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C ONSTRUINDO E ANALISANDO O CORPUS

2.3 A questão do impasse

Na entrevista de Mônica, a questão da escolha do método, como ponto central no ensino, parece ter sido deslocada. Esse deslocamento vem como resposta a um aspecto bastante geral que levantamos, qual seja: ―Fale sobre episódios significativos em sua experiência como docente‖. Nesse sentido, essa professora se posiciona da seguinte maneira:

EM 1

O que mais me marcou sem dúvida na profissão foram as eventuais falta de respeito com que alunos me... me tratavam. Nunca tinha vivido isso antes. Eu como

aluna sempre respeitava muito meus professores, nunca levantei a voz, sempre os via é... pessoas merecedoras de respeito. Eu, diversas vezes, eu entrei na sala de aula como professora, com novidades, com músicas, dinâmicas que ficaram na bolsa, porque simplesmente eu não fui percebida, exceto por dois ou três alunos ali na frente que prestavam atenção. Era como se eu não tivesse nada para oferecer, como se a minha presença ali fosse dispensável.

Chamou-nos a atenção o fato de que o significante ―episódios significativos‖ por nós enunciado remeteu a professora Mônica a uma determinada situação por ela vivida em sala de aula que não nos pareceu ter sido agradável. Ao contrário. Essa situação (―falta de respeito, não fui percebida, minha presença fosse dispensável‖) lhe causou bastante estranheza, por não haver uma explicação mínima que lhe desse um sentido sobre o evento vivido. Afinal, se ―tudo‖ foi feito como deveria ser: aula preparada com novidades, músicas e dinâmicas, por que não deu certo?

Assim, o que ficou foi um não-sentido como resposta à reação dos alunos sobre as suas propostas de dinâmicas. Esse não-sentido parece ter sido constituído por traços que foram além do que o significante ser professor por ela construído consegue abarcar. Referimo-nos às representações de ensinar e de ser professor. Desse modo, a resposta que foi possível ser dada por essa professora para esse impasse frente ao real foi a sua paralisação, deixando as atividades na bolsa.

As marcas linguísticas ―nunca tinha vivido isso antes, porque simplesmente eu não fui percebida e era como se eu não tivesse nada para oferecer, como se a minha presença ali fosse dispensável‖ parecem instaurar certo desânimo. Desânimo para lidar com a resistência dos alunos, uma vez que essa professora pareceu não encontrar, nos referenciais que a constituíram professora, algo que lhe pudesse ser mediador para um re-arranjo, diante da atitude dos alunos, que davam indícios do que (não) queriam. Afinal, Mônica não buscou alternativas para lidar com esse impasse.

Nessas circunstâncias, indagamos: essa ―paralisação‖ não estaria apontando para uma forma como Mônica lida com a construção do lugar simbólico de professora, o qual requer certa posição ante os alunos e o ensino? Não desenvolver a aula planejada poderia dar alguns indícios de uma relação frágil com esse lugar, uma vez que ela confere ao outro (ao aluno) a palavra final, acatando-a? Ou, ainda, não estaria essa professora deixando passar uma oportunidade de colocar em operação algo de singular, justamente pela brecha que se abriu, nesse momento específico?

Nessa cena, o não-saber sobre o outro, seu aluno, se apresentou como surpreendente. Surpreendente porque a resposta dada pelos alunos escapou a um imaginário por ela construído. A maneira como essa professora lidou com esse impasse faz-nos retomar certos traços de uma formação. Pensamos que, ao estarmos em um curso de graduação ou de formação de professores, estamos também buscando um saber para exercermos nossas profissões. Acreditamos que esse importante saber se volta para atender a alguns aspectos dessa formação, mas não a todos. Portanto, a própria formação é marcada por um limite que é preciso ser considerado. Ou seja, na formação, há algo de ―possível‖ e algo de ―impossível‖.

