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MÚSICA E PSICANÁLISE

2.5 Metáfora musical

2.5.1 Sonoridades musicais

Os silêncios e as pausas estão presentes na articulação da própria linguagem, da fala viva. Uma linguagem viva não existe sem silêncio. A linguagem analítica pode funcionar ora como parlar cantando, ora como prima La musica. Há momentos em que a sonoridade da voz e as emoções que ela veicula produzem mais sentido do que está sendo expresso pelo conteúdo verbal, especialmente em pacientes em fase de regressão intensa . [Alfredo Naffah Neto – Revista IDE, São Paulo 30(44) 8-14, 2007] O sonoro funde e nutre o inconsciente em sua aparição primeira. Mas em termos fisiológicos, não existe imagem de um som. Um som é tão imaginável quanto o silêncio. O sonoro, sendo muito mais arcaico, não impõe fronteiras facilmente demarcáveis, aptas para guiar as relações entre as crianças e os objetos que soam (...) O sonoro é sempre evanescente e constantemente destruído, morre no mesmo ritmo que o tempo. Objeto musical é aquele que sobrevive psiquicamente quando na realidade física desapareceu. E sobrevive psiquicamente ao instaurar o rastro mnemônico, ou seja, ao romper, no sistema de neurônios, barreiras de contato, criando dessa forma vias de facilitação que vão construir a memória. Sem ato memorial não se poderia escutar música. (Miriam Chnaiderman, in: Música e psicanálise, 1989, pp. 94-95)

Muito mais que um simples conjunto de sons que se une em uma melodia, a música transmite mensagens, via seu sistema de regras próprio, como a gramática para a fala. Sem pausas, suspensões e silêncios, a música seria ruído e provavelmente não poderia ser entendida nos moldes que está sendo discutida aqui. Observemos que a música não foi criada e só depois transmitida, como em outras invenções, o que faz dela uma ―invenção‖ em constituição (apesar das regras

teóricas da música tonal ocidental), o que seria análogo, de certa forma, à própria constituição do sujeito que se dá a partir da configuração das experiências psíquicas.

O som é elemento material da música. Há regras e leis que legitimam sua identidade. Uma lógica que determina uma significação sobre o ouvinte num movimento direto.

Nem todo mundo compreende a terminologia secreta de instrumentistas e compositores, nem todo mundo lê uma partitura, mas é possível pensar em ‗imagens de som‘, e por vezes até mesmo imagem de música sem referência a som. ―É um pouco do que fez Paul Klee ao desenhar a música de Bach, Mondrian ao desenhar o bee-bop e Matisse ao recortar e colar as peças de Jazz. Ouvir o ponto, a linha e o plano. Mas ouvir os ciclos, os pequenos ritornelos de ideias, de sons, de imagens, de paisagens, em uma poesia, isto também soa como música‖. (FERRAZ,1998, p.27)

Ferraz continua sua interessante posição afirmando que música é aquilo que se faz ao mesmo tempo em que se desfaz, que ganha uma realidade a cada instante, sempre lançada sobre o futuro.

Quando se ouve uma música pela primeira vez, é no futuro que esta música está; ela cruza aquilo que não temos a menor ideia com um pouco daquilo que já conhecemos. Daí a música seguir a dinâmica da repetição, não a da simples reiteração circunscrita a um objeto, ao fenômeno sonoro, mas de uma outra repetição, totalmente a parte, em que a música não repousa apenas no sonoro. A repetição vista como o ato de repetir sempre a condição de trazer o diferente, de permitir novas conexões. E nesse sentido, ideias tradicionais, como aquela que atrela o serialismo à diferença e o minimalismo à reiteração, podem até mesmo ser postas pelo avesso, revelando-se novamente o futuro como potência de escuta. (FERRAZ, 1998, pp. 28-29)

No livro Introdução à Física e a Psicofísica da Música, Roederer (2002) trata dos sistemas físicos e processos psicofísicos que ocorrem na música e no ouvinte. Analisa quais propriedades físicas, objetivas, dos padrões sonoros estão associadas a quais sensações psicológicas, subjetivas, da música. O autor nos conduz a uma outra percepção da música. Busca uma compreensão realizada por elementos matemáticos sem ser desprazerosa. Segundo ele, ―a maioria das pessoas sabe dizer com facilidade por que prefere um tipo de música em detrimento de outro, mas

ignora que essa preferência possa ser explicada pela física e pela psicofísica‖.

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(ROEDERER, 2002, p.13)

Consoante a essas ideias é possível pensar a música tal como a toma Wisnik (1989) em O som e o sentido: como uma partitura de várias claves, de modo a combinar a percepção do som, na interação do corpo e o pensamento poético, histórico-social, antropológico e outros (WISNIK, 1989, p. 12).

Do mesmo modo em que toda a natureza é repleta de sons e nosso corpo de ritmos somáticos, a música possui sons e ritmos que efetuam recortes de tempo, inscrevendo recorrências e variações que dão singularidade a cada uma das composições musicais. Dois elementos básicos da música, ritmo e melodia, mesclam-se criando novas matizes a cada encontro, e quando se apresentam simultaneamente na música, um porta o outro se entrelaçando, dialogando entre si e conferindo autenticidade à música.

Os sons entram em diálogo e exprimem semelhanças e diferenças na medida em que põem em jogo a complexidade da onda sonora por meio de ressonâncias e defasagens, atritos e congruências, dissonâncias e consonâncias, que engendram a música. Ademais, estas correspondências e desigualdades no interior destes processos tornam a música possível.

A música tem o poder de mesclar a repetição e a diferença, o contínuo e o descontínuo. Por isso, remete não apenas ao tempo histórico e linear, mas também aquele que é ausente, espiral, não cronológico, sugerindo o contraponto entre consciente e inconsciente. (WISNIK, 1989, p. 28).

As tentativas de descrever ou imitar figurativamente a natureza, ou de representar e suscitar sentimentos e emoções por meio de sons, permeiam a história desde o renascimento até os dias de hoje. Encontra-se em diferentes estilos e épocas uma espécie de compromisso e de cumplicidade que une compositores e ouvintes, cuja força não consegue ser diminuída pelos críticos mais ferrenhos.

As bases desse compromisso se assentam sobre conceitos de representação, de imitação e de construção simbólica que, uma vez instalados na cultura, predispõem ouvidos e sensibilidades à apreensão e

40 A psicofísica tenta fazer previsões sobre a evolução de um sistema específico, sujeito a certas

considerações iniciais. O sistema em consideração é o sistema sensorial de um indivíduo. As condições são determinadas pelos estímulos físicos de entrada e a resposta é expressa pelas sensações psicológicas despertadas no cérebro e relatadas pelo indivíduo.

aceitação de um determinado repertório de obras e, com ele de uma série de procedimentos e códigos que garantem a relação entre o sonoro e o visual.

Descrevem-se apenas três das várias possibilidades de entrelaçamento do ouvido com a visão. Todas têm o mesmo alvo – a junção da audição e da visão –, mas seus percursos se diferenciam quanto à forma de solicitação dos sentidos. A primeira apoia-se na leitura de uma partitura, a segunda associa a leitura com a descrição de imagens, e a terceira baseia-se apenas na audição. (CAZNOK, 2003, p. 77)

O objeto musical é invisível e impalpável, escapando ao tangível e se identificando com o que é indizível. É objeto, portanto, subjetivo porque propõe a harmonia entre familiar e o estranho, o oculto e o aparente que nela se organizam.