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O crescente número de diagnósticos de autismo tem exigido reflexão de todos os envolvidos com a infância, sejam médicos, psicólogos, professores, fonoaudiólogos ou psicanalistas. A singular recusa de contato com os semelhantes e o uso peculiar da linguagem, que nos apresenta à nossa dificuldade de escuta, são aspetos enigmáticos desses sujeitos que Lacan (1975) definiu como “bastante verbosos”.

Para começarmos a pensar na problemática, Tendlarz & Bayón (2013) propõem a diferenciação entre autismo e o conceito de gozo autista. Pensar o laço em nosso tempo compreende conceber o desinteresse pelo outro e, nessa direção, “[...] ser um pouco autista, no sentido de desconectar-se do outro, é sem dúvida um significante de nossa época.”(p. 19, tradução livre). Aquilo que os autores chamam de “autismo generalizado” nomeia o gozo, considerando o estabelecimento de laço com o semelhante, sem que disso, no entanto, deduza-se um diagnóstico ou um funcionamento subjetivo. O discurso do capitalista, conforme analisamos, nos apresenta exatamente essa vertente individualista do estar no mundo de nossa era.

No que concerne à diagnose do autismo, parte-se, como vimos em linhas gerais, do que é manifesto como entrave à comunicação e às interações sociais, bem como, contribui para a definição desse quadro a presença de estereotipias e ecolalias. Alia-se a tais fenômenos a precocidade de sua irrupção.

Para a psicanálise, tais expressões são, evidentemente, consideradas e entendidas, a princípio, como sintomas que podem se fazer presentes e em quadros clínicos distintos, embora sejam encontrados no autismo. Tendo como alicerce a noção de estruturas clínicas, sustenta-se que aqueles que não se comunicam a contento, encontram-se em desacordo com o tempo de aquisição da fala, conforme estabelecidos pela pesquisa desenvolvimentista, ou que não nos olham diretamente nos olhos, não são necessariamente autistas. Uma criança não será rapidamente enquadrada em um diagnóstico a partir de seus sintomas, cabe-nos uma leitura mais ampla e menos urgente do que cada formação implica para o sujeito que a apresenta.

Conforme acompanhamos no Capítulo dois, durante a abordagem psicanalítica, os sintomas não são compreendidos isoladamente nem precisam ser extirpados a qualquer preço. O conceito de sintoma permite-nos, dependendo da perspectiva sobre a qual se ancora, entendê-lo como metáfora, gozo ou, ainda, como uma produção sempre legítima e, em alguns casos, autêntica do sujeito.

Ao pensarmos em um quadro sintomático que eclode na infância, alguns cuidados especiais se fazem necessários. Robert Levy (2014) pondera, a partir do ensino de Lacan, que, para a criança, o sintoma além de possuir um sentido a ser desvelado, tem um endereçamento, é uma mensagem enviada a alguém. O autor nos diz:

O sintoma na criança é então uma função no sentido mais matemático do termo; ele é uma função para o sujeito: f(x). É assim que a construção do sintoma e o sujeito se encontram numa espécie de coalescência, de sincronia que implica que suprimir um é suprimir o outro e vice-versa. (p. 210)

Levy aponta para a pós-modernidade como um tempo em que se acostumou a considerar não mais o sintoma da criança, mas a criança como sintoma, fato que tem implicações no que se entende por infância e se lê em sua sintomática.

O reposicionamento do olhar sobre o que acontece no começo da vida merece ser abordado a partir de sua inscrição no discurso do capitalista que se ordena, como consideraram Miller e Milner (2006), a partir dos paradigmas do problema-solução e da avaliação. Esses pressupõem que a um problema, originário de uma queixa da sociedade, estabelece-se um axioma que demanda por resolução das instâncias superiores, e essas, por sua vez, encontram na avaliação a resposta. A estrutura matemática criada entre os dois modelos determina que toda solução passe pelo mecanismo de substituir um impasse por algo que o extermine, constituindo-se em um esquema de substituição por equivalência (MILLER e MILNER, 2006, p. 3).

No caso da infância, esse processo de substituição acontece a partir, por exemplo, do entendimento de que o sintoma da criança é uma ameaça social a ser mapeada e aniquilada. Esse risco, conforme nos aponta Levy (2014), diz respeito à recusa de se acolher a incerteza, pois a educação dos pais ou escolar, constantemente normatizada e avaliada, deveria prover infalibilidade à sociedade.

