapartida, os outros termos

comunicam-se em direções definidas, colocando em ação o discurso. Como nos lembra Rahme (2014, p. 69), a seta que sai diretamente do objeto a em direção ao sujeito barrado, por exemplo, “[...] indica que o objeto-mercadoria é o que causa o desejo do sujeito” e aponta para “[...] um apagamento do sujeito diante do objeto”.

Lacan não contestou a hipótese de Max Weber que atribuía a invenção do capitalismo ao protestantismo, a Calvino. Em sua obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (1905/2007), Weber expõe que os protestantes haviam desenvolvido o ganho pelo ganho. Ganho a serviço de Deus.

Dessa forma, o capitalismo se enlaçou nesse mecanismo e ultrapassou tal princípio. Precisou, para se tornar um discurso diferente do discurso do mestre – entendendo que o protestantismo também é uma das formas do discurso do senhor

21 No original: “(...) ça suffit à ce que ça marche comme sur des roulettes, ça ne peut pas marcher mieux, mais justement ça marche trop vite, ça se consomme, ça se consomme si bien que ça se consume.”

– romper as amarrações com a religião para, então, casar-se com o discurso da ciência.

A esse respeito, como vimos, não foi um francês protestante (João Calvino), mas um católico francês, René Descartes, o responsável por seu desenvolvimento. A partir do corte cartesiano, que inaugurou a ciência moderna, ciência matemática, o prazer do ganho se colocou a serviço de si mesmo, em uma lógica puramente contábil. Lacan (1969-1970/1992, p. 188) vai se referir a isso, de uma maneira muito explícita, no Seminário O Avesso da Psicanálise:

Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história. Não vamos esquentar a cabeça para saber se foi por causa de Lutero, ou de Calvino, [...] o importante é que, a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama acumulação de capital.

No discurso do mestre, a impotência se fazia presente, como vimos, por uma barreira bem estabelecida entre o mais-de-gozar, produzido como objeto, e a verdade. Há um refreamento do gozo, como designa Lacan. Em sua forma capitalista, no entanto, as coisas se processam de maneira um pouco distinta. A partir de uma posição sustentada pela da ciência, uma nova equação do sujeito- objeto é proposta. (VOLTOLINI, 2009) 22 Fazendo todos os esforços necessários e encontrando os cálculos adequados para produzir um objeto que seja A Verdade, uma verdade do cálculo, o discurso da ciência, põe em suspenso o hiato existente entre o mais-de-gozar e a verdade.

Brousse (2007) indica que o freio ao gozo exposto pelo novo discurso do mestre não se apresenta como limite, barreira ou interdito. Ao invés disso, “Ele se manifesta pelo viés do objeto. Dita um uso do objeto que contribui para definir – isto é, para limitar – o que deve ser um objeto. Poder-se-ia dizer que é um freio não pelo interdito, mas pela função: se se pode dele gozar, é um objeto.”.

22 Voltolini, Rinaldo. O discurso do Capitalista, a Psicanálise e a Educação. 2009, Disponível em:

http://www.educacaoonline.pro.br/index.php?option=com_content&view=article&id=335:o-discurso- do-capitalista-a-psicanalise-e-a-educacao&catid=36:especial&Itemid=46 .Acesso em 9/01/2017, às 20h.

Cabe-nos aqui indicar uma distinção importante: a psicanálise também se debruça sobre a questão do objeto, contudo seu postulado parte da inexistência material desse. Não é um objeto tangível, mas é imprescindível em todos os tipos de enlaçamentos e chamado à existência a partir da linguagem. Sem esse objeto, que Lacan chamou de a, não há fala e, portanto, laço com o outro que se sustente. Esse é um dos traços distintivos entre a psicanálise e o discurso da ciência, pois nos afastamos radicalmente da consistência que tal objeto assume no interior desta. Ao passo que, para a psicanálise, ele só existe a partir da linguagem em sua moterialité, como cunhado por Lacan.

