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CAPÍTULO 2: AS ÁRVORES DO CONHECIMENTO

2.1 Quatro momentos cruciais

As propostas de divisões do saber são virtualmente infindáveis, sendo objeto de reflexão para filósofos e eruditos pelo menos desde Platão até a atualidade. Nesse contexto, no entanto, podem ser identificados quatro momentos particulares em função de sua influência nesse gênero de debate. Referimo-nos às propostas de Aristóteles (384-322 a.C.), de Francis Bacon (1561-1626), a Encyclopédie (1751 - 1772) e de Auguste Comte (1798-1857).67

Conforme sabemos, o lócus tradicional sobre o qual foram avaliados os campos do conhecimento, levando ao que se conhece como “árvore do saber”, vem de Aristóteles. Para ele, um campo do conhecimento seria definido como ciência somente se tivesse objeto próprio. Por esse motivo, campos como a lógica, a retórica, a poética, entre outros – que

65 Ibid., 65. 66 Ibid., 69.

67 A obra citada de Richardson inclui, como apêndice, uma lista abrangente das diversas tentativas de

operam com objetos de outras ciências – passariam a ser considerados auxiliares ou instrumentais.

No que tange às ciências propriamente ditas, a escala aristotélica vai desde as chamadas ciências puras – em que a interferência humana com o objeto seria nula – até as ciências híbridas e manipulativas. Mais do que uma simples escala, meramente hierárquica e inflexível, a imagem que melhor representa essa sequência seria a de esferas concêntricas, tendo na parte mais interna as ciências puras que dependem apenas do puro raciocínio ou da observação à distância, tais como a astronomia, ou as derivadas da metafísica, ou seja, aquelas referentes a tudo que está além da esfera lunar (um divisor de águas para Aristóteles, entre o mundo da matéria corruptível, formado por quatro elementos, e o incorruptível, em movimento eterno e constante, formado pela matéria incorruptível e perfeita do quinto elemento ou éter). Enquanto na próxima sequência de esferas estariam as ciências intermediárias, como a mecânica e a ciências das plantas e dos animais. Por fim, nas esferas mais externas, encontravam-se as ciências cujo estatuto era muito discutido e até mesmo duvidoso, por serem manipulativas e muito próximas das artes, pois derivadas de um conhecimento fortemente empírico.68

Aristóteles parte da discussão entre episteme (ciência) e techné (arte, na tradução latina), no livro VI de Ética a Nicômaco69. Nesse livro, ele descreve as virtudes da alma racional, que são cinco: techne, episteme, phronesis (prudência, ou sabedoria prática), sophia (sabedoria) e

nous (entendimento intuitivo). O que interessa para os fins da presente discussão são os conceitos de episteme e techné, pois estão na origem do conceito de “ciência” de Aristóteles e de sua consequente classificação.

68 Para um arrazoado sobre essas divisões do conhecimento em Aristóteles, vide: Ana M. Alfonso-Goldfarb,

“Como se Daria a Construção de Áreas Interface do Saber?”

Os objetos da episteme são aqueles que não admitem mudança, os que são eternos e existem necessariamente. O modo do conhecimento é a demonstração, garantia de certeza, e que começa pelos primeiros princípios. Esse será um dos temas desenvolvidos por Aristóteles nos Segundos Analíticos, em que qualifica episteme como um saber das causas.70 Do outro lado, o conceito de techné ainda precisa ser mais bem definido. Em particular, deve-se distinguir entre a virtude para se fazer, produzir algo, trazer algo à existência (poieton) e à ação propriamente dita (praxis). Poieton tem seu fim em algo fora da própria atividade de produzir, enquanto praxis (ação) tem seu fim em si mesmo. Techné corresponde à disposição para produzir algo através de raciocínio correto, enquanto que a disposição para a ação é aretê (virtude).71

Aristóteles discute, explicitamente, a divisão dos campos do saber no livro VI de

Metafísica72, bem como no livro I da Ética a Nicômaco. Segundo ele, toda ciência investiga os princípios, as causas e a natureza dos seres que são seu objeto de estudo. Embora as ciências possuam em comum o procedimento de busca dos princípios e das causas, elas se distinguem umas das outras pela natureza do objeto que investigam, isto é, há uma só ciência para cada gênero de ser. A partir daí, as ciências se classificam em três grandes grupos: teóricas, cujo fim é a verdade; práticas, cujo fim é uma ação destinada ao bem humano; e produtivas ou poiéticas.

