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Nem tão racional quanto imaginamos

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 30-34)

Ao voltar de uma viagem de férias, José e Maria perceberam que a empresa aérea havia danificado objetos de arte idênticos que os dois tinham comprado. O gerente da empresa garante que ficaria muito feliz em compensá-los pelos danos, mas ele está em apuros, pois não faz a menor ideia de quanto esses objetos raros podem ter custado. Ele acredita que, se perguntar o preço aos passageiros, eles certamente irão inflacioná-lo.

Então, o gerente resolve ser mais ardiloso. Pede que cada um dos viajantes, separadamente, anote em um papel o preço das peças quebradas, atribuindo um valor inteiro, em dólares, entre 2 e 100. Se os dois marcarem o mesmo número, ele aceitará o valor e pagará a cada um deles a quantia mencionada. Mas, se escreverem números diferentes, poderá considerar o valor mais baixo como o preço correto e desconsiderará o maior. Pagará então aos dois o valor mais baixo incluindo um bônus e uma penalidade – a pessoa que tiver anotado o número mais baixo receberá US$ 2 a mais como prêmio

por sua honestidade, e a que marcar o valor mais alto terá US$ 2 a menos do que o valor mais baixo, como uma espécie de punição pela desonestidade.

Na hora de tomar decisões, muitas pessoas rejeitam a opção lógica e acabam obtendo um resultado melhor. Mas para isso é preciso

descobrir formas menos convencionais de pensar; para entender como o cérebro faz essas escolhas, cientistas usam uma atividade lúdica

por Kaushik Basu

Cenários como esse, nos quais as pessoas fazem escolhas e são

recompensadas de acordo com a decisão que tomam, são conhecidos como jogos. Chamei esse de “dilema do viajante”. O objetivo era confrontar a proximidade entre o comportamento racional e os processos cognitivos, estudando o funcionamento mental diante de opções complexas, que envolviam perdas e ganhos.

O dilema do viajante (DV) atinge esses objetivos porque a lógica do jogo estabelece que 2 é a melhor opção, ainda que muitas pessoas prefiram um número próximo de 100. Os jogadores amealham uma grande recompensa por não obedecerem à razão. Pode parecer contraditório, mas, ao jogar o DV, é preciso usar certa racionalidade ao optar por não ser racional.

Outros pesquisadores que usaram o DV e tentavam expandi-lo relatavam descobertas resultantes de experiências em laboratório, com insights sobre a tomada de decisão. Apesar disso, permanecem sem resposta as questões sobre como a lógica e a razão podem ser aplicadas ao DV. Porque 2 é a escolha racional, pense em uma linha de raciocínio que Maria deverá seguir: a primeira ideia que lhe vem à cabeça é que deve escrever o maior número possível, 100, pois assim receberá US$ 100 – desde que José seja igualmente ambicioso, ou vice- versa. (Se o objeto custou muito menos que US$ 100, os passageiros estariam tentando tirar proveito da proposta feita pelo gerente.)

No entanto, logo ocorre a Maria que se em vez de 100 ela marcar 99, vai conseguir um pouco mais de dinheiro, porque receberá US$ 101. Mas certamente José também teria

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ter

31 agosto 2017• mentecérebro

essa ideia, e se os dois marcarem 99, Maria ganhará US$ 99. Então seria melhor ela marcar 98, pois nesse caso receberia US$ 100. A mesma lógica também levaria José a escolher 98. E, nesse caso, ela marcaria US$ 97 e receberia

US$ 99. Seguindo esse raciocínio, os dois diminuiriam sucessivamente suas escolhas até chegar ao menor valor permitido: 2. É muito pouco provável que Maria realmente desenvolvesse esse raciocínio sequencial até chegar ao resultado 2. Na verdade, é exatamente este o ponto que interessa aos cientistas: para onde a lógica nos leva.

Especialistas em jogos utilizam esse tipo de análise, chamada de retroindução, que prevê que cada jogador vai escrever 2 e eles vão acabar recebendo 2 dólares cada. Virtualmente, todos os modelos usados chegam a esse resultado para o DV – os dois jogadores ganham US$ 98 menos do que deveriam se cada um, inadvertidamente, escolheu 100.

O dilema do viajante está relacionado com outro mais popular, o dilema do prisioneiro, no qual dois presos, suspeitos de terem cometido um crime grave, são interrogados separadamente e cada um pode escolher entre incriminar o outro (e ter a pena abrandada por colaborar) ou permanecer em silêncio (o que deixará a polícia sem evidências claras do crime se o outro acusado também não disser nada). Essa história tem conotação diferente, mas a matemática da recompensa para cada opção do dilema do prisioneiro é idêntica àquela de uma variante do DV.

