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A questão da multi e interdisciplinaridade

CAPÍTULO 1: CIENTOMETRIA E O PROBLEMA DA INTERDISCIPLINARIDADE

1.4 A questão da multi e interdisciplinaridade

O crescimento contínuo e veloz das ciências desencadeia a assimilação rápida e fácil dos conhecimentos. A ciência e a técnica são suscetíveis em si mesmas de simplificações apreciáveis no trabalho de redução do complexo ao simples, da multiplicidade à unidade, do particular ao geral. Há nisso uma obra paralela ao crescimento propriamente dito; trata-se de desconstruir e de reconstruir o edifício do saber, tendo em vista o fim maior, ou seja, o de que o espírito, ao invés de ser colocado diante de uma multiplicidade de disciplinas sem relações claras entre si, veja-se diante de uma ciência universal, fundada sobre métodos também universais.

Uma indicação do início de uma profunda reorganização da estrutura departamentalizada do conhecimento é que as antigas fronteiras estão se fraturando em ciências, ciências sociais e humanidades. A integração do conhecimento e a fertilização cruzada da interdisciplinaridade alcançaram uma nova popularidade. A interdisciplinaridade, como relação entre várias disciplinas em que se divide o saber-fazer humano, é uma das soluções que se oferecem a um problema muito mais profundo, como o da unidade do ser, do saber, das ciências, das técnicas, das artes e das humanidades com o conjunto cognoscível da vida e do universo.

A Sociologia das Ciências tem se liberado progressivamente da hegemonia da abordagem mertoniana – concebida como o estudo sociopolítico dos cientistas e de acordo com o qual a atividade científica é percebida como a instituição de uma “esfera distinta e autônoma”44. Desde os anos 70, esses debates evoluíram em direção à criação de uma “sociologia dos conhecimentos científicos”, segundo a qual a análise sociológica tentaria

explicar a produção científica a partir de si mesma.45 Essa revisão evidenciou que a questão da interdisciplinaridade não fora muito discutida anteriormente.

As disciplinas são estruturadas em torno de instituições relativamente fáceis de identificar e dotadas de estabilidade. Essas, assim como a maior parte das instituições, produzem e deixam importantes traços escritos que possibilitam sua análise. As disciplinas científicas estão enraizadas em laboratórios, departamentos universitários, revistas, instâncias nacionais e internacionais, congressos e conferências, procedimentos de certificação de competências, sistemas de retribuição, redes formais e oficiais. Discussões sobre a formação de disciplinas científicas focam, invariavelmente, instituições acadêmicas, a organização e a disseminação de treinamento técnico dentro delas, sociedades profissionais e a organização da comunicação científica.

Massoud alerta para os desafios das práticas interdisciplinares sobre as dificuldades de ordem psicológica e organizacional das instituições, as semânticas, as metodológicas e aquelas que resultam do caráter temporário das pesquisas.46 Para Heberlein,47 cinco barreiras maiores se interpõem ao percurso da interdisciplinaridade: a constatação de uma fraqueza nas disciplinas das ciências da sociedade (conflitos de paradigmas, deficiência de dados e recursos, etc.); a percepção corrente e ilegítima das ciências sociais como “não científicas”; os desencorajamentos institucionais ao engajamento em “aventuras interdisciplinares” (falta de uma estrutura de avaliação, de estímulo, etc.); a onipresença da organização do saber em domínios disciplinares; e o controle do poder pelos non-social-scientists.

A organização e coordenação de um coletivo de pesquisadores que se vinculam, muitas vezes, a equipes ou estruturas institucionais diferentes, sem um princípio de autoridade única; as preocupações; os interesses profissionais e os diferentes status hierárquicos dos implicados

45 Bloor, Knowledge and Social Imagery. 46 Massoud, “Interdisciplinarité”.

são extremamente variados. O planejamento das operações de pesquisa é, então, elemento crucial do trabalho interdisciplinar. A planificação das atividades por meio de uma agenda, a explicitação de etapas – disciplinares e interdisciplinares – parecem, portanto, condições sine

qua non para a realização desses estudos, assim como o acompanhamento permanente da metodologia interdisciplinar, a intersecção dos conflitos e a explicitação das controvérsias entre as disciplinas.48

