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A Questão da Complexidade dos Povos Originários

No documento RAQUEL FROTA RODRIGUES (páginas 77-84)

A CIÊNCIA ARQUEOLÓGICA: UM BREVE HISTÓRICO

LIMITAÇÕES DO EVOLUCIONISMO PARA EXPLICAÇÃO ARQUEOLÓGICA DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL.

3.5 O COLONIALISMO CULTURAL E A PERSISTÊNCIA DO MODELO BANDO-TRIBO-CACICADO NA ARQUEOLOGIA AMAZÔNICA.

3.5.2 A Questão da Complexidade dos Povos Originários

Eis uma pergunta relevante: como seria a arqueologia na Amazônia se esta não tivesse sido demasiadamente influenciada pelo modelo stewardiano? Ou mesmo por qualquer outro tipo de modelo evolucionista? Provavelmente novas tipologias surgiriam, mas seriam estas tão exageradamente evolucionistas, ou a arqueologia na Amazônia tomaria um rumo diferente, mais diversificado e flexível? Seria possível identificarmos novas formas de organização sociais totalmente diferentes dessas imaginadas pelo pensamento neo-evolucionista?

É ingenuidade crer que o modelo tipológico formulado por Steward não infere na compreensão do quesito complexidade cultural. A Floresta Tropical, ambiente característico da Amazônia, não possui

as características necessárias para propiciar o surgimento de uma sociedade Estatal, condenando seus povos originários a um modo de vida selvagem e primitivo. Meggers, Lathrap e Roosevelt não problematizam os estágios evolucionários e a complexidade cultural, pelo contrário, seu pensamento perpetua o ponto de vista eurocêntrico que opõe a civilização ocidental às sociedades “primitivas” da Amazônia, os outros. O eurocentrismo não é explicito, mas está implícito na formulação de suas teorias.

Essas sociedades estariam, segundo se afirma, condenadas à economia de subsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato. Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se possam medir as “intensidades” tecnológicas: o equipamento técnico de uma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma sociedade diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, uma vez que a arqueologia, a etnografia, a botânica etc. nos demonstram precisamente a potência de rentabilidade e de eficácia das tecnologias selvagens. (CLASTRES, 2003, p.210)

O conceito de cacicado é eminentemente colonialista e eurocêntrico. Tal o é, pois está inserido dentro de um contexto evolucionista e determinista que não deixa espaço para a diversidade cultural. O cacicado é o meio-termo de uma sociedade que quase se tornou um Estado. O mais próximo que as sociedades pretéritas da Amazônia conseguiram ir, sua cultura é quase tão complexa quanto à de uma sociedade do tipo estatal. Dentro do modelo bando-tribo-cacicado-estado é impossível mover peças. Pode até haver exceções a regra, mas a regra em si não é questionada. Na medida em que restringimos a imaginação teórica a tipos pré-determinados de sociedades possíveis de existir, limitamos também as capacidades humanas, no passado e também no futuro. Na realidade, o modelo tipológico parece antagonizar as diferentes formas de organização social a dois polos: sociedades com Estado (fruto do modelo civilizatório europeu) e sociedades sem Estado (os outros, os incapazes). Como esclarece Pierre Clastres:

É a presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda a sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História. (CLASTRES, 2003, p.217)

Pode-se dizer que a complexidade inserida dentro de um contexto tipológico evolucionista, reside na maneira como interpretamos as diferentes formas de organização social. De acordo com antropólogo político Pierre Clastres:

Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado. Como conceber então a própria existência das sociedades primitivas, a não ser como espécies à margem da história universal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem um sentido único, que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduzem a civilização. (CLASTRES, 2003, p. 207-208).

As teorias de origem tipológicas e evolucionistas, embasadas por arqueólogos e antropólogos norte- americanos, acabam por moldar os meios através dos quais a sociedade em geral interpreta o quadro pré-histórico da Amazônia. Ao que parece, as sociedades indígenas, consideradas primitivas, adquirem um valor substancial na medida em que mais se assemelham com um Estado civilizado. É essa a interpretação de sociedade que, ao que tudo indica Steward, Meggers, Lathrap e Roosevelt parecem partilhar. No pano de fundo “das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem ser científicas.” (CLASTRES, 2003, p.207).

Como já abordado, a tipologia bando-tribo-cacicado torna-se obviamente eurocêntrica na medida em pressupõe como um ápice evolutivo o modelo civilizatório europeu. O colonialismo cultural encontra-se embutido neste processo pois, ao pintar o quadro da pré-história na Amazônia, as teorias arqueológicas de orientação norte-americana não deixam espaço para a valorização da complexidade inerente à todos os povos. “Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, sociedades sem escrita, sociedades sem história.” (CLASTRES, 2003, p.208) “Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente desse lado que se revela a natureza das sociedades primitivas.” (CLASTRES, 2003, p.216).