Tal pensamento expressa-se por meio da intolerância nos mais diversos espaços, mas, especialmente na escola, lugar concebido para lidar com a formação da infância e da adolescência. A esse respeito, o pesquisador nos aponta:

Vê-se bem, no nível das escolas, o quanto essa noção de incerteza está sujeita a uma parte de intolerância. Pode-se observar também o quanto o acesso às novas mídias permitiu aos pais forjarem uma espécie de princípio de normatização ideal da evolução à qual a criança deve corresponder em uma dada idade. (LEVY, 2014, p. 213)

Alicerçados no discurso científico neurobiológico, os princípios que os meios de comunicação constroem asseguram que a observação generalizante permite extrair um entendimento acerca do quão perigosa é a sintomatologia que a criança apresenta, não sendo a essa permitido experimentar o ambiente liberada do olhar que a avalia a partir de “fatores de risco” a uma suposta normalidade.

Vorcaro e Ferreira (2014) refletem quanto ao alcance que a “autoridade científica” tem sobre os dispositivos de saúde oficial que regulam, ressignificam e renomeiam a criança. Acerca disso, afirmam:

[...] os filhos são classificados em tipos epidêmicos facilmente localizáveis e a medicação é o mote de sustentação da legitimidade científica, [...] tornam-se filhos de pais anônimos e têm, no nome da síndrome que os classifica, sua filiação e sua identificação, sendo por vezes reclassificados de acordo com o ano da mais nova revisão do DSM. (p.19)

Retomando a discussão proposta por Levy quanto ao sintoma na criança e tendo em mente o caráter neurobiológico que encontramos nas reportagens examinadas, é importante resgatar a ideia de que o sintoma tem valor e função no psiquismo infantil. É premente sublinhar que, pela condição de estar em constituição, a criança tem uma relação com seu sintoma, distinta daquela do adulto, muitas vezes transitória, volátil e etérea, o que significa que nem todo sintoma levará a um diagnóstico. E, quando assim ocorre, isto é, quando uma sintomática se alinha a uma nomeação que a define, há que se considerar outras nuances.

Infante (2011), ao realizar uma crítica à psiquiatria contemporânea, na qual nos leva a pensá-la a partir das perguntas para que e para quem, contribui com

nossa discussão ao propor a desconstrução da ideia de diagnóstico entendido como natural. Vejamos suas palavras:

Devemos ter em mente o caráter de palavra de ordem de todo diagnóstico. Um diagnóstico não nos informa tão-somente sobre uma doença supostamente dada na natureza; ele a produz. Aspecto sempre negligenciado pelo positivismo empedernido do saber médico. (p. 63)

Com essas ponderações a respeito do sintoma e do diagnóstico, parece-me claro o enorme cuidado com que se deve pensar as vicissitudes da infância. Tanto ressaltando as sutilezas de uma nomeação em um sujeito em pleno processo constitutivo, a qual pode cristalizar manifestações transitórias, quanto desanuviando aquilo que se entende por um e outro. Desse modo, é possível evitar a pressa diagnóstica e a patologização dos sintomas.

Feitas essas ressalvas, avançarei quanto à especificidade daquilo que se nomeia como autismo na abordagem lacaniana. Embora seja possível presenciar atualmente a discussão entre aqueles que consideram o quadro como uma quarta estrutura e os que o localizam no interior das psicoses, há uma concordância em relação à precocidade com que começa a se inscrever e à sua articulação a processos de identificação primevos, como os mecanismos de alienação e separação e o estabelecimento do circuito pulsional. Encontramos também semelhanças na forma de entender o autismo, não como um quadro que abarca diversos sujeitos, mas sim, como uma manifestação diversa que só pode ser delineada no caso a caso, justificando o porquê de, em variados trabalhos, encontrarmos a pluralização do termo.

Há diversos estudos que situam os autismos a partir de recortes que ajudam a defini-los, sem nunca parar de problematizá-los. Bernardino (2015), por exemplo, salienta a importância da escrita e do processo de alfabetização como um recurso vital no estabelecimento da comunicação com o outro. Merletti (2012, p. 7) apresenta a construção de uma metodologia de trabalho institucional com grupo de pais, apoiando-se em dispositivos psicanalíticos, como a escuta, que viabilizam aos familiares sair “[...] do lugar de passividade, exclusão, fracasso e de culpa que muitos vivenciam”.

Como uma referência no campo da psicanálise em extensão no Brasil, Kupfer (2010; 2015), há mais de vinte anos, vem pensando e praticando, inspirada pela experiência de Manonni, em Bonneuil, o tratamento de crianças autistas por meio do dispositivo da Educação Terapêutica. A pesquisadora desenvolveu com seus colaboradores, a metodologia IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil) com a finalidade de detectar precocemente entraves na constituição da criança.