Dentre os ―possíveis‖, podemos eleger as técnicas e os métodos, os quais vêm nos apontar maneiras de operacionalizarmos o funcionamento do processo de ensino e de aprendizagem. Os métodos visam ao professor e ao aluno, sobre os quais lançam um saber. A exemplo disso, pensamos nas diferentes pessoas que buscam aprender inglês, por exemplo, com objetivos variados. Sobre esses objetivos, há, normalmente, um conhecimento

organizado e estabelecido, ou ainda, há uma proposta metodológica para orientar o professor, em diversas demandas.

Nesses aspectos, o método acaba por objetificar o processo de ensino. Essa objetificação parece muito presente em RM 3, RM 4, RM 5, RM 6, RM 7 e RM 8. Esses são momentos em que há várias posições metodológicas, com suas proposições bem definidas, que, no entanto, deixam de fora, ou ainda, não preveem as relações entre professor/aluno, aluno/aluno, professor/método e aluno/método. Assim, cenas como essa, descrita em EM 1 pela professora, nos dá indícios de que há alguma coisa que escapa, de que algo fica de fora. Os métodos cumprem um papel, mas não abarcam tudo. Eles não pressupõem as relações que fatalmente (ou necessariamente) se estabelecem, de algum modo, entre os envolvidos. Esse é um ponto que instaura o limite do alcance do método, apesar de ele se pressupor (mé)todo e potencialmente capaz de proporcionar ao professor elementos, um saber, para sua prática.

Assim, o modelo de ciência que sustenta uma formação teórica que pretende tudo responder e esgotar com respostas prontas, pode levar a produzir, como decorrência, marcas na constituição do professor de um certo desamparo, porque parece não conceber a possibilidade de um investimento no objeto ausente, e ainda porque a consistência imaginária de tudo abarcar é, a todo momento, atravessada pelo real, como vimos em EM 1. O real, na formação, poderia ser aquilo que é da ordem do impossível e, portanto, ―que desacata a gente que é revelia (...) que não tem descanso nem nunca terá, o que não tem cansaço nem nunca terá, o que não tem limite‖52

.

Ao falarmos de relações, deixamos entrever uma forma de enlaçamento com o outro que já aponta para o furo. Falar de relações é falar também no desencaixe, no desajuste e na presença dispensável (EM 1) ou indispensável do professor. Assim, o tornar-se professor toma uma amplitude outra, para além de uma formação teórica e técnica.

Outra maneira de pensarmos a respeito do evento vivido pela professora seria recorrendo ao estudo que Freud desenvolve e que diz respeito à relação entre prazer e desprazer com a quantidade de excitação produzida pelo fato de essa professora não conseguir dar sua aula.

Freud (1920-1922/1996) argumenta que a psicanálise concebe que os processos mentais tendem a ser, predominantemente, regulados pelo princípio do prazer. Ele explica:

52

acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer. (FREUD, 1920- 1922/1996, p. 17)

Ao estabelecer relações entre o prazer e o desprazer com a ―quantidade de excitação, presente na mente‖, em que ―o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição‖, o trabalho do aparelho mental consiste em manter ―tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante‖ a quantidade de excitação, ou dentro de uma constância, porque qualquer aumento de excitação que se haja produzido poderá ser percebida como desprazer. (FREUD, 1920-1922/1996, p. 19)

Nesse sentido, acreditamos que a impossibilidade de Mônica dar sua aula em razão da indisciplina e do desinteresse dos alunos produziu um tipo de ―excesso‖, um aumento de excitação que lhe causou desprazer, e a forma possível de regulação ou de evitação desse desprazer, naquele momento, foi deixando na bolsa o que seria sua aula.

