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MÚSICA E PSICANÁLISE

2.2 Pulsão invocante

A música, em certos casos, pode fazer algum sentido para o ouvinte, quando há uma analogia entre determinados sentimentos e as impressões proporcionadas ao ouvi-la. Algumas melodias nos causavam muito medo quando éramos crianças; há quem diga que outras provocam uma melancolia inexplicável. Lévi-Strauss (1977) afirma que as palavras são apenas signos convencionais das coisas e, quando possuem equivalentes, podem ser substituídos. Afirma que a palavra substitui a coisa, mas já os sons não se caracterizam como a expressão da coisa porque eles são a própria coisa. (LÉVI-STRAUSS, 1977, p.87)

Didier-Weill afirma ser a música anterior à palavra e exprime uma linguagem universal. Trata-se da pulsão invocante, a mais próxima da experiência do inconsciente, que ao mesmo tempo permite emergir o sujeito do inconsciente, que existia em potência, mas não em ato, e também causa que seja dito um segundo ―sim‖, interior, em resposta ao chamamento do outro. (DIDIER-WEILL, 1992, p. 253)

A demanda da pulsão invocante é uma exigência absoluta feita ao Outro, de que se manifeste aqui e agora. Se o sujeito está numa posição de dependência absoluta do Outro, é porque cedeu a este o poder de satisfazê-lo por completo, ou não satisfazê-lo. A invocação, ao contrário, é um movimento que retira o sujeito dessa dependência: invocante, o sujeito é guiado, orientado em direção a um ‗ponto azul‘ que ainda não está presente, mas que se situa num porvir possível, de onde convoca o sujeito como pura possibilidade (DIDIER-WEILL, 1992, p.17)

O autor chama esse ponto de ‗ponto azul‘ porque o articula à capacidade do sujeito, dividido pela tensão produzida entre harmonia e a melodia, de atingir uma certa nota – ainda não presente – no nível da qual a tensão entre a sincronia harmônica e a diacrônica melódica poderia ser resolvida. A transferência para essa ausência – que chama nota azul – é, assim, a possibilidade de um ato de esperança no fato de que o que ainda não está lá possa cessar de não estar. ―A música que pode às vezes nos oferecer essa nota azul – assim batizada por Delacroix em carta dirigida a Chopin – nos ensina que a esperança que pode nos levar a esperar a promessa dessa nota pode não ser vã‖. (DIDIER-WEILL, 1992, p.33)

... ao homem que canta é creditada instantaneamente a possibilidade de invocar uma alteridade que não estaria foracluída. Enquanto, ao falarmos, aproxima-se o mal-entendido com o Outro, ao cantarmos instaura-se com o outro, instantaneamente evocado, uma relação transferencial onde o Outro é situado como bom ouvinte. (DIDIER-WEILL, 1992, p.63)

Poder cantar implica uma relação com a voz que é de outra ordem que não a da voz que fala: falar implica uma relação com o objeto voz que, constituído como lugar do Outro, permite substituir a demanda do Outro por um desejo causado pelo objeto da falta, diz Didier-Weill. ―Vocalizando seu fort-da, o neto de Freud proclama vitoriosamente que ele não está mais na demanda do Outro, já que se tornou desejante de um objeto causal cuja falta é simbolizada pelo jogo dos dois fonemas‖. (DIDIER-WEILL, 1992, p. 66)

Finalmente a pulsão invocante deve ser entendida como esse impulso que é chamado a mover-se em direção a esse significante detentor do inaudito que ultrapassa todo significado.

O fato de que o músico seja, por excelência, aquele que tende a executar esse movimento não exclui que o não-músico não o execute: diversas obras no campo da literatura, da filosofia ou das ciências humanas são disso a expressão eloquente. Mas nenhuma delas, sem dúvida, testemunha disso tão lucidamente como a de Claude Lévi-Strauss.‖ (DIDIER-WEILL,1992, p.149)

Lévi-Strauss baseia-se na ideia de que, tanto o mito quanto a música, devem ser compreendidos como uma sequência contínua e apresenta duas análises: a primeira, sobre um episódio ocorrido entre os índios Cuna, no Estado do Panamá, quando uma índia em difícil trabalho de parto é salva em um ritual no qual o feiticeiro inicia um longo canto místico de cura. Acerca disso, Lévi-Strauss afirma que o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente e que é dessa manipulação que a cura é esperada. Na segunda análise, diz que foi no período da Renascença e do século XVIII em que começaram a aparecer as primeiras novelas, em vez de histórias ainda elaboradas segundo o modelo da mitologia. Neste momento, o mito foi relegado a um segundo plano no pensamento ocidental, em prol do romance. Ele observa um movimento tal, como se a música tivesse assumido a função mitológica (intelectual e emotiva) que o pensamento ocidental havia abandonado. Para o antropólogo, tanto o mito como a música se originam na linguagem, mas cada um

seguiu diferentes direções: a música veio a destacar os aspectos sonoros da linguagem, enquanto o mito se direcionou a ressaltar o seu campo de sentido.32

