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A psicanálise trabalha com o equívoco, com o intervalo

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 37-39)

entre uma palavra dita e a sua

reedição; seguindo os preceitos da

linguística, é possível evocarmos

o que Lacan ensinou: entre um

significante e outro, revela-se o

sujeito de modo fugidio

A AUTORA

ELIZABETH BROSE é psicanalista, pós-doutoranda em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da USP. Atualmente traduz do alemão o texto de Freud Psicopatologia da vida cotidiana para a editora Autêntica.

por Elizabeth Brose

A língua e

psicanálise e tradução

A

s línguas são comparáveis a tecidos, cujos fios o bicho-da-seda produz, ou às teias que as aranhas tecem de tanto salivar. A língua viva depende de seus falantes – que registram, escrevem. Falar, ler, escrever, escutar. Em “Uma rosa é uma rosa é uma rosa...”, a poeta Gertrude Stein nos direciona na leitura e releitura de uma palavra que, ao ser repetida, se altera. E na última pronúncia de “uma rosa”, mesmo que as palavras sejam lidas silenciosamente, aquela ima- gem acústica que criamos dentro de nós já vai se tornando carregada de algum outro sentido que não o primeiro, o original, digamos assim. Parecendo uma árvore carregada de laranjas. Se víssemos o detalhe, o zoom da primeira laranja, logo mais uma e mais uma... Por fim, em zoom out, nos seria revelada uma complexidade de frutas penduradas em galhos presos a um tronco comum: a laranjeira.

Mais ou menos assim transmitimos por pala- vras o que vamos percebendo e as palavras nos fazem perceber. A psicanálise – principalmente na volta a Sigmund Freud empreendida por Jacques Lacan – trabalha com o equívoco, com o intervalo entre uma palavra dita e a sua reedi(c)ção. Seguin- do os preceitos da linguística, talvez compreenda- mos melhor se evocarmos o que Lacan ensinou: entre um significante e outro, revela-se o sujeito de modo fugidio.

Traduzir um texto de Freud é uma operação que se realiza a partir da ideia do equívoco, da incom- pletude das línguas, da não equivalência entre elas. As traduções são fronteiras entre o (im)possível. Freud tanto narra quanto disserta. Narrações são marcadas pelo contar de ações via instâncias nar- rativas. Um narrador (ou mais de um) conta a um outro (narratário) uma sequência de ações. Nar- rar difere assim do teatro, porque interpõe entre o público e a ação essas instâncias transparentes que amaciam, tranquilizam o susto, a surpresa e o terror. As histórias do mundo da fantasia, do “era uma vez”, são contadas a crianças por alguém, um contador, no tempo verbal adequado do “era”, distanciando aquele que ouve daquele que age (a personagem).

shut

ter

39 agosto2017•mentecérebro ter querido dizer há cem anos e como ele

foi dito em português por este e por aque- le tradutor. E depois de substituir com cui- dado uma palavrinha composta alemã por outra(s) tanta(s) pesquisadas nas memó- rias, em dicionários, carregados de palavras penduradas em seus verbetes... E então se lembra de um texto literário que surpreende com uma palavra em frase que se renova. Essas são algumas das tantas possibilidades que encantam o processo investigativo da tradução e que, também, acalmam a angús- tia do impossível: a tradução perfeita, ideal, das línguas que fazem UM. As línguas e lin- guagens não fazem uma unidade, uma com- pletude. As línguas e seus lapsos, as brechas e os furos, buracos negros de significados e o sem sentido e o para além do senso... As- sim, de equívoco em equívoco, desloca-se a palavra. Daí que as línguas não se encaixam, as línguas não se beijam. As línguas... IDIOMAS E SONHOS

Se este texto fosse um vídeo na timeline do Facebook, o roteiro seria assim: dicioná- rios apareceriam como caixas, onde todas as palavras se encontrariam e de onde elas sairiam com suas saias leves e dançantes e lembrariam cobras encantadas rumo ao céu daquele cesto de palha do encantador de ser- pentes. Nessa dança formariam sintaxes, es- truturas; o cipó onde, se fosse um sonho, os macaquinhos-prego se pendurariam. Cada macaco no seu galho. Cada macaco, uma palavra materna. Das nossas falas transcon- tinentais da língua portuguesa a suas escri- tas e ainda outras escritas em idiomas es- tranhos, essa caixa conteria o universo das palavras (das nossas falas transcontinentais da língua portuguesa a suas escritas e ainda outras escritas em idiomas estranhos). Re- petidas vezes... E a cada vez uma frase nova ou seminova se ergueria no mercado medie- val e mediador das línguas.

Além disso, a voz orienta os percursos da imaginação. Assim, evita-se a maior emo- ção do palco, aquela que produz a catarse. Freud narra, por exemplo, o cumprimento dos obsessivos, o tirar o chapéu, e conclui com frases que são de tirar o chapéu mesmo. Essas abstrações costumam ser dissertadas. Dissertar é aquele jeito de escrever argumen- tando, que alguns leigos chamam de teorizar. Na dissertação, desenvolve-se uma série de pensamentos, que aprendemos na escola que devem ser de preferência concatenados, coerentes e coesos. Dominando a organiza- ção narrativa e a dissertativa e através desses modos de escrever, Freud vai apresentando ao leitor os lapsos dessas e nessas organiza- ções e as relações entre linguagens distintas como a dos sonhos e a de seus relatos.

A riqueza do Freud escritor também se dá no fato de tanto ser direto e claro nas palavras (mesmo nos neologismos) quanto de oferecer a sensação de montanha-russa ao escorregarmos por suas deliciosas frases quilométricas, repletas de vírgulas e novas orações. O leitor só sabe que pôs os pés no chão no ponto final. Nesse momento, o co- ração pulsa e a criança diz: de novo! E então relê, reedita a frase do começo, pois o verbo alemão pontua o fim da frase que se reco- meça no sentido. Como se nada disso fos- se suficiente, há ainda nos textos de Freud, frequentemente, a sensação de terceira di- mensão temporal, tantos são os variados tempos dos verbos que apontam para um tempo modalizado, um possível, um que de fato aconteceu etc.

Essa complexidade do texto original co- loca o tradutor diante de alternativas e o resultado é, no melhor sentido, uma versão possível de uma série de versões. Aquela versão que ele, humano e limitado, encontra depois de passar pelo crivo da fórmula ine- xata: o que esse conceito que me fala de sen- sações táteis ou imagéticas em alemão pode

As línguas e seus lapsos, as brechas e os furos, buracos negros

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 37-39)