As ciências teóricas são as que investigam os princípios e as causas de seres ou coisas que existem na natureza independentemente da vontade e da ação humanas, e que se desenvolvem naturalmente por si mesmas, sem qualquer participação humana. Como

70 Aristóteles, Posterior Analytics, 71b, 10-15.

71 Aristóteles, Nichomachean Ethics, 1094a, 5-10; 1140a, 1-20. 72 Aristóteles, Metaphysics, 1025b, 1026a.

princípio de classificação, Aristóteles considera o movimento e, dessa forma, classifica as ciências teóricas como:73

 Física: Ciência dos seres que possuem em si mesmos o princípio do movimento e do repouso. São ciências físicas teoréticas: a ciência da natureza, o estudo de animais e plantas e a psicologia;

 Matemática: Ciência dos seres imóveis e separados de qualquer matéria. São ciências matemáticas teoréticas: a aritmética (estudo do número e suas operações), a geometria (estudo de pontos, linhas, superfícies e figuras), a música ou acústica (estudo dos ritmos e proporções dos sons), e a astronomia (estudo dos astros imperecíveis);

 Filosofia Primeira: Refere-se aos princípios de todos os seres, ou do ser enquanto ser, sem qualquer determinação particular. Também chamada de Teologia, quando esses primeiros princípios são referidos ao ser imutável que é princípio do mundo, vale dizer, o divino. Mais tarde, quando os editores das obras de Aristóteles organizaram os escritos, deram-lhe o nome de Metafísica.

As ciências práticas, diferentes das teóricas, têm seu princípio no ser humano como agente da ação e sua finalidade é o próprio ser humano. Referem-se à práxis como algo propriamente humano, que não produz algo diferente do agente (em contraposição às ciências produtivas ou poiéticas). Diferente das ciências teóricas, as ciências práticas não são contemplativas, mas dependem da vontade racional e, portanto, seu objeto não é necessário, mas meramente possível, e particular, ao invés de universal. Incluem:

 Ética: Estuda a ação do ser humano enquanto alguém que deve ser preparado para viver na polis, estabelecendo os princípios racionais da ação virtuosa, i.e., a que tem por finalidade o bem do indivíduo enquanto ser social;

 Política: Estuda a ação dos seres humanos enquanto seres sociais, procurando estabelecer os princípios racionais da ação política, cuja finalidade é o bem da comunidade.

Finalmente, as ciências produtivas se referem a um tipo particular de ação humana, que é a de fabricação (poiesis). Diferente das ciências práticas, as produtivas resultam em algo diferente em si próprias, uma obra, coisa, objeto, etc. Além de lidar com o possível, referem- se ao contingente e estão destinadas a vencer o acaso. As ciências produtivas são aquelas que se referem a um aspecto particular da capacidade fabricadora ou técnica dos seres humanos e, por isso, são tão numerosas quanto nossas possibilidades de produzir: agricultura, metalurgia, tecelagem, serralheria, marcenaria, carpintaria, sapataria, olaria, culinária, pintura, escultura, engenharia, arquitetura, medicina, guerra, navegação, caça, retórica, poesia, etc.

Salienta Vickery que o sistema de classificação elaborado pelo Estagirita "[...] foi a estrutura do conhecimento por aproximadamente dois mil anos [...]", servindo de modelo para muitos sistemas de classificação e sendo adaptado conforme os pressupostos básicos e objetivos de cada um dos novos sistemas desenvolvidos desde então.74 Fonseca afirma ser plausível “[...] supor que nenhum outro pensador, em qualquer tempo, tenha chegado a saber e sistematizar uma proporção tão vasta de tudo o que havia para se saber em sua época”75.

De todo modo, é virtualmente supérfluo dizer que, embora tenha sofrido muitas transformações, a divisão aristotélica do conhecimento foi a base para a maioria das “árvores do conhecimento” desde a antiguidade, o que é visível em autores como Plínio (23-79), passando aos medievais, como Isidoro de Sevilha (ca. 560-636), e alcançando autores renascentistas como Dante (ca. 1265-1321) e Francis Bacon, respectivamente. Tratava-se de uma organização à moda do antigo enciclopedismo que, como indica o próprio nome,

74 Vickery, Classificação e Indexação nas Ciências. 75 Fonseca, “Por que ler Aristóteles hoje?”.

constituía um ciclo de conhecimentos com remissões entre si, fornecendo os diferenciais, as interações e as possíveis derivações entre os conhecimentos.