Marie Christine Laznik, psicanalista membro da Association Lacanienne Internationale, é uma das articuladoras do PRÉ-AUT (Programa de Pesquisa e Avaliação do Autismo) que vem trabalhando com profissionais de saúde no sentido de uma detecção precoce. A concepção que orienta tal iniciativa é a de que os primeiros sinais de autismo aparecem muito cedo, em torno do segundo ano de vida. Daí justifica-se a necessidade de trabalhar a partir dos vestígios discretos para avaliar o risco de uma futura evolução autística. Laznik é autora de uma vasta produção acerca do autismo e se apoia no trabalho de psicolinguistas, como Colwyn Trevarthen (1931) e Anne Fernald, pioneiros na área, para aguçar sua percepção na clínica com bebês, problematizando a resposta desses à fala cadenciada da mãe, o manhês.

Outras experiências que vêm acrescentando muito à reflexão acerca dos autismos são oriundas de duas instituições que atendem crianças e adolescentes, denominadas Le Courtil e Antenne 110. A primeira localiza-se no limite entre a Bélgica e a França e foi concebida por Alexandre Stevens; e a segunda, situada em Bruxelas, foi pensada por Antonio Di Ciaccia. Resgatando a ponderação de Jacques-Alain Miller acerca da Psicanálise no âmbito institucional, ambos alicerçam suas experiências no dispositivo da “prática entre vários” (CIACCIA, 2005; STEVENS, 2014).

De acordo com Machado (2016), a prática entre vários tem origem em 1974, com o Antenne 110 e, atualmente, se estende a uma série de instituições francófonas, que incluem também Le Courtil. Os princípios que regem essas iniciativas ancoram-se na afirmação lacaniana de que as crianças autistas estão na linguagem, mas não necessariamente no discurso, que é entendido como o que faz laço com o outro (CIACCIA, 2005).

Dentro de uma lógica de desespecialização, Stevens (2007) afirma que, no Le Courtil – que significa em francês arcaico pequeno jardim ou pátio interno – as pessoas que lá trabalham e que intervêm junto a crianças e adolescentes não são, com efeito, psicanalistas, mas “analisantes civilizados”, assim definidos por ele: “[...] ‘Analisante’ é estar em análise, ou em todo caso ter uma transferência à psicanálise como sujeito suposto saber, e ‘civilizado’ quer dizer regulado pela transferência.” (p.81).

De acordo com Machado (2016), Le Courtil é um lugar limítrofe, pois:

[...] ao mesmo tempo que sela a divisão entre Leers-Nord (Bélgica) e Leers (França), constroi pequenas fronteiras e costura bordas entre o corpo e a linguagem de crianças, adolescentes e jovens em dificuldade de estar no laço social. (p.219)

Após um breve e, certamente, insuficiente sobrevoo de algumas produções que permitem pensar o autismo no interior da abordagem lacaniana atual, cabe-nos perguntar, acerca da presente pesquisa, qual o nosso recorte? Onde nos inscreveremos para pensar os autismos?

Precisamos dar um último e crucial passo em todo esse debate acerca do autismo que atravessa sua história diagnóstica e sua representação nos meios de comunicação na contemporaneidade. Discussão que, no caso da mídia, propõe uma cisão não só entre abordagens, clínica versus genética, mas também separa o cérebro do restante do organismo e o organismo da linguagem.

Ao invés de permanecer no registro das disputas de campo, no qual se estabelece um autismo genético em oposição ao um autismo de origem subjetiva e/ou ambiental, acredito que um aspecto não elimina o outro: muito pelo contrário, eles se inter-relacionam. É factível pensar que, a partir de uma base orgânica, estrutura-se uma constituição que é subjetiva e, da mesma forma, o que se costuma chamar de subjetividade pode deixar marcas no organismo. É nesse sentido que a noção de corpo em psicanálise pode contribuir para a aproximação entre os campos. Na abordagem psicanalítica, o corpo não se restringe àquilo que é da ordem da natureza, que é tomado como organismo, nem diz respeito ao que é suporte para

a expressão. É, para além desses aspectos, algo a se construir. Podemos dizer que a ideia de corpo sofre incorporações e rearranjos ao longo da obra de Lacan, a tal ponto de, no fim de seu ensino, ocorrer a redefinição do sintoma como um acontecimento de corpo. Uma das chaves de leitura possível para o exame de tal noção é pensá-la por meio da formulação dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Contudo, como tais elementos estão atados por um nó, discriminá-los não é um exercício que se sustenta por muito tempo.

