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Problematizando o Conceito de Cacicado

No documento RAQUEL FROTA RODRIGUES (páginas 73-77)

A CIÊNCIA ARQUEOLÓGICA: UM BREVE HISTÓRICO

LIMITAÇÕES DO EVOLUCIONISMO PARA EXPLICAÇÃO ARQUEOLÓGICA DA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL.

3.5 O COLONIALISMO CULTURAL E A PERSISTÊNCIA DO MODELO BANDO-TRIBO-CACICADO NA ARQUEOLOGIA AMAZÔNICA.

3.5.1 Problematizando o Conceito de Cacicado

Começo afirmando que cacicado é um conceito eminentemente evolucionista e eurocêntrico. Mas para compreender o porquê desta afirmação é necessário contextualizá-lo no âmbito histórico da própria arqueologia amazônica. Afinal, qual é a história desse conceito? Como ele foi formulado e por quem? Havia uma intenção política clara na sua utilização?

A história do conceito de cacicado, de acordo com Fausto, começa com Cristóvão Colombo que, ao aportar na região das Antilhas, “encontrou-a densamente ocupada por uma população de língua arawak conhecida como Taino”. O povo Taino denominava seus chefes de kasik, e os espanhóis recém chegados àquelas paragens criaram o neologismo cacicazgo, que passou a designar qualquer província subordinada a um “cacique”. Sendo assim, o que se compreende por cacicado

originalmente, é na realidade um sistema político taino, que foi indevidamente generalizado para designar outros povos indígenas pelos espanhóis.

Segundo os relatos dos cronistas espanhóis, o povo taino habitava aldeias permanentes, com uma população estimada em 1 a 2 mil pessoas, cada. A disposição das aldeias era formada por 20 a 50 casas construídas em torno de uma praça central, no meio da qual se erguia a residência do chefe. As aldeias estavam organizadas em distritos, governados pelo cacique local mais prestigioso. (FAUSTO, 2000, p. 37-38)

Havia duas classes de pessoas (nitaíno e naboria), assimiladas pelos europeus à nobreza e aos comuns, respectivamente, mas não existiam escravos. Os chefes usavam adornos de ouro e pingentes em forma de máscara humana como símbolo de status. Quando um cacique morria, suas mulheres podiam ser enterradas com ele, assim como seus principais ornamentos e bens. Os nobres recebiam visitas sentados em bancos de madeira decorados, por vezes com incrustações em ouro, que os espanhóis logo associaram aos tronos da Europa. (FAUSTO, 2000, p. 38-39)

Baseando-se neste modelo de sociedade, o autor Kalervo Oberg formulou em 1955, uma categoria tipológica de nome chiefdom, que seria a tradução inglesa para a palavra cacicado. Segundo Fausto, o Oberg propunha a classificação política da América do Sul em seis tipos diferentes: “tribos homogêneas, tribos segmentadas, chiefdoms organizados politicamente, estados de tipo feudal, cidades–estado e impérios teocráticos”. Assim “Oberg deu aos chiefdoms uma definição política” (FAUSTO, 2000, p. 36-37).

Chiefdoms seriam caracterizados por uma chefia centralizada, ou seja, a existência de um chefe supremo com poder sobre “os distritos e as aldeias governados por chefes hierarquicamente subordinados”. Não existiria corpo de funcionários administrativos nem mesmo um exército permanente, como era de se supor em um Estado, mas o chefe supremo “teria poder legal para resolver disputas e requisitar homens e provisões em caso de guerra”. A estratificação social se daria através da distinção entre nobres, comuns e escravos (FAUSTO, 2000, p. 37).

A classificação política do termo cacicado se expandiu. “Assim como o termo ‘cacique’ foi generalizado pelos conquistadores para designar todo chefe indígena do continente, também o termo chiefdom extrapolou sua região de origem”, e foi apropriado pelo discurso antropológico para “designar formações sociopolíticas que possuem um centro de poder supralocal, mas não um estado”. O termo cacicado “tornou-se, assim, uma categoria aberta, designando sociedades as mais diversas, cuja única característica em comum é estar ‘no meio de’ ou ‘a caminho de’” (FAUSTO, 2000, p. 39-40).