Francis Bacon utilizou as categorias organizativas do conhecimento enciclopédico em suas obras The Advancement of Learning (1605) e De augmenti scientiarum (1623), apresentando um sistema baseado nas três partes do entendimento humano que são a sede do conhecimento: a memória, a imaginação e a razão.76 À memória corresponde a história, à imaginação a poesia, e à razão a filosofia.

A história se divide em natural, civil, eclesiástica e literária. A história natural trata da natureza em curso, da natureza em variação e da natureza alterada, respectivamente, história das criaturas, história das maravilhas e história das artes.77 Também a história civil tem três partes, correspondentes a três tipos de imagens: as não terminadas (perfeitas e desfiguradas, que correspondem às memórias), as histórias perfeitas (do tempo: crônicas; de pessoas: biografias; de ações: narrativas) e as antiguidades.78 A história eclesiástica inclui a história da igreja, a história da profecia e a história da providência.79

A poesia, diz Bacon, também é uma parte do conhecimento referida à imaginação. Não ligada às leis da matéria, pode unir o que a natureza separa, e separar o que a natureza une.80

No entanto, o conhecimento do ser humano é informado tanto pela luz da natureza, quanto inspirado pela revelação divina; a luz da natureza consiste nas noções da mente e o informado pelos sentidos. De acordo com essa dupla fonte, o conhecimento se divide em divindade (“divinity”, nossa teologia) e filosofia.81

76 Francis Bacon, The Advancement of Learning, 32 et seq. 77 Ibid., 32-3.

78 Ibid., 34-5. 79 Ibid., 37. 80 Ibid., 38. 81 Ibid., 40.

Na filosofia, a contemplação humana se dirige ao Criador, é circunscrita à natureza, ou se reflete sobre o próprio ser humano, dando origem a três formas de conhecimento: filosofia divina, filosofia natural e filosofia humana. Neste contexto, Bacon utiliza explicitamente a metáfora da “árvore”, pois afirma que “as distribuições e partições do conhecimento [...] são como os ramos de uma árvore, que se reúnem no tronco, que tem a dimensão e a quantidade da integridade e continuidade, antes de se tornar descontínuo e quebrar-se em braços e ramos”82. Daí que, como Aristóteles, também Bacon afirme a necessidade de uma philosophia

prima, a metafísica, como via principal e comum original.

A filosofia natural inclui a investigação das causas e a produção de efeitos, portanto, uma parte especulativa e uma parte operativa, respectivamente, ciência natural e prudência natural.83 A ciência natural, por sua vez, se subdivide em física e metafísica. A física compreende o que é inerente à matéria e, portanto, o que é transitório; ao passo que à metafísica corresponde o que é abstrato e fixo. Vale dizer, a física aponta ao material e eficiente, enquanto a metafísica refere-se às causas formal e final. A física precisa, ainda, ser distinguida da história natural, que descreve apenas a variedade das coisas. Por outro lado, a física explica suas causas variáveis, lembrando que a metafísica se ocupa das causas fixas e constantes.84

Bacon coloca a matemática como uma terceira parte da filosofia natural, em pé de igualdade com a física e a metafísica, embora também possa ser considerada uma subdivisão desta última. Seu objeto é a quantidade; quando se trata de quantidades determinadas, as ciências matemáticas são ditas puras e são duas: a geometria (quantidades contínuas) e a aritmética (quantidades discretas). As matemáticas ditas mistas, ao contrário, têm como objeto alguns axiomas ou partes da filosofia natural e abordam as quantidades determinadas apenas

82 Ibid., 40. 83 Ibid., 42. 84 Ibid., 43.

como auxiliares e incidentais a elas. Nessa categoria, incluem-se a perspectiva, a música, a astronomia, a cosmografia, a arquitetura, e a engenharia, entre outras.85

Quanto à prudência natural, ou parte operativa da filosofia natural, Bacon a divide em três partes: experimental, filosófica e mágica, que se correspondem com as três partes especulativas (história natural, física e metafísica).

Resta, então, a discussão da ciência referida ao ser humano (“humanidade”), que corresponde ao conhecimento do corpo e ao conhecimento da mente. Bacon interessa-se inicialmente pelo problema da relação mente-corpo e, assim, afirma que este pode ser abordado pelo efeito de um sobre o outro, através da fisionomia (conhecimento das disposições da mente através de indicadores no corpo) e da análise dos sonhos naturais, que revelam o estado do corpo através das imaginações da mente.86

O conhecimento do corpo se divide entre saúde, beleza, força e prazer, correspondendo, respectivamente, à medicina (arte da cura), à arte da decoração (cosmética), à arte da atividade (atlética) e à arte da volúpia.87 Por outro lado, o conhecimento da mente humana se divide naquele relacionado ao entendimento e à razão, e um outro focado na vontade, no apetite e nas afecções (ética, moral, direito, etc.).88

As artes intelectuais são quatro, de acordo com seus fins: invenção, julgamento sobre o inventado, conservação desse julgamento e transmissão do conservado. As artes correspondentes são as da investigação ou invenção, a do exame ou julgamento, a da custódia ou memória, e a da elocução ou tradição.89 É nesse contexto que Bacon introduz sua elaboração sobre os modos lógicos (indução, dedução, silogística, demonstração, axiomas e princípios, etc.) e retóricos.

85 Ibid., 46. 86 Ibid., 49. 87 Ibid., 50. 88 Ibid., 55. 89 Ibid., 56.

Considerado claro e satisfatório para o estudo do conhecimento humano, o sistema de Francis Bacon foi considerado um dos mais influentes nas diversas tentativas feitas para classificar o conhecimento, sendo a base de vários instrumentos destinados à organização e transferência do conhecimento.

Esse marco circular, originado na antiguidade e representado de forma orgânica (por isso, em geral, assumido em forma de árvore), rompe-se, no entanto, durante o século XVIII a partir da crescente especialização dos conhecimentos. Surgiriam, assim, ao longo desse século, novas formas de enciclopedismo e, por consequência, também uma nova classificação dos conhecimentos, muito bem conhecida e reconhecível na Encyclopédie francesa.90

O gênero enciclopédico alcançou sua culminação com a Encyclopédie organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean d’Alembert (1717-1783). Sua principal característica é a ordem alfabética dos tópicos. No entanto, no prefácio é apresentada uma “árvore do conhecimento” baseada nas faculdades baconianas (Figura 2).

90 Para maiores detalhes sobre o processo histórico de classificação enciclopédica, vide, por exemplo: Alfonso-

Figura 2. Classificação do saber na Encyclopédie91

O projeto de Diderot e d’Alembert, de acordo com Walter Tega92, pode ser considerado uma verdadeira descontinuidade no gênero enciclopédia. No século XVII, em consonância com a visão mecanicista do mundo, o gênero enciclopédia era a representação mais eficaz do sistema do mundo e do universo-máquina: a inteligência é uma, o método é um e o saber é um. Uma enciclopédia era, portanto, o livro universal e, ao mesmo tempo, o arquétipo para toda classificação de objetos, toda biblioteca universal e a fonte das regras para todo projeto de institucionalização do saber.

Ao contrário, o que Diderot e d’Alembert procuram salvar a capacidade sistemática e unificadora inerente à própria ideia de uma “enciclopédia” e, ao mesmo tempo, garantir a capacidade de desenvolvimento do saber. Numa época em que a crise dos sistemas dedutivos da era clássica era eminente, a opção dos enciclopedistas é focar o saber ligado aos fenômenos, ou seja, os objetos e noções aparentemente necessários para a construção dos novos edifícios do conhecimento.

Os enciclopedistas se defrontam com o problema de colocar lado a lado o saber com todas suas aquisições mais recentes e sublinhar os princípios gerais, ou seja, reconstruir de um modo empírico e racional a corrente de conhecimentos. Assim, a forma enciclopédico-crítica de se lidar com coleções de fenômenos e fatos e, simultaneamente, com os princípios de ordenamento e classificação será uma dupla via metodológica, que Tega sintetiza com as expressões “summa do trivium e o quadrivium” e “scientia scientiarum”, respectivamente.93

Em outras palavras: Diderot e d’Alembert defendem a inutilidade de se aspirar ao conhecimento total. Nesse contexto, recusam todo ideal pansófico, assim como todo ideal através de deduções, para defender o método indutivo: a coleta minuciosa dos fatos, seguida

92 W. Tega, “La Folie de l’Ordre Alphabétique et l’Enchaînement des Sciences », 139-56. 93 Ibid., 141.

de uma etapa de síntese; distinguir os fatos elementares, ou seja, os que servem de base para os demais; e restringir ao mínimo o número dos princípios gerais de uma ciência.94

Mantiveram-se, no entanto, várias das chaves classificatórias aristotélicas, entre os séculos XVIII e XIX, nas obras de autores como Georg W. F. Hegel (1870-1831) e Auguste Comte (1798 –1857), e mais tarde, Herbert Spencer (1820-1903).