Ao imaginário, relacionamos as ponderações de Lacan acerca da formulação do Estádio do Espelho como crucial para formação da função do eu na criança. De acordo com Cukiert & Priszkulnik (2002), é sustentando a ideia de que, em seu início, o eu se forja a partir da imagem que lhe é devolvida pelo outro, que Lacan marca, como paradigma do Imaginário, que “[...] o estádio do espelho se refere à forma como a imagem do corpo próprio, a partir do outro, tem um papel fundamental na formação do eu e na imagem assumida pelo sujeito.” (p.145).

Em suas comunicações do Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954/2009), ao analisar o caso do garoto Dick, de Melanie Klein, Lacan retoma a tópica do imaginário e afirma: “O estádio do espelho, eu o tenho frisado, não é simplesmente um momento de desenvolvimento. Tem também uma função exemplar, porque revela certas relações do sujeito à sua imagem, enquanto Urbild do eu.” (p.103, grifo do autor)

Lacan postula o estádio do espelho como anterior ao processo de maturação fisiológica do sujeito, no qual as funções motoras apontam para uma integração. A experiência de tomar consciência de seu corpo como totalidade confere ao sujeito um domínio imaginário sobre ele que “[...] antecipa-se ao acabamento do domínio psicológico e essa antecipação dará seu estilo a todo exercício posterior do domínio motor efetivo.” (LACAN, 1953-1954/2009, p. 109). Para além do biológico, a noção de estádio do espelho, por não se confundir com uma fase do desenvolvimento, carrega a concepção de estruturação como um processo lógico, ao qual o sujeito é exposto de forma precoce. Nos anos seguintes, essas primeiras aproximações sofrerão as reverberações da especial atenção que Lacan dará aos registros simbólico e real.

No que concerne ao registro simbólico, o atravessamento pela linguagem é um aspecto crucial quando pensamos o corpo em psicanálise, inclusive porque, ao

longo do pensamento lacaniano, podemos encontrar orientações que parecem se opor. Miller (1999) encampa essa discussão a respeito da noção de corpo no interior da obra de Lacan, sustentando que não é possível apreender tal pensamento em um estado completamente estável. As aparentes contradições e rearranjos não excluem o que é mais antigo, mas se sobrepõem indicando uma evolução nas ponderações.

Dessa forma, a questão do corpo e da linguagem aparece sob duas formas distintas e separadas por um intervalo de dezoito anos. A primeira tese encontra-se em Função e campo da palavra e da linguagem em Psicanálise (1953/1998), texto em que o autor afirma que a linguagem é corpo. A segunda pode ser situada em Radiofonia (1970/2003), em que há uma afirmação de que o significante é incorporal.

No primeiro recorte, diz-nos Miller (1999, p. 40): “[...] quando Lacan diz que a linguagem é corpo, quer dizer matéria [...]”, opondo-se à ideia dela como espírito ou idealidade. Há uma materialidade de linguagem, das quais temos referências em Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud como podemos observar, por exemplo, na seguinte passagem: “Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem.” (LACAN, 1957b/1998, p. 498). Já à época da segunda tese, quando toma o significante como incorporal, Lacan fala do corpo como corpo vivo. Dessa forma, Miller (1999, p. 41) sinaliza que “[...] por um lado, a palavra corpo quer dizer matéria e, por outro, ela quer dizer corpo vivo”.

Mandil (2010) propõe uma articulação que nos parece interessante, justamente por apresentar uma abordagem do enodamento do registro imaginário ao simbólico. O autor afirma que Lacan define o corpo como “[...] resultado de uma construção que se realiza em um ponto exterior ao sujeito [...]. O corpo é alguma coisa que se constitui fora e é apossado pelo sujeito.”(p.6).88 Não se trata, para ele, de uma evidência natural, mas de algo que se constitui a partir do espelho e é transformado pelo discurso. É no enodamendo borromeano que o organismo se faz corpo. De um lado, é o corpo que oferece matéria ao significante e se faz significante, de outro é o significante que se materializa no corpo.

88 MANDIL, R. A. Semblantes do corpo (1). MOTe digital, Revista digital da Del, RN, n.1, jul.2010, p.6.

Disponível em: http://ebp.org.br/PDF/Revista_MOTen01_jul_2010.pdf. Acesso em: 25/03/2015, às 20h.