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O IMPROVISO DE CHARLES

4.8 A retórica da improvisação

No ensaio, ―A retórica da improvisação: discurso espontâneo no jazz e na

psicanálise‖, Lichtenstein compara a improvisação musical no jazz com a associação livre em psicanálise a fim de entendê-los sob uma nova luz. Afirma que atos de improvisação podem ser rotulados sob o título de talento ou até receberem certo véu místico, tais como inspiração ou intuição criativa (LICHTENSTEIN, 2003, p. 227).

O objetivo, [da improvisação] no caso da psicanálise, é libertar-se de inibições e/ou sintomas neuróticos e promover a liberdade de expressão espontânea em relação ao analista.

O autor comenta sobre a expectativa não atendida de se encontrar uma vasta literatura psicanalítica sobre as características do discurso espontâneo. E ainda que tal literatura

... existe quanto ao que pode interferir na expressão espontânea no setting analítico, ou seja, sobre a natureza da resistência; no entanto, não é o mesmo que olhar, num nível formal, para o que realmente ocorre necessariamente, ainda que de forma rara, quando as resistências são superadas. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 228)

Freud citou Schiller para indicar que o princípio que ele estava considerando ser a fundação da prática psicanalítica já era conhecido pelos poetas. Essa herança das artes continuou a ter um papel na ciência da psicanálise. É também interesse de Lichtenstein reconhecer essa linhagem e estudar seus efeitos sobre a psicanálise; com isso pôde esboçar uma comparação com outro campo, a improvisação no jazz, onde o princípio de Schiller também está atuando. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 228)

Pode-se pensar, lendo o autor, que a liberdade formal do improviso no jazz representa determinados desejos de liberdade em relação à autoridade social. Isso foi explícito na relação de Charles com seu pai. Talvez como nos primórdios de sua criação, o jazz trazia os mesmos ―desejos de rebelião‖, rechaçando o isolamento e humilhação (aos quais os negros precursores foram submetidos), que agora por razões diferentes também se revelam. Por exemplo, saindo da linha, tocando fora da melodia, num compasso diferente, único, singular.

Entretanto, não se trata de liberdade completa, pois há regras ou estruturas pelas quais tais liberdades se expressam. Respeito e transformação estão intimamente relacionados e não constituem atitudes opostas. ―Subestimar essa dialética é perder de vista o que pode ser o aspecto realmente sublimatório do jazz: a bem-sucedida junção entre invenção e ordem‖. (LICHTENSTEIN, 2003, p.229)

Freud manteve-se interessado durante toda a sua vida em mapear a relação entre o discurso manifesto e o texto latente. Seus vários modelos de mente são metáforas para essa relação.

Uma das virtudes da metáfora é a de que ela nos convida a considerar como essa leitura ocorre, ou seja, o que em relação ao método da associação livre no

setting analítico permite ou facilita esse tipo de leitura? Em relação ao jazz, no que

consiste o texto de uma forma de música que não está escrita, como é o caso da improvisação no jazz? (LICHTENSTEIN, 2003, p. 231).

Há uma estrutura musical implícita ou um texto latente por trás de todo improviso que funciona analogamente às estruturas psíquicas, determinando tanto

possibilidades como limites. Mas nunca se pode dizer tudo o que está contido, porque na improvisação o músico descobre algo novo, novas possibilidades que parecem emergir a partir da estrutura dada. Essas formas emergentes, se tiverem suficiente autoridade e ―veracidade‖, passam então a expressar possibilidades que sempre estiveram lá, mas nunca antes percebidas. ―São consideradas descobertas sobre o texto latente ao mesmo tempo em que são invenções baseadas nesse texto, um paradoxo também encontrado no caráter da descoberta psicanalítica‖. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 232)

Da mesma forma, a relação de um indivíduo com a estrutura de um desejo inconsciente permite uma descoberta contínua no contexto da transferência (sem mencionar a realidade da vida fora da análise).

Numa metáfora musical é como se fosse possível ouvir o tema original como fundo do que é tocado. Apesar de estarem sendo tocadas notas diferentes, o que resulta é um novo sentido dado à nota original subjacente. Variações musicais estão repletas de representação metafórica de notas anteriormente tocadas.

Na substituição via metonímia, não se ouve toda a melodia original representada numa nova forma; na verdade se reconhece sua presença por meio de partes. ―A metonímia não cria um novo sentido. Ela cria novas conexões ou ligações com signos familiares‖ (LICHTENSTEIN, 2003, p. 235).

Esses momentos de ambiguidade e inesperadas mudanças de significado são possíveis por causa do caráter metafórico e metonímico da linguagem. As figuras de linguagem, tal quais os processos de condensação e deslocamento no trabalho do sonho, são os mecanismos do processo primário.

