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MÚSICA E PSICANÁLISE

2.3 A psicanálise escuta a música

De que ‗lugar‘ a música retira este poder de nos transportar, emocionar, envolver? Questionamentos sobre os poderes da música têm sido formalizados em estudos que datam de muitos séculos. Já no Egito Antigo, os efeitos da música sobre o ser humano eram discutidos, tema que ocupou também filósofos como Sócrates, Pitágoras e Platão, entre outros, claro.

A psicanálise, assim como a música, também marcou a história da humanidade com seus conceitos inovadores sobre o ser humano. E, como pudemos constatar acima, pode-se dizer que, tanto na música, como na psicanálise, temos a presença de sonoridades. Na primeira, pelo canto, ritmo, melodia e harmonia; na última, pela interpretação clínica dos sentidos da fala e suas inflexões, pelo silêncio e pausas.

Pode se explicar a indiferença – ou até mesmo repulsa – dos principais nomes da psicanálise pelo entendimento da música, em parte, porque, mesmo que a psicanálise sempre tenha influenciado o prazer e busca de outras artes – e até tenha servido de fundamento para novas propostas artísticas (vide o Surrealismo34) –, a

música, suas causas e efeitos ainda são, de algum modo, um campo misterioso para ela.

Fora a condição da expressão artística, a música pode ser vista como uma modalidade de linguagem que pode trazer, à luz da psicanálise, nuances do inconsciente. Em contrapartida, se a psicanálise tem sido ferramenta para o entendimento da estrutura psíquica inconsciente do sujeito, ela pode ser igualmente ferramenta de interpretação da ação da música, seu simbolismo e seu efeito no psiquismo humano.

São poucos os autores que se aventuraram a analisar o binômio psicanálise- música (considerando a comparação que poderia ser feita com qualquer outra temática – ―psicanálise e literatura, por exemplo – que ganha disparado em número de publicações). Em seus estudos, Lopes (2006) lembra que, há até duas décadas,

34 Surgido na França na década de 1920. Este movimento foi significativamente influenciado pelas

teses psicanalíticas de FREUD, que mostram a importância do inconsciente na criatividade do ser humano. De acordo com FREUD, o homem deve libertar sua mente da lógica imposta pelos padrões comportamentais e morais estabelecidos pela sociedade e dar vazão aos sonhos e as informações do inconsciente.

os autores que se atreveram a fazê-lo foram pouco além da questão da catarse e da imaginação evocadas pela música.35

Arthur Schopenhauer talvez tenha sido o primeiro pensador a considerar a música como mais que um apêndice à sua teoria estética. Em ―O Mundo Como

Vontade e Representação‖ (2005), Schopenhauer diz que só por meio da arte atingem-se as ideias, que sintetizam as representações produzidas pela ―vontade‖ cega e irracional. A ―vontade‖ objetiva-se por intermédio das ideias (platônicas), das quais as obras de arte permitem acesso ao ser humano: da ―vontade‖ às ideias, destas às obras de arte. Entretanto, Schopenhauer distingue a música dos outros tipos de arte. Ele postula a música como a emanação direta da ―vontade‖, uma linguagem universal anterior a todas as outras linguagens, plástica ou verbal. No caso da música, a obra é quem olha e penetra o espectador.

Esta chamada invasão (o que Schopenhauer denomina de ―sentimento oceânico‖) justifica o seu existir, além de sua real intensidade. E, então, o espetáculo da existência, as contradições externas e a própria ―vontade‖ em si mesma podem ser contemplados e aceitos. Nietzsche foi o grande leitor e crítico de Schopenhauer, mas que, quanto à música, Nietzsche pode ser encarado como seu melhor leitor e principal discípulo. Em sua obra ―O Nascimento da Tragédia‖ (2000), vê a música como Schopenhauer – como a origem de todo existir, corporificada por deuses (Apolo e Dionísio) – um da forma e do equilíbrio perfeito, o outro do sentimento oceânico e do arrebatamento.

Didier-Weil (1997), afirma que música não é escutada a partir de uma deliberação interna que permita ao sujeito dizer um ―não‖. Trata-se de um ―sim‖ absoluto. Constitui o acesso a um ―real‖ que é intraduzível pela palavra.

Trata-se então de algo anterior ao gosto. É um modo de atingir o ouvinte – sem restrição ou filtro – com a música e que pode resultar em sentimentos positivos ou negativos.

Ainda segundo o autor, nas diferentes articulações lógico-temporais que se apresentam quando nos submetemos à experiência de escuta da música, há um momento crucial em que ocorre um reviramento da pulsão no sentido de se

35 LOPES, Anchyses Jobim. Afinal, o que quer a música? Estudos de Psicanálise, Círculo Anual

aproximar de um objeto reconhecido como ―definitivamente perdido‖. ―No primeiro momento, a falta é articulada com a pulsão e o ouvinte tentará capturá-la, deixando- se levar somente porque espera da música a satisfação de algo que nem sequer sabe-se desejado‖. Didier-Weill propõe que, nesse instante, ocorre uma mudança no destino da própria pulsão que, em consequência, faz deslocar a posição do ouvinte frente ao objeto faltoso. O ―gozo musical‖ recebe uma significação dionisíaca, via uma sensação que ele identifica com o sentimento de ―nostalgia‖.

Para o autor, a música toca o não-sentido de nossas perguntas. O ―ouvir da música‖ é nossa procura de uma resposta circunscrita a algo pelo qual não é possível nem perguntarmos. Segundo ele, o que experimentamos ao escutar uma música está relacionado ao ponto enigmático em que a mensagem do outro se torna nossa própria palavra. Trata-se, assim, de um ―eterno retorno‖ do desejo – essa condição demasiado humana, capaz de levar à usura do significante, ao reconhecimento do não-sentido como condição para um novo sentido; enfim, a ―uma nova forma de gozo‖. Correr o risco de quebrar o círculo da repetição pura e conferir à existência um novo significado: este é o verdadeiro desafio a que a pulsão nos convoca. E é isso o que Didier-Weill afirma ser o que a verdadeira obra de arte consegue realizar – e é por isto que ela sobrevive ao seu criador: porque esvazia o significante. (DIDIER-WEILL, 1992, p.118)