Com base nessas análises, perguntamos: o que há para além do teórico (e, por vezes, técnico) na FP que não se é possível ensinar? Entretanto, dentro do possível mínimo, o que os cursos podem pro(mo)ver dentro do modelo atual, o qual privilegia a razão, e que possibilite que o professor seja instigado a ir além do universal, do conhecimento pronto? Não seria esse universal algo que poderia resultar na reprodução de um (mesmo) modelo? É curioso observar que, ao mesmo tempo em que a reprodução é combatida no interior dos cursos, as demandas institucionais conduzem seus processos de modo a fazer com que a reprodução aconteça.

Pensamos com Safouan (1985, p. 50), quando afirma que ―o melhor ‗técnico‘, pode-se dizer, é aquele que conserva sua disponibilidade diante do que ele tem pela frente, sempre o particular, sem se ligar a nenhum ideal de analista [diríamos professor], e que aprende a cada dia algo novo‖. Se voltarmos em EM 1, perceberemos que há uma representação de aluno e professor ali expressos.

O fragmento ―sempre respeitava muito meus professores, nunca levantei a voz, sempre os via é... pessoas merecedoras de respeito‖ dá indícios da produção de uma representação sobre ser professor (―pessoas merecedoras de respeito...‖), e de ser aluna (―como aluna sempre respeitava muito meus professores...‖), as quais parecem ter sido rompidas, porque a experiência dela revelou algo acentuadamente diferente.

Certamente, Mônica tinha conhecimento, pelo menos teórico, da possibilidade de ter que lidar com uma possível indisciplina dos alunos, mas o fato ocorrido durante sua aula, o de não ser percebida por seus alunos; e, diante da situação de não ser recebida como alguém que merecesse respeito, talvez como tenha imaginado que seria, produziu um efeito para o qual a única resposta que ela conseguiu dar foi deixar ―na bolsa‖ as atividades preparadas. Uma possibilidade de analisar essa resposta poderia ser pelo fato de que Mônica já era constituída fortemente de representações sobre o que é ser aluno e professor, advindas da sua própria história como aluna.

Com isso, o conjunto de eventos experienciados pela professora parece ter produzido efeitos diversos: de desamparo, de desânimo, de sem-nome. Mas pensamos que as possíveis respostas que podem ser produzidas e dadas aos impasses como esse não sejam esgotadas pela universidade, mas construídas pelo professor, a partir de uma elaboração que englobe diversos aspectos além do teórico. Assim, a maneira como essa professora construiu as representações de ser professora, ensinar e de ser aluno é que foram determinantes para a resposta que ela deu ao impasse vivido. Porque lidar com esses impasses seria o momento em que se solicita do professor uma fala, uma ação ―em que ele precise colocar algo de si‖ (LACAN, 1998, p.11), ou seja, na articulação do universal (teórico) com o particular (o momento de ensino e as pessoas envolvidas).

Esse episódio narrado em EM 1 poderia também ser tomado como um momento da professora se colocar na posição de ter que suportar o não-saber sobre esses alunos e de sustentar o que Lacan chamou de ―oco de saber‖ (1967/2003, p. 255). Ou seja, de permitir que o saber sobre o outro viesse de alguma forma ocupar o lugar em que nada estava presente. Enfim, pensamos que poderia ser um momento de estabelecer com o outro uma construção, uma relação. Construção essa singular e que solicitaria do professor algo que não seria da ordem do teórico.

Diante desses apontamentos, pensamos poder afirmar que, no dizer de Mônica, o lugar do método parece ter se deslocado. Se no estágio o método era prioritariamente concebido como central na representação do ensinar uma língua estrangeira, ele talvez tenha passado a não ocupar mais o centro. Algo na relação que essa professora estabelecia com a teoria e o lugar em que ela colocava seu aluno fizeram com que houvesse um movimento. Movimento esse que parece ter solicitado dessa professora ―desagarrar-se‖ de certos significantes e representações e ligar-se a outros. Nem sempre estamos prontos para esse movimento, pois, além de nos constituirmos de significantes subjetivados na graduação, há aqueles com os

quais nos identificamos e que nos vieram pelos Outros de nossa história, anteriores à formação acadêmica. Vejamos alguns.