Como consequência do caráter onipresente da metáfora, qualquer vocalização pode ter inúmeros significados e conotações. A melodia original, afirma Lichtenstein, tanto quanto foi um fato objetivo no início, é revelada pela sequência de improvisações e pelo seu lugar entre elas para também ser um signo dentre outros signos.

No discurso analítico, o contexto dos comentários tende a mudar de formato e deslizar de uma forma que é normalmente restringida num discurso comum. Por essa razão, o analista pode chamar a atenção para os momentos de ambiguidade, não para eliminá-los como se faz num discurso denotativo, mas com a intenção de

sublinhar a presença deles e permitir sua expansão. Pelo fato da regra fundamental perder sua restrição denotativa no discurso analítico, essas funções poéticas alternativas começam a trabalhar abertamente. A atividade diária da psicanálise coloca em funcionamento as funções poéticas num contexto de improviso.

Às vezes, em determinados momentos, os problemas musicais se tornam muito grandes. A improvisação vacila. Se o músico está tocando e não tem o direito de parar, ele pode se apoiar em substituições familiares num dado momento, com frases enfadonhas, transformações que têm apenas a aparência de improvisações. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 236)

Por vezes o analisando enfrenta um impasse semelhante em suas associações. Bloqueado, ele fica em silêncio ou cai na repetição, em substituições conhecidas, qualquer coisa que ele possa usar para se apoiar. É importante que o analista perceba isso e descubra um modo de fazer com que o processo continue rumo à possibilidade de algo novo vir a ser dito.

A mudança na forma discursiva altera a relação entre discurso e objeto, introduzindo variações que abrigam um novo significado; o significado do indivíduo evidentemente, mas um significado que não conseguia encontrar seu rumo no discurso denotativo devido aos mecanismos da repressão. Dessa forma, o desejo latente encontra sua expressão. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 238)

O músico que toca jazz geralmente comunica o objeto melódico primário diretamente num modo denotativo. Pode ser observado o cuidado extremo ao executar precisamente o que está escrito. É tratado, pelo músico, como um fato objetivo que vai ser descrito numa linguagem musical prática e comum. É apresentado como um objeto independente já existente no mundo, algo denotado. As improvisações começam apenas após isto ter sido feito.

Ao apresentar o objeto-melodia no início e no final das improvisações, uma sequência mais plena de signos é criada. Não somente uma sequência de improvisações, mas um tipo que também inclui a melodia original. A sequência de improvisações é tal que por meio dela a relação do signo com o objeto é mais solta por meio de transformações poéticas.

Quando o psicanalista relembra o analisando a respeito de comentários anteriores, ele se esforça para preservar tão próximo quanto possível a forma

dessas comunicações: seu status de signos e não meramente seu sentido literal. O analista também está atento às pausas e lacunas na sequência dos signos.

Por meio da função poética [do discurso analítico], ou seja, por meio de uma relação signo-objeto mais solta, um vínculo entre essas expressões se torna um novo locus da verdade, ou seja, um lugar onde o significado pode ser encontrado onde previamente parecia não existir. (LICHTENSTEIN, 2003, pp. 239-240)

Além das relações entre a melodia e variações e a emergência de uma relação signo-signo, há ainda uma dimensão de tempo: o tempo da improvisação onde uma nova figura é revelada onde não existia antes; tem a ver com a melodia, mas também com o músico que está improvisando, refere-se à convergência particular naquele momento do desejo e da melodia.

É semelhante ao ouvir um analisando. ―Ouve-se tanto mais do que é possível descrever‖. (LICHTENSTEIN, 2003, p. 245)

Não apenas os objetos musicais, mas todos os objetos são definidos pelas suas lacunas, ou seja, seus limites. Relacionar-se com o objeto é passar a conhecer seus limites, considerar isso suportável ao mesmo tempo em que o objeto frustra os desejos do sujeito de satisfação total, ininterrupta. De fato, a possibilidade de um desejo sustentado é assegurada somente pelas lacunas no objeto. Dessa forma, tornam-se tanto a fonte de prazer como de frustração.

Talvez, realmente, não existam melodias originais no mundo, apenas variações tomadas no momento como originais. Assim é com o sonho e todos os demais sonhos. Um sonho apenas é original no sentido de que dá uma nova forma a traços já existentes. (LICHTENSTEIN, 2003, p.250)

É verdade que a eficácia do trabalho psicanalítico jaz na obtenção de certa plenitude do discurso, uma plenitude na qual afeto e significado se reúne, onde o impacto do desejo é vivenciado por meio do discurso, depois são pelas figuras de linguagem do improviso que esse religar acontece.