Estamos em nosso tempo rodeado por objetos que possuem uma consistência avassaladora e uma persistência efêmera. A astúcia do discurso do capitalista reside nesses aspectos, aliás, aproveita-se da cisão do sujeito e lhe oferece objetos encarnados, que carregam em seu bojo a promessa de suturar a fenda e, concomitantemente, instalam um imperativo de consumo autossuficiente. Brousse (2007) explicita de forma contundente tal mecanismo ao afirmar que:

O objeto de consumo não interpela nossa divisão, estremece-a, e se apresenta como o parceiro silencioso que apagará os traços da castração pela linguagem. Do lado do sujeito, o objeto não é mais apresentado como tendo um valor agalmático, ao contrário, é cinicamente desvelado como ‘tudo e não importa o quê’. (s/p.)

No discurso do capitalista, há um empuxo aos gadgets que se configuram em objetos mais-de-gozar, aparecendo no lugar da produção e deixando o sujeito à sua mercê. Retomando as palavras de Lacan, onde o discurso do capitalista prevalece, ele anda rápido demais e, desse modo, “[...] se consome, se consome tão bem que se consuma” (LACAN, 1972/1978). Se consome tanto no sentido consumista de quem consome descontroladamente e se consome como circuito de gozo que indica o ato de consumir-se, de exaurir-se.

Quando capitalismo e ciência aliam-se, temos a produção de uma Ciência,23

que pretende dar conta da falta com uma construção teórica que quer tudo explicar. Segundo Jean-Claude Milner, o “cientificismo” e as leis de mercado tomados

23 As letras iniciais maiúsculas utilizadas em algumas palavras servem de recurso para evidenciar o

isoladamente não são motivo de medo, podemos, inclusive, servirmo-nos deles. “Mas quando a gente combina um com o outro, quando a gente os confunde, um monstro surge.” (MILNER, 2003, p. 9).

É disso que parece se tratar quando olhamos o Discurso da Ciência presente nos textos que se pretendem detentores do Saber a respeito do Autismo e seu Tratamento. Afirmar a supremacia desse ou daquele tratamento alegando “[...] historicamente ter se mostrado eficaz, e não, pela propaganda de supostos benefícios.” ou, ainda, comprometer-se em “[...] dar o bem estar à pessoa autista e a seus pais, por meio do ensino de capacidades fundamentais ao seu estar no mundo, [...] pela aplicação da ciência da análise do comportamento” é um engodo imaginário construído pela junção do Discurso do Capitalista e do Discurso da Ciência, que transmuta a teoria e a prática em mercadoria.

Evidentemente, não se trata de toda a ciência, mas de sua faceta tecnicista que, como observou-se nos artigos veiculados no jornal Folha de S.Paulo, mencionados na Introdução da presente pesquisa, convoca a psicanálise, a partir do campo da eficácia, a dar testemunho por meio de resultados quantificáveis e números de publicações em periódicos científicos de sua confiabilidade no tratamento do autismo.

É no exato lugar daquilo que pode extinguir o impossível que se situa o debate a respeito do melhor método no tratamento do autismo: como na fabricação de um gadget que cria a ilusão de que o impossível é possível. O questionamento da psicanálise, mais do que indagação, é um artefato para a manutenção da Ciência em seu lugar imaculado de detentora da Verdade sobre o Autismo.

Lacan (1972-1973/1985, p. 133) nos diz, no Seminário, Livro 20: Mais, ainda, que o saber antes de Descartes é nada, visto que não fora colocado e que, depois de Freud, é o não-saber. E prossegue:

É daí que eu digo que a imputação do inconsciente é um fato de incrível caridade. Eles sabem, eles sabem, os sujeitos. Mas, enfim, mesmo assim, não sabem tudo. No nível desse não-tudo, não há senão o Outro a não saber. É o Outro que faz o não-tudo, justamente no que ele é a parte que de-todo-não-sabe nesse não-tudo.

A verdade não é não-toda, é sempre um semidizer, nos ensina Lacan. Ela é inseparável dos efeitos de linguagem. Diante do para todos, postulado pelo Discurso do Capitalista em sua copulação com a Ciência, a abordagem analítica se coloca no avesso, nos permitindo pensar que qualquer discurso está ligado aos interesses do sujeito e faz furos no todo-saber, permitindo acontecer a solução para cada um.

Capítulo 2 – Sobre as origens de um campo e a delimitação de um diagnóstico: