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C ONSTRUINDO E ANALISANDO O CORPUS

2.6 As relações e o mal-estar

Freud (1930/1980) nos ensina que uma das fontes de sofrimento do ser humano está nas relações que estabelecemos com nossos semelhantes. Abordamos essa questão em EM 1. Em EM 3, Mônica retoma o lugar das relações com o outro e deixa entrever indícios de um movimento. Vejamos.

EM 3

Possivelmente, eu trataria mais de perto a relação aluno/professor. (...) Acho que

a relação professor/aluno é que determina o sucesso ou a dificuldade de uma relação de ensino/aprendizagem. Talvez isso tenha sido em parte traumática pra mim, essa

relação. Ao invés de olhar mais pra língua, talvez, eu olharia mais pras pessoas que estão ali em sala de aula53.

Interessante observar que, nos dois momentos em que a questão das relações é tratada, em EM 1 e em EM 3, ela pareceu deixar uma marca. Em EM 154, ao ser desrespeitada durante a aula; e, em EM 3, quando a professora qualifica sua relação com os alunos como sendo traumática.

Em EM 3, o termo ―traumática‖ pode ser concebido como uma marca, a qual rompe uma construção imaginária, evidenciando uma opacidade de sentido ou o não-sentido, um impasse frente ao real, um excesso que não foi simbolizado na história dessa professora. Remete-nos, ainda, a uma forma de desalento que, segundo postula Birman (2006), trata-se de uma condição que experimentamos na produção da subjetividade, quando não temos referenciais, os quais poderiam nos fazer anteparo para construirmos formas de subjetivação e lidarmos com certos impasses. Sobre a noção de desalento, esse autor afirma que

se no desamparo a subjetividade colocada no grau zero das formas de subjetivação pode contar ainda com a referência a um pólo de alteridade que a organize, no caso do desalento, tal pólo é que se mostra ausente. (BIRMAN, 2006, p. 208)

Assim, o impasse vivido e apresentado em EM 1 dá indícios, por um lado, de uma perda de referencialidade em sua constituição de professora, mas, por outro, é em potencial a instauração de uma brecha para essa professora produzir conhecimento sobre o outro, seu aluno. A demanda instaurada parece ser de outra ordem, para a qual ela não encontra uma posição, em seus referenciais de professora. Pensamos que as inquietações advindas do encontro com algumas situações, de alguma maneira, demandam dos professores uma condição mínima para que possam construir operadores para lidarem com o estranhamento que a sala de aula pode produzir, entretanto, nem sempre essa construção é possível.

Portanto, indagamos se os impasses advindos da prática não poderiam estar ligados à forma como essa professora está implicada com o ensinar e com sua maneira singular de relação com o conhecimento.

53 Resposta dada à pergunta: ―O que você complementaria/mudaria/confirmaria em seu TCC?‖ 54

EM 1: ―(...) eu não fui percebida, exceto por dois ou três alunos ali na frente que prestavam atenção. Era

Pensamos que efeitos de várias ordens poderão ser produzidos no professor, caso os devires da prática docente demandarem desse professor uma posição de questionar e problematizar verdades, bem como tomar a palavra e ter uma escuta tal que lhe permita, minimamente, poder suportar o inesperado e os impasses, uma vez que esse professor poderá não saber como lidar com o que lhe escapa ao controle.

Tal ocorrência pode ser percebida em como o professor lida com os eventos de sala de aula, por exemplo. Eventos esses que, se vistos de ângulos distintos, decorrentes da assunção das posições, como aluno, inicialmente, e como professor no princípio de sua carreira, posteriormente, fazem com que esse professor conceba esse local como sendo estranhamente familiar (unheimliche). A esse respeito Freud pontua que

a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico estendeu das Heimliche [‗homely‟ (‗doméstico, familiar‘)] para o seu oposto, das Unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão. (FREUD, 1917- 1919/1996. p. 258)

Torna-se estranho o que era familiar pelo fato de que há o atravessamento do real no imaginário do professor que acaba de ingressar na docência. Imaginário esse constituído de elementos advindos de sua formação acadêmica e de sua experiência como aluno, os quais concorrem para que esse professor construa representações de aluno, de professor e de ensinar não coincidentes com o que ele tenha vivenciado como docente.

Os estranhamentos, os impasses e as representações são aspectos que estão diretamente relacionadas às diferentes maneiras que indicam que algo escapa e que qualquer perspectiva adotada na formação, por ela mesma, ainda assim, não dará conta do que é passível acontecer na sala de aula. Destacamos que, com essas assertivas, não estamos abrindo mão de uma adequada qualificação teórico-metodológica, reflexiva e proficiente em língua estrangeira, a tríade que marca, atualmente, a formação acadêmica do professor de LE, mas estamos apontando para o lugar em que os professores pré-serviço são colocados nessa dinâmica da formação.

Se podemos saber de nós pelas pistas deixadas pelo outro, pensamos que a atitude do aluno, na história narrada em EM 1, deixou indícios à professora dos limites de sua formação. Assim, o que ela indicou como sendo um ―distanciamento necessário‖, apresentado no relatório, em RM 9, foi substituído pelo dizer ―eu olharia mais pras pessoas‖, em EM 3, na entrevista. Vejamos como essa passagem ocorreu.