Os cientistas analisam os jogos sem qualquer artimanha que as narrativas

O AUTOR

KAUSHIK BASU é doutor em economia, professor

de estudos internacionais e diretor do Centro de Economia Analítica da Universidade Cornell.

possam conter, estudando a chamada matriz de compensação (ganho ou perda do jogador em função de sua jogada) de cada um – uma grade que contém todas as informações sobre as potenciais opções e compensações de cada jogador.

Apesar dos nomes, o dilema do prisioneiro e a versão de duas opções do DV não podem ser considerados realmente um dilema. Cada participante vê uma opção correta unívoca, o que quer dizer 2. Essa opção é chamada de escolha dominante porque é a melhor a fazer, não importando o que o outro faça. Se escolher 2 em vez de 3, Maria vai receber 4 dólares em vez de 3 dólares se José escolher 3, e ela recebe 2 dólares, em vez de nada, se José escolher 2.

No caso da versão completa do DV, não há opção dominante. Se José escolher 2 ou 3, o melhor para Maria é optar pelo 2. Mas se ele escolher qualquer número de 4 a 100, ela será beneficiada se escolher um número maior que 2. O resultado “eficiente” é aquele em que os dois viajantes escolhem 100, pois isso significa ganho máximo para ambos. Porém, o anseio que obtivesse maior lucro faria com que as pessoas passassem de 100 para um número mais baixo, na expectativa de obter sempre maiores ganhos individuais.

capa

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stock

pensões cognitivas em seu livro Novum Or-

ganum, de 1620: “A compreensão humana,

uma vez que tenha adotado uma opinião... busca todas as outras coisas para apoiar e concordar com ela. E, apesar de haver um nú- mero e peso maiores de instâncias a serem encontradas no outro lado, estas ele ou ne- gligencia ou despreza; ou ainda, por alguma razão, as deixa de lado e rejeita... Homens... marcam os eventos realizados, mas onde falham, embora isso aconteça muito mais frequentemente, os negligenciam e ignoram. No entanto, com uma sutileza muito maior, essa traquinagem se insinua na filosofia e nas ciências, em que a primeira conclusão “colo- re” (confere cor) e coloca em conformidade consigo mesma tudo o que vem depois”.

Na década de 60, o psicólogo inglês Pe- ter Wason deu um nome a essa propensão em particular: “viés de confirmação” (confir-

mation bias). Em experimentos controlados,

ele demonstrou que, mesmo quando pes- soas tentam testar teorias de forma objetiva, tendem a buscar evidências que confirmam suas ideias e ignorar qualquer coisa que as contradiga.

Em A falsa medida do homem (Martins Fontes, 1999), por exemplo, o pesquisador Stephen Jay Gould, professor da Universida- de Harvard, reavaliou dados citados por pes- quisadores que tentavam estimar a inteligên-

cia relativa de grupos raciais, classes sociais e sexos diferentes ao medir o volume de seus crânios, ou pesar seus cérebros, pressupon- do que a inteligência se correlacionava com o tamanho do cérebro. Gould revelou distor- ções massivas de informações. Ao descobrir que, em média, cérebros franceses eram me- nores que alemães, o neurologista francês Paul Broca descartou as discrepâncias com base na diferença de tamanho corporal mé- dio entre os cidadãos das duas nações. Afi- nal, ele não podia aceitar que os franceses eram menos inteligentes que os alemães. Mas, quando descobriu que os cérebros de mulheres eram menores que os de homens, não aplicou a mesma correção para o tama- nho corporal, porque não teve nenhum des- conforto com a ideia de que elas eram me- nos inteligentes.

Surpreendentemente, Gould concluiu que Broca e outros como ele não eram tão repreensíveis como poderíamos pensar. “Na maioria dos casos discutidos neste livro po- demos estar bastante certos de que as pro- pensões eram inconscientemente influentes e que cientistas acreditavam estar seguindo uma verdade imaculada”, escreveu Gould. Em outras palavras, assim como observamos em nossos experimentos de xadrez, ideias confortavelmente familiares cegaram Broca e seus contemporâneos para os erros em seus

33 agosto2017• mentecérebro raciocínios. E aqui está o verdadeiro perigo

do efeito Einstellung. Podemos acreditar que estamos pensando de modo liberal, com a mente aberta, completamente inconscientes de que nosso cérebro está desviando sele- tivamente a atenção de certos aspectos do nosso ambiente que poderiam inspirar novos pensamentos ou formas de raciocínio. Quais- quer dados que não se encaixem na solução ou teoria que já adotamos são ignorados ou descartados.

