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A seleção de textos apresentada no novo livro de Dunker trata das várias expressões do sofrimento e ressalta que nem toda forma de mal-estar

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 78-80)

precisa virar sintoma e ser tratada – mas sim ser reconhecida

por Hugo Lana

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ma senhora perambula pelas ruas de uma Hamburgo completamen- te devastada pela guerra à procura do que restou de seus pertences. É com essa cena que somos apresentados ao novo livro do psicanalista Christian Dunker, Reinvenção da intimidade: po-

líticas do sofrimento cotidiano. Em sua

busca por resquícios de uma vida ani- quilada pelos bombardeios e pelo que veio depois deles, a mulher encontra a devastação de uma cidade que já havia considerado sua e que agora é um conjunto de coisas: ruas sem placas, prédios se equilibrando em alicerces frágeis e outras pessoas que, como ela, caminhavam a esmo na tentativa de reconstruir sentidos aniquilados.

O livro é uma compilação de tex-

tos publicados ao longo de 26 anos de reflexão sobre o que temos de mais íntimo (e o que, afinal, é a matéria-pri- ma do trabalho psicanalítico) – o sofrimento. A analogia se anuncia por meio da errância de alguém que busca reconstruir uma narrativa. Trata-se da fragmentação da experiência, das narrativas que suportam afetos e cons- tantes mutações políticas e sociais que se impõem na contemporaneidade, impactando e configurando novas

gramáticas de reconhecimento e formas do sentir.

A princípio seria possível pensar que dificilmente textos publicados ao longo de mais de duas décadas de reflexão a partir da clínica psicanalítica formariam algo que não uma massa difusa, sem qualquer unidade. Certamente não é o caso de Reinvenção da intimidade. É jus- tamente na insistência em costurar o que há de mais cotidiano e comum em nossas experiências com os movimentos históricos e normatividades – que en- gendram experiências – que Dunker pro- duz um movimento capaz de jogar luz no que antes poderia se assemelhar às sombras de experiências (e vidas) frag- mentadas como nos escombros de uma cidade. É por meio desse movimento tex- tual que o autor desdobra o cotidiano em análises de fôle- go, em que noções como sofrimento e intimidade ganham gravidade teórica.

Os artigos versam sobre variadas apresentações de so- frimentos e seus modos de reconhecimento e tratamento. Dunker fala de solidão, desencontros amorosos de ca- sais, indiferença que permeia o sexo, cuidados parentais e seus descontroles, reivindicações e denúncias onipresen-

Reinvenção da intimidade: políticas

do sofrimento cotidiano. Christian Dunker. Ubu Editora, 2017. 320 págs. R$ 54,00.

Os artigos falam da

fragmentação da

experiência,

narrativas que

suportam afetos e

constantes mutações

políticas e sociais

que se impõem na

contemporaneidade.

O resultado é

o impacto e as

novas formas de

reconhecimento

e do sentir

79 agosto2016•mentecérebro

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tes na internet e nossa renitente crença no Papai Noel e nas promessas de ano novo. No entanto, é na insistên- cia em fazer esses afetos trabalharem não somente em sua dimensão de vivências cotidianas, mas também de seus desdobramentos históricos e epistemológicos, bem como na fineza clínica, que o autor confere ao livro uma interessante unidade, ao tecer repetições que convocam o leitor a pensar sobre sua experiência cotidiana. Como lembra Dunker, Freud “pode nos remeter a uma psico- patologia a partir da vida cotidiana, ou seja, como a vida cotidiana pode nos fazer sofrer, produzindo estados afliti- vos ou conflitivos continuados, que terminam por formar sintomas”.

É a partir da premissa de que “o sofrimento requer e propaga uma política” que o professor do Instituto de Psi- cologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) apresenta reflexões metapsicológicas, intuições diagnósticas sobre a depressão, a discussão sobre o problema das formas e das cores na pintura de Turner e ainda investigações a respeito do encaixe quase perfeito da mania nos modelos empresariais, tornando-se uma espécie de exemplo “de nossa normalopatia”. Ele passa ainda pelas aspirações de almas revolucionárias que acabam por se encastelar em condomínios e pelas negociações entre liberdade e jus- tiça que podem desembocar em um “fundamentalismo conjugal” (uma expressão insólita que nos lembra, como em vários momentos do livro, que o humor é uma via do

afeto). O autor mostra que nem toda forma de mal-estar precisa virar sintoma e ser tratada, mas sim reconhecida.

O livro traz também a instigante discussão sobre como as formas de sofrer pertinentes ao Brasil atraves- saram mutações que têm seu germe nas transformações das formas de reconhecimento inerentes a diferentes “cir- cuitos políticos dos afetos”. A gramática do sofrimento não é a mesma no processo de redemocratização que no da ascensão da “classe batalhadora”, na terminologia de Jessé de Souza, ou ainda no recente processo de impeach- ment contra Dilma Rousseff.

Com a aposta de que “cada experiência de sofrimento é uma história que se transforma na medida em que é contada”, Dunker apresenta a sua própria errância. E res- salta que a maneira como contamos nos permite justificar e partilhar nosso sofrimento.

Após duas semanas de errância pelos escombros de Hamburgo, a senhora que aparece no texto de apresen- tação – e, não por acaso, é a avó do autor – encontra um objeto pertencente a sua história: uma bicicleta. Mas é algo que já não lhe serve. Dunker pergunta: O fazer? Pe- dalar até o Brasil?. Foi quando deparou com outra pessoa em situação semelhante e com quem partilhou seu último pedaço de pão. Esse encontro lhe mostrou uma saída. HUGO LANA é psicanalista, doutorando em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Lacuna.

No documento Mente.e.cérebro.ed.295.Agosto.2017 (páginas 78-80)