A verdadeira complexidade cultural reside na forma pela qual vemos o mundo. É a própria cosmovisão destas sociedades, destes povos originários que os fazem ser complexos, e essa complexidade não pode ser medida de forma evolutiva, pois não o é de forma alguma. Cada sociedade é única em seu modo de ver e abstrair o mundo que as cerca. Seu valor não deve ser medido em escalas evolutivas. De acordo com Clastres:

É a isso que nos devemos prender com firmeza: as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem “normal” interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir sociedades primitivas?) (CLASTRES, 2003, p.216).

A beleza, a forma mais coerente de organização social, a predominância tecnológica, todos esses elementos conceituais, e a compreensão que a sociedade em geral tem deles é pura construção ideológica. No caso da história dos povos originários da região Amazônica nos encontramos entre uma falsa dicotomia. O “Inferno Verde” proposto por Meggers e o “Paraíso do El Dorado” proposto por Roosevelt são duas faces de uma mesma moeda. Nenhuma das duas teorias problematiza o real significado da complexidade cultural inerente a todos os povos, pelo contrário, insistem na aplicação de um modelo tipológico evolutivo que naturaliza a noção de que toda e qualquer sociedade encontra seu glorioso fim no Estado civilizado.

É inegável que a valorização de uma sociedade pretérita, por parte de Governantes e grupos científicos, cresce na medida em que esta se assemelha ao Estado civilizado. A questão é que ao afirmar que algumas formas de organização dos povos originários da região Amazônica podem ser classificadas como cacicado, induz-se a valorização por parte da sociedade contemporânea de seus “ancestrais”. E as pesquisas arqueológicas atuais, muitas vezes financiadas por órgãos governamentais, só têm a lucrar com essa divulgação. Isso explica a busca constante por cacicados na Amazônia. O fato é que não importa se as sociedades passadas foram ou não cacicados. Cada sociedade deve ser estudada a partir de uma perspectiva de exclusividade.

É extremamente necessário inovar e incorporar dados que compreendam a pluralidade dos povos, sobretudo as de ordem cultural. Concorda-se com Fausto quando este advoga “a necessidade de rompermos com o caráter estanque das tipologias e de pensarmos toda a América do Sul – e não apenas a várzea- em outra escala de nível de complexidade” (FAUSTO, 2000, p.41). Ao rompermos com os elementos eurocêntricos empregados nas tipologias norte-americanas, através de uma leitura crítica de sua formulação conceitual, romperíamos também com a massificação ideológica desse colonialismo cultural.

Questione!

“Se tudo está sob controle, você está indo muito devagar.” (Mario Andretti)

Por mais que tentemos, nunca chegaremos a uma verdade universal a respeito de como era a vida das pessoas na Amazônia antes da colonização europeia. Formularemos conceitos sobre a ocupação do território, sobre a estratificação social, a especialização tecnológica, a alimentação e a viabilidade dos recursos ambientais para a sustentação dos adensamentos populacionais, sua mobilidade, entre outros aspectos. Esse parece ser um exercício constante para disciplinas como a antropologia e a arqueologia. Mais importante que saber todas as respostas, é saber fazer novas perguntas, questionar a realidade que muitas vezes nos é dada de presente.

O eurocentrismo e o consequente colonialismo cultural ficaram evidentes ao analisarmos os modelos tipológicos que embasam a compreensão dos povos originários na região Amazônica. Evidente que essa construção conceitual se deu paulatinamente, sua origem remonta à colonização do Continente Americano pelos europeus, e naturalizou-se através de um discurso hegemônico que impregnou a um só tempo, o aspecto material e o imaterial das sociedades. A arqueologia teve um papel essencial na formação desse discurso, primeiramente ao apresentar as provas materiais que autenticaram o aspecto primitivo e bárbaro dos povos originários e, como se isso não bastasse, também embasou materialmente a noção de que as sociedades “nascem para o Estado”, naturalizando essa errônea perspectiva.

É inegável que a arqueologia, aliada a outras ciências físicas e humanas, pode fornecer pistas concretas no sentido em que desvela a cultura material, ou seja, tudo aquilo que é tangível, dos povos originários do Continente Americano. Mas é preciso levar em consideração o fato de que até mesmo a cultura material é passível de interpretação. E a cada interpretação, um mundo novo pode ser criado. O questionamento acerca dos discursos eurocêntricos que movem as ciências sociais,

deve ser uma constante durante a formulação de novas teorias sobre a ocupação pretérita do Continente Americano. Afinal, a validade das comparações com o modelo civilizatório europeu deve ser, no mínimo, questionada.

Penso que é extremamente necessário conhecer não apenas as teorias, mas a história dos conceitos nelas empregados. Assim pode-se trabalhar a interpretação das sociedades de maneira mais acertada e coerente com o mundo que queremos construir. É dentro desta perspectiva que proponho aos leitores deste trabalho, uma metodologia crítica e com propósitos políticos e ideológicos bem delineados. Com base nisso é que se pode, efetivamente, construir um mundo novo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

No documento RAQUEL FROTA RODRIGUES (páginas 77-84)