Assim como Hegel, também Comte enxerga um desdobramento do espírito humano no tempo, fazendo da história uma ferramenta fundamental.95 Descreve, assim, três estágios para cada ramo do conhecimento humano: 1) teológico ou fictício; 2) metafísico ou abstrato; 3) científico ou positivo. Vale ressaltar, o espírito humano emprega, sucessivamente, três métodos de investigação, correspondentes a três tipos de filosofia ou sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente e representam, o ponto de partida da inteligência humana, o ponto de chegada, e uma fase intermediária de transição.96

No estado teológico, o espírito humano dirige suas investigações essencialmente para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos, ou seja, para os acontecimentos absolutos, apresentando os fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais.

Já no estado metafísico, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas inerentes aos seres do mundo.

Por fim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia à procura pela origem e o destino do universo, ao conhecimento das causas íntimas e fundamentais, para focar, exclusivamente, a descoberta, através da razão e da observação, das leis efetivas dos fatos.

94 Ibid., 144.

95 Comte, Curso de Filosofia Positiva, 3. 96 Ibid., 4.

Dessas considerações surge a necessidade de se realizar uma nova (e “racional”) classificação das ciências, agora positivas, que é o objeto da segunda lição do Curso de

Filosofia Positiva. Quanto aos projetos de Bacon e da Encyclopédie, Comte observa que todas as faculdades do entendimento humano estão envolvidas em todas as esferas de atividade, por esse motivo, as abordagens enciclopédicas estão “radicalmente viciadas”97.

Por outro lado, a teoria geral das classificações estabelecida recentemente na botânica e na zoologia poderia, sim, fornecer o guia certo, por estar baseada no “verdadeiro princípio fundamental da arte de classificar”98, consequência necessária da aplicação direta do método positivo ao problema da classificação. Esse princípio consiste na ideia de que a classificação deve provir dos próprios objetos de estudo, sendo determinada pelas afinidades reais por trás do encadeamento apresentado por eles, de modo que a classificação, ao invés de dependente de determinações a priori, passa a ser a expressão do fato mais geral manifestado pela comparação dos objetos que abarca (princípio de dependência).

Assim, Comte estabelece que todas as atividades humanas são especulações ou ações, de modo que a divisão mais geral dos conhecimentos reais os distingue em teóricos e práticos. Embora ecoe a tradição de Aristóteles a Bacon, Comte passa a excluir a parte prática da consideração, por se tratar apenas da “aplicação” da especulação, que meramente a esclarece.99

É o estudo da natureza que fornece a verdadeira base racional da ação humana sobre ela. Comte sintetiza essa relação com a fórmula “ciência, daí previdência; previdência, daí ação”100. Mas nem por isso se deve cair no erro de conceber as ciências apenas como base das artes. O espírito humano deve proceder às pesquisas teóricas fazendo total abstração de

97 Ibid., 21. 98 Ibid., 22. 99 Ibid. 100 Ibid., 23.

qualquer consideração prática. O conjunto de nossos conhecimentos sobre a natureza e dos procedimentos que daí deduzimos para modificá-los formam dois sistemas diferentes, sendo que o primeiro fornece a base para o segundo, e é o que merece, segundo Comte, o legítimo apelativo de “filosofia positiva”.

Continuando sua elaboração, com base nos tipos de fenômenos, há dois gêneros de ciências naturais: um, abstrato, geral, cujo objeto é a descoberta das leis que regem as diversas classes de fenômenos e que considera todos os casos possíveis; e o outro, concreto, particular, descritivo, consistente na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres existentes. Como exemplos, cita a fisiologia geral (estudo geral das leis da vida) por comparação à zoologia e à botânica (modo de existência de cada corpo vivo em particular); ou a química, em relação à mineralogia. Por serem as do primeiro gênero as fundamentais, é que

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