Nos termos do funcionamento da organização da pesquisa e de sua gestão, diversos estudos constatam a centralidade do papel da coordenação na aventura interdisciplinar. Entre outros, poderiam ser resgatados os seguintes aspectos da função de coordenação: o de centralização e finalização da redação do projeto coletivo; e o de formação dos pesquisadores para o trabalho. A análise sistêmica tem uma contribuição fundamental na organização científica da pesquisa interdisciplinar notadamente de caráter operacional, nos conhecidos “esquemas sistêmicos”.49

Podemos elencar uma segunda classe de desafios relativos à comunicação entre pesquisadores de disciplinas diferentes. Existem duas dificuldades centrais na comunicação interdisciplinar: as diferentes compreensões e conceitos que são mobilizados e as diferenças de escala de análise na observação dos fenômenos sociais e naturais, do ponto de vista do tempo e do espaço. Os conceitos científicos são considerados o cerne da metodologia de pesquisa e são, muitas vezes, interpretados como a própria tradução da evolução da racionalidade científica.50 A dificuldade de comunicação em função da questão dos conceitos é, portanto, um problema central das pesquisas interdisciplinares.

Essa dificuldade tem sido enfrentada de duas maneiras: por meio do “empréstimo de termos” próprios de uma disciplina por outra; e por meio do “emprego comum” de um mesmo

48 Zanoni, “Práticas interdisciplinares em grupos consolidados”. 49

Teixeira, “L’interdisciplinarité en acte: les programmes de recherche “Causses-Cévennes” (Piren/CNRS) et “Agriculture-Environnement-Société des Eaux” (SAD/INRA) ”.

termo por várias disciplinas. A pesquisa interdisciplinar tornou-se um imperativo quando os pesquisadores se viram obrigados a representar as vinculações e/ou relações que certas ocorrências ou certas evoluções estabeleciam entre campos diferentes do real, até então abordados por disciplinas distintas. É por essa razão que se pode dizer que a interdisciplinaridade representa a relativização dos campos de conhecimento disciplinares.51

A interdisciplinaridade se apoia na excelência de pesquisadores de diferentes campos disciplinares. Ela não obscurece a identidade científica, nem a função de cada disciplina, na abordagem da realidade. Essa forma de representação da interdisciplinaridade exclui a possibilidade de uma “metadisciplina”, de uma transdisciplinaridade, no seio da qual todas as disciplinas e todos os instrumentos metodológicos se confundiriam. Nesse sentido, cabe questionar em que medida a interdisciplinaridade possui uma metodologia de pesquisa diferente e, se assim for, se ela não deveria exigir critérios de avaliação também diferentes; ou, no mínimo, refletir sobre quais seriam esses critérios.

De imediato, deve-se afirmar a necessidade de empreender estudos para repertoriar esses critérios. Noutras palavras, é preciso realizar um inventário das normas e das regras internas ao campo de pesquisas interdisciplinares, no sentido proposto por Bourdieu.52 Ou seja, será preciso, portanto, realizar, caso a caso, um “estado da arte” de normas e regras internas a cada campo interdisciplinar de pesquisa.53

A identidade disciplinar da História da Ciência é um assunto que, longe de estar resolvido, é, ao contrário, um tópico de debate muito recorrente na atualidade. Sinal da natureza do problema são as múltiplas faces deste campo de pesquisa, localizado na intersecção de, no mínimo, três grandes esferas do conhecimento.54

51

Coimbra, “Considerações sobre a interdisciplinaridade”.

52

Bourdieu, Os Usos Sociais da Ciência: Por uma Sociologia Clínica do Campo Científico.