Lévi-Strauss buscou na música a relação com os mitos. E na linguagem, repetições e elementos comuns e equivalentes da questão estética também. Entendida como uma das formas de produção de significados mais interessantes, é por meio dela que, nas diversas culturas, é possível analisar sistemas simbólicos visuais, sonoros e da linguagem. Esses expressam exclusivas formas de pensar apropriando-se de flutuações e imprecisões nos sistemas simbólicos de modo que a arte pode criar novas combinações e descobrir inusitadas relações formais, atingindo conteúdos inimagináveis.

Lévi-Strauss analisa a arte, os mitos e os sistemas de parentesco sob a mesma perspectiva teórica. Aspectos que ele identifica em diversas obras a que se dirige. Por isso o mito é, para Lévi-Strauss, porta de acesso privilegiada às leis de funcionamento do inconsciente, sem nenhum tipo de constrangimento: nem mesmo a realidade exterior. Música e mito.

A música não tem palavras. Entre as notas, e a frase, não há nada. Para Lévi-Strausss na música não há algo parecido com o que seria a palavra no universo da língua falada e escrita. A linguística busca estruturas inconscientes, um dos pontos principais da produção surreal. Desse modo, ao incorporar mecanismos da arte surrealista e dadaísta, como a colagem, e amalgamá-los com as influências de sua formação, Lévi-Strauss ficou conhecido como o descobridor de estruturas.

Tanto o mito quanto a música ocidental teriam em comum a capacidade de transcender a oposição entre o sensível e o inteligível e a qualidade de trabalhar com a verticalidade e a horizontalidade. Uma partitura, por exemplo, pressupõe leitura vertical, que seria simultânea para todos os instrumentos. Entretanto, é possível ouvir só a flauta, o que torna a leitura horizontal. A música é capaz de se libertar totalmente da linguagem: os sons propriamente musicais não seriam os utilizados pela língua, já o sentido mítico exigiria sempre a mediação de uma língua particular para se expressar.

32 CASTRO, Bruno Portes de. Entre o mito e a música: Pontuações sobre a estrutura. Psicanálise &

Barroco – Revista de Psicanálise. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Cultura, Juiz de Fora, MG; v.5, n.2: p.95-103, dez. 2007.

Já Roland Barthes, reflete sobre o fenômeno da significação sobre os conceitos de música e linguagem, contribui com novas elaborações. Ramalho (2003) comenta nos ensaios sobre música reunidos em ―O óbvio e o obtuso‖, que Barthes apresenta a linguagem como pertencente à ordem do geral e a música pertencendo à da diferença. A mudança do objeto musical, tal como se apresenta à palavra, o deslocamento da zona de contato entre música e linguagem, é a principal contribuição de Barthes para a musicologia. Já em ―A escuta‖ (1976), Barthes diz que o nível de sentido que orienta a escuta musical é da ordem não da significação, mas da significância. Diferentemente da escuta dos índices e dos signos, o que é escutado não é um significado, objeto de reconhecimento ou de decifração, é a própria dispersão, o espelhamento dos significantes, que voltam, sem cessar; há uma escuta que produz novos significantes sem que desapareça o sentido. Barthes afirma, ainda, que a escuta psicanalítica é aquela que melhor pratica a escuta da significância, por não esperar ―signos determinados, classificados: não aquilo que é dito ou emitido, mas aquele que fala, aquele que emite‖.33 Uma escuta que se lança

sem cessar no jogo da transferência, de uma significância geral, que já não é concebível sem a intervenção do inconsciente.

Para Barthes, a escuta psicanalítica é como uma atenção flutuante, como uma escuta flexível, entre o engajamento teórico e o deixar vir, que permite prestar ouvido ao inconsciente. Na obra musical, seria revelada uma escuta, não mais imediata ou linear, mas uma narrativa musicológica – abstrata, não decifrável imediatamente em palavras; uma narrativa de entrelinhas, de percepções. Para tratar desse nível de escuta, seria necessário se falar por meio de metáforas, de imagens musicais.

Ao identificar, na escuta musical, a mesma forma arquetípica de escuta da psicanálise, Barthes coloca escuta musical e escuta psicanalítica no mesmo patamar. Ele afirma que esta combinação entre música e psicanálise tem consequências maiores e mais profundas do que simplesmente a abertura dos vasos comunicantes entre as duas atividades.

33 RAMALHO, Rafael Guedes. As possíveis contribuições de Roland Barthes para a Musicologia.

Caderno do Colóquio, p. 65, 2003. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. Rio de Janeiro, CLA/UNIRIO, ano V, dezembro de 2005, 120p.