Conseqüentemente, as evidências arqueológicas tidas como indicativas da existência de um cacicado são também variadas: diferenças entre assentamento que apontem para a existência de um centro regional; obras públicas que demonstrem mobilização de trabalho coletivo; alterações na topografia que indiquem técnicas agrícolas envolvendo trabalho intensivo; diferenças no tamanho das habitações, nos modos de sepultamento, na localização de bens de prestígio ou nas estruturas do sítio que apontem para a estratificação social; artesanato refinado que expresse especialização ocupacional; grande quantidade de produtos exóticos que evidencie uma rede comercial desenvolvida e integração supralocal. (FAUSTO, 2000, p. 40-41)

Então, em 1955, a partir da publicação do artigo de Oberg, Types of Social Structure Among the Lowland Tribes of South and Central América, o conceito de cacicado foi utilizado pela primeira vez. Porém, foi em 1962 com a publicação de Primitive Social Organization: An Evolutionary Perspective, de Elman Service, que sua entonação ficou ainda mais política, e por que não dizer, ideológica, na medida em que ganhou notável visibilidade na época. Service limitou ainda mais o campo de compreensão acerca dos tais cacicados. De acordo com Márcia Arcuri, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Service propunha que “os grupos indígenas que viveram na América do Sul teriam atingido diferentes estágios de complexidade na sua organização social”. Tais estágios “poderiam ser medidos em quatro níveis de uma escala evolutiva descrita a partir do modelo de tipologias sociais anteriormente apresentado por Julian Steward” no Handbook of South American Indians. (ARCURI, 2007, p. 305). De acordo com o antropólogo Pierre Clastres:

Essas concepções simplistas e ingênuas só na aparência (...), se cristalizaram em uma verdadeira tradição, cujo peso se fez fortemente sentir sobre a etnologia americanista em seu início. Pois se esta, na escolha e posicionamento dos problemas em termos científicos, se conformou à sua vocação, nem por isso as soluções propostas deixavam de transparecer uma persistência certa dos esquemas tradicionais, de um estado de espírito que, sem o conhecimento dos próprios autores, determinou parcialmente suas perspectivas de pesquisa. Por que se distingue este estado de espírito? Primeiro por uma certeza: os primitivos, de maneira geral, são incapazes de fornecer bons modelos sociológicos; em seguida por um método: realçar até a caricatura o traço mais aparentemente perceptível das culturas consideradas. (CLASTRES, 2003, p.67-68)

Service aliou o conceito de cacicado à tipologia evolucionista de Steward através da criação de uma nova tipologia: Bando, Tribo, Cacicado e Estado. Em Service as áreas culturais de Steward foram aliadas a evolução cultural das sociedades indígenas dessa forma: nas áreas Marginais teríamos os bandos, que seriam “grupos caçadores coletores nômades que estariam predestinados ao primitivismo”; no próximo estágio cultural, a Floresta Tropical, daria lugar às “tribos, ou sociedades agricultoras assentadas de forma mais permanente”, seriam grupos ligados por “laços de sangue, cujas relações de linhagens determinavam-se pela ausência de poder centralizado.”; na área cultural que circundava o Caribe daria lugar ao “terceiro estágio de desenvolvimento social, os cacicados que, “diferenciavam-se pela introdução da institucionalização do poder político e religioso, dando espaço às hierarquias sociais marcadas pela especialização técnica de indivíduos, ou grupos, reconhecidos por sua função social”. Na área dos Andes surge o Estado, quarto e mais avançado nível de complexidade social caracterizado por “sociedades que teriam atingido alto grau de desenvolvimento econômico, organizadas sob a égide de um sistema político de alianças diplomáticas, com controle coercitivo” e também “densidade populacional, a intensificação da produção agrícola e pastoril, a burocratização do poder público e a estratificação social” (ARCURI, 2007, p.306).

Steward revive em Service! E foi dessa forma que “este modelo evolucionista de tipologias sociais serviu de pano de fundo para o desenvolvimento de inúmeros projetos de investigação científica que buscavam preencher lacunas na história da América indígena, ao longo de todo o século vinte” (ARCURI, 2007, p.306).

De acordo com Juliana Salles Machado, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, as teorias acerca do conceito de cacicado na Amazônia contemporânea polarizam-se na discussão de dois pontos principais: “(1) a possibilidade de interpretação do registro arqueológico da região como correlato, ou não, de formações sociopolíticas desse tipo”; e “(2) as distintas maneiras por meio das quais formações regionais hierarquizadas poderiam ter surgido e se organizado”. Esclarece também que, apesar do vasto uso do conceito de cacicado neste ínterim, o mesmo vem sendo bastante criticado “no que se refere à enorme variabilidade de contextos aos quais ele pode ser associado e à unilinearidade a ele relacionada, tanto à sequência de desenvolvimento cultural quanto às limitações de possibilidade que tal separação acarreta” (MACHADO, 2006).

A citação de Machado é interessante, pois observa bem a influencia da tipologia de Steward na arqueologia amazônica contemporânea. Ao que parece arqueólogos estão sempre em busca de cacicados, sejam eles como forem. Ao que se vê, cada teórico tem a sua própria visão de como deveria ter sido um cacicado na Amazônia. O fato é que o cacicado está “sempre presente” nas discussões acadêmicas acerca da complexidade cultural dos povos indígenas. Afinal, uma sociedade indígena, quando cacicado e, portanto complexa, merece ser estudada. Mas por que exatamente uma sociedade não seria considerada complexa? Onde reside a complexidade afinal?

No documento RAQUEL FROTA RODRIGUES (páginas 73-77)