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O IMPROVISO DE CHARLES

5.2 Porque dialeto?

Ela fala em sonata, colcheias, etc. De maneira bastante erudita, como quem entende muito de teoria musical. Parece uma língua estrangeira. Para mim, em

alguns trechos ela poderia estar falando grego que daria na mesma. Mas, ela passa da teoria para a prática e vice-versa.

Fiz uma brincadeira que vai assim, quando ela escreve:

"Adoro sua incansabilidade" (lá, lá, ri, lá, ra, lá)

“Gosto muito de sentir o seu corpo pesando sobre o meu” (tã, tã, tã)

“Sua boca irresistível, seus ombros inabaláveis, sua barriga perfeita, sua intimidade poderosa, suas coxas espetaculares, seu cheiro que enlouquece” (nã, nã,

nã).

No lugar das metáforas melódicas que a Helena usa, eu coloquei um cantarolar para deixar mais em evidência o quanto ela fala do corpo, que fica meio disfarçado em meio a todos aqueles termos do glossário que ela usa. Tirei, por assim dizer, a roupagem musical e o que restou fala por si mesmo.

Quando ela diz: "... E escrevi uma carta para ele, já que estou mesmo

apaixonada e não me policio mais a respeito do que ele vai ou não achar", ela

também poderia estar se referindo ao fato de que confia no analista como um ouvinte atento, aberto para as suas revelações, diferentemente do pai que proibia relações sexuais antes do casamento. Mas, será que temia uma maior intimidade emocional com o analista, quando ela teria acesso às suas emoções mais recônditas e descobriria novos significados, não ficando tão ligada a certo estereótipo musical que ela mesma criou?

Poderia ela vir a se tornar poeta? Afinal, ela recebia poemas do Hermes da autoria de Fernando Pessoa, Mario Quintana.

Com a análise mais avançada após um intervalo significativo sobre as conversas enredadas pela música, Helena apresenta mais cartas para eu ler; meu discurso não mudaria: ela teria que narrar o conteúdo.

Para não me transformar no depositário, meio atônito e paralisado diante da enxurrada de material que a paciente trazia, sem ao menos fazer alguma interpretação sobre esse acting-in, digo-lhe que seria muito importante conversar

sobre as cartas (que ela lê e me entrega, conforme combinado). Ela cai num longo silêncio e ao término da sessão sai sem dizer mais nada.86

Na sessão imediatamente posterior, Helena relata um sonho: estava

vestindo uma roupa muito atraente, num local desconhecido, onde se sentia observada sem identificar quem a olhava. Sua atenção recai sobre um relógio de parede que marcava a hora em que foi quebrado. Ela começa a associar e diz que o vestido tinha alguma propriedade estranha porque ao invés de cobri-la, mais parecia um raio-X que revelava seus contornos e a deixava nua até os ossos. Relata que

acordou desse sonho sentindo-se muito ansiosa.

Disse a ela, em minha intervenção, que achava que esse sonho tinha a ver com o que falamos sobre as cartas. Ela tinha uma grande facilidade de descrever os coitos com Hermes, mas não encontrava coragem para desvelar seu íntimo para o analista. (pelo menos no começo da análise, quando ela se acanhava ao falar sobre assuntos sexuais).

Ela não falou mais sobre as cartas. Era como se esse conteúdo tivesse parado no tempo.

86 Segundo Sophie de MIJOLLA-MELLOR (2005) o termo acting-in corresponde ao uso de FREUD da

palavra alemã ―agieren‖ (como verbo e substantivo). Deve ser distinguido do conceito, ao qual está intrinsecamente relacionado, de ‗passagem ao ato‘ herdado da tradição psiquiátrica francesa e que denota os atos impulsivos e violentos geralmente relacionados com a criminalidade. O termo acting- out se refere à descarga por meio da ação, ao invés da verbalização, de material mental conflitivo. Embora exista esse contraste entre ato e palavra; ambos os tipos de descarga são respostas ao retorno do reprimido: repetido no caso de ações e relembrado no caso das palavras. Outra distinção ocasionalmente feita entre acting-out e acting-in, usado para distinguir entre ações que ocorrem fora da análise (frequentemente explicadas como compensações para as frustrações acarretadas pela situação analítica, pela regra da abstinência, por exemplo) e ações que ocorrem dentro do setting (na forma de comunicações não verbais ou linguagem corporal, onde também estão incluídos os silêncios prolongados, sucessivas repetições ou tentativas de seduzir ou atacar o analista.

Com relação ao fato de que ocorrem o acting-in e o acting-out na situação analítica, Freud disse que o analista precisa estar preparado para perceber que o paciente se entrega à compulsão à repetição, que agora substitui o impulso para relembrar, não apenas na sua atitude em relação ao analista, mas também em todas as outras atividades e relacionamentos que possam estar ocupando sua vida nesse momento. A ação e a repetição são afinal o mesmo processo, envolvendo tudo que surgiu das fontes do recalcado, abarcando a personalidade manifesta do sujeito – suas inibições e atitudes inadequadas bem como os traços de caráter patológicos. De acordo com o pensamento de Freud, o acting-out desde o início está relacionado com a transferência. Ele enfatiza a necessidade de demarcar claramente o que é ‗atualização‘ na transferência e o que é ação tanto dentro quanto fora da situação analítica. O acting-in da Helena não está relacionado à falta de verbalização. Mas, tem como exemplo de ação o componente de já trazer prontos vários textos escritos em casa (cadê a associação livre?) e desejar que o analista passe a ter a função de guardar suas cartas amorosas. Resta ao analista o manejo desse tipo de transferência para tentar fazer com que a paciente volte a seguir a regra fundamental, enquanto ele se abstém de satisfazer os próprios desejos. Penso que isso (o manejo), de fato, se deu com Helena após minha mais ―severa intervenção‖: fale você!!!

Essas cartas são claramente eróticas e tangenciam a pornografia quando ela diz: ―devo dizer também que adoro essas palavras „indecentes‟ que você fala,

inclusive pode continuar falando, quem sabe da próxima vez, eu não fico 'sem- vergonha'‖. E ainda: ―Você diz que eu não digo essas coisas pessoalmente (e

algumas „sacanagens‟ – não acredito que tô escrevendo, mas saiba que o que escrevo é tão ou mais genuíno do que quando falo‖.