53 Jollivet, “L’evaluation scientifique : mise à l’epreuve et outil de conception de l’interdisciplinarité”.

54 Alfonso-Goldfarb, org., “Documentos, métodos e identidade em história da ciência: centenário Simão

A primeira dessas esferas é composta pelas várias ciências (exatas, naturais, etc.) com as quais a História da Ciência se relaciona desde seus primórdios como um meta-discurso. Baste lembrar que, originariamente, a História da Ciência foi cultivada pelos próprios cientistas, através de uma reflexão interna sobre a área de sua especialidade. Vale dizer, para se fazer História da Ciência foi, e continua necessário, um domínio profissional dos aspectos teóricos, metodológicos e práticos do objeto que se pretende abordar.

A segunda interface corresponde à filosofia, mais particularmente, à história da filosofia e à filosofia da ciência. Esse ponto tem sido ampla e frutiferamente reconhecido e pode ser sintetizado pela célebre máxima de Imre Lakatos, revisitada por Georges Canguilhem: “a epistemologia, sem a História da Ciência, é vazia; a História da Ciência, sem epistemologia, é cega”.55

Finalmente, a terceira interface é com a própria história. Nesse sentido, deve-se ter sempre em mente que a esfera interna e fortemente epistemológica das análises em História da Ciência marca um diferencial constante entre esta e a história geral.

A identidade da História da Ciência, portanto, é um assunto complexo, devido à proximidade íntima que mantém com suas áreas de interface. É uma ameaça real sua absorção pela epistemologia (como o termo “epistemologia histórica” favorecido pelos autores de língua alemã parece denotar)56, bem como pelas próprias ciências, tal qual aconteceu na época da origem da História da Ciência. Mais recentemente, tem aparecido ainda outra ameaça: a de sua dissolução nas disciplinas sociais ou históricas, como será visto logo a seguir.

Tratando-se a História da Ciência de uma disciplina de interface, ou nos termos de hoje, de um campo legitimamente interdisciplinar por natureza e origem, já que tem seu objeto de

55 Lakatos, “History of Science and Its Rational Reconstructions”, 91; Canguilhem, “L’Objet de l’Histoire des

Sciences”, 11-12.

56 Vide, por exemplo: Sturm & Feest, orgs., What (Good) is Historical Epistemology?; Rheinberger, Historische

Epistemologie zur Einführung (em tradução inglesa: On Historicizing Epistemology: An Essay); Renn, “Historical Epistemology and the Advancement of Sciences”; “Historical Epistemology and Interdisciplinarity”; Renn & Engler, “Wissenschaftliche Philosophie, modern Wissenschaft und Historische Epistemologie”.

estudo construído na intersecção das ciências, da epistemologia e da história, cabe perguntar como está representada neste tipo de tabelas. A questão não é meramente retórica, mas aponta diretamente duas séries de problemas formulados nessas questões: em primeiro lugar, como é e como deveria ser medida a produtividade na História da Ciência? Em segundo lugar, como classificar os materiais de pesquisa (documentos, fontes e literatura secundária) relevantes? Como indicado na Introdução do presente estudo, este último é o problema que nos propomos a resolver.

Para ilustrar o problema, voltemos um pouco à localização da “História da Ciência” nas árvores do conhecimento representadas pelas tabelas de área da CAPES e do CNPq.

Como observado na seção anterior, a tabela da CAPES inclui uma Grande Área Multidisciplinar, que seria o lócus natural para uma disciplina de interface tal como a História da Ciência. Essa Grande Área integra uma Área de Avaliação denominada “Interdisciplinar”. No entanto, essa última está subdivida em quatro subáreas: “Meio Ambiente e Agrárias”; “Sociais e Humanidades”; “Engenharia/Tecnologia/Gestão”; “Saúde e Biológicas”. É imediatamente evidente que nenhuma das quatro “subáreas interdisciplinares” acolhe naturalmente um campo de pesquisa na interface entre as ciências ditas “duras” e as ciências humanas.

Nessa mesma tabela da CAPES, a “História das Ciências” está incluída na Grande Área das Ciências Humanas, como uma das especialidades da História. Essa localização não leva em conta a interface da História da Ciência com as ciências que fornecem seus objetos de estudo.

O motivo dessa situação é que as tabelas das áreas do conhecimento são meramente pragmáticas, sem fundamentos epistemológicos que respaldem as chamadas “árvores do conhecimento”. A análise dessa problemática é assunto do próximo capítulo.

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