A natureza sub-reptícia do viés de confir- mação tem consequências infelizes na vida cotidiana, como foi documentado em estu- dos sobre tomadas de decisão entre médicos e jurados. Em uma revisão de erros médicos de raciocínio, o médico Jerome Groopman observou que, na maioria dos casos de diag- nóstico equivocado, “os médicos não erraram devido à sua ignorância de fatos clínicos, mas porque caíram em armadilhas cognitivas”.

Quando médicos herdam um paciente de um colega, por exemplo, o diagnóstico do primeiro clínico pode cegar o segundo para detalhes importantes e contraditórios da saúde do paciente que poderiam mudar o diagnóstico. É mais fácil simplesmente acei- tar a conclusão – a “solução” – que já está à sua frente que repensar toda a situação. Da mesma maneira, ao examinarem radiografias de tórax, radiologistas muitas vezes se fixam na primeira anormalidade que encontram e deixam de notar outros sinais que deveriam ser óbvios, como um inchaço que poderia indicar câncer. Se esses detalhes secundários são apresentados isolados, no entanto, eles os veem imediatamente.

É POSSÍVEL RESISTIR?

Estudos relacionados revelaram que jurados começam a decidir se alguém é inocente ou culpado muito antes da apresentação de to- das as evidências. Suas impressões iniciais do réu, por outro lado, mudam o modo como eles avaliam evidências posteriores e até suas memórias de provas que viram antes. Da mesma forma, se um entrevistador conside- rar um candidato fisicamente atraente, ele ou ela perceberá automaticamente a inteligência e personalidade daquela pessoa em uma luz mais positiva e vice-versa. Essas propensões,

ou vieses, também são alimentados pelo efei- to Einstellung. É mais fácil tomar uma deci- são sobre alguém se mantivermos uma visão consistente daquela pessoa, em vez de anali- sar e classificar evidências contraditórias.

Podemos aprender a resistir ao efeito

Einstellung? Talvez. Em nossos experimentos

de xadrez e nos experimentos posteriores de acompanhamento realizados por Sheridan e Reingold, alguns enxadristas excepcional- mente qualificados, como grandes mestres, de fato identificaram a melhor solução, me- nos óbvia, mesmo quando uma sequência mais lenta, porém mais familiar de lances era possível. Isso sugere que quanto mais expe- riência alguém tem em seu campo, seja xa- drez, ciência ou medicina, mais imune ela é à propensão cognitiva.

Mas ninguém é completamente imune. Até os grandes mestres falharam quando deixamos a situação suficientemente com- plicada. Lembrar ativamente de que você é suscetível ao efeito Einstellung é outro modo de combater essa situação. Ao considerar, por exemplo, as evidências da contribuição relativa dos gases de efeito estufa produzidos pelo homem e dos que ocorrem naturalmen- te, produzindo as mudanças da temperatura global, lembre-se de que se já acredita saber a resposta, você não julgará a evidência com objetividade. Em vez disso, notará evidências que embasam a opinião que já formou, ava- liando as provas como sendo mais fortes que de fato são, e assim poderá considerar mais memoráveis que as evidências que não en- dossam a sua opinião.

Precisamos aprender a aceitar nossos er- ros se quisermos aprimorar nossas ideias. O naturalista inglês Charles Darwin desen- volveu uma técnica notavelmente simples e eficiente para fazer exatamente isso. “Du- rante muitos anos segui uma regra de ouro, mais exatamente, a de, sempre que eu me deparasse com um fato publicado, uma nova observação ou um pensamento que fosse contestado por meus resultados gerais, fa- zer um memorando disso sem falta e ime- diatamente”, escreveu ele. “Porque eu tinha constatado por experiência que esses fatos e pensamentos eram muito mais propensos a escapar da memória que os favoráveis.”

PARA SABER MAIS

The mechanism and boundary conditions of the Einstellung effect in chess: evidence from eye movements. Heather Sheridan e Eyal M. Reingold, em PLOS

ONE, vol. 8, no 10, artigo

n o e75796; 4 de outubro

de 2013. www.plosone. org/article/info%3Adoi %2F10.1371%2Fjournal. pone.0075796

The science of genius. Dean Keith Simonton, em

Scientific American Mind;

novembro/dezembro de 2012.

Why good thoughts block better ones: the mechanism of the pernicious Einstellung (set) effect. Merim Bilalić, Peter McLeod e Fernand Gobet, em Cognition, vol. 108, no 3, págs. 652-661;

Nossos olhos carregam substâncias sensíveis à luz que costumam funcionar de forma

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 30-34)