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Segundo Gomes (2002, p.388), a legislação educacional no Brasil teve início com a Constituição de 1824, fundadora do Estado Imperial Brasileiro. Embora estivesse prevista a gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos, não havia definição, na carta constitucional, das competências e nem dos recursos a serem empreendidos para a implantação do preceito legal. Somos instigados a refletir sobre a que grupo social a constituição se referia ao mencionar “os cidadãos”, já que o Brasil nascia como um Estado que se estruturava a partir da mão de obra escrava, com base econômica ainda assentada na agricultura para exportação, sendo analfabeta a maioria esmagadora da

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 98 população, mesmo se considerarmos a parcela constituída pelos libertos16. Somente com o Ato Adicional de 1834, que reformou nossa primeira Constituição, foram definidas as competências para o exercício do preceito constitucional,

(...) ficando a cargo das Assembleias provinciais legislar e cuidar da instrução pública ou, como se dizia, da maneira de “formar o povo”. E quem era o povo a ser formado pelas escolas de primeiras letras imperiais? Segundo a Lei Provincial de 21 de janeiro de 1837 do Rio de Janeiro, eram os homens livres: “os brancos ou boa sociedade” e também “o povo mais ou menos miúdo”. Estavam excluídos das escolas públicas de instrução elementar da província do Rio de Janeiro os escravos e também “os pretos africanos, ainda que livres e libertos” (GOMES, 2002, p.388).

Um aspecto interessante também a ser observado nas particularidades de formação do Estado brasileiro, associado ao aspecto educacional, é tratado por José Murilo de Carvalho quando analisa as características de formação de nossa elite imperial. Diferentemente do que ocorreu em toda a área de colonização espanhola na América, que se fragmentou em diversos estados republicanos, o Brasil manteve-se coeso, a despeito da existência de movimentos separatistas, que durante anos foram suprimidos ou minimizados em nossos livros didáticos de História do Brasil. A que se deveria tal particularidade? Dentre os diversos fatores explicativos, Carvalho (1996) nos chama a atenção para um fato pouco considerado em nossa historiografia: a uniformidade da formação ideológica de nossa elite, possibilitada pela educação recebida:

Argumentaremos, portanto, que a adoção de uma solução monárquica no Brasil, a manutenção da unidade da ex-colônia e a construção de um governo civil estável foram em boa parte consequência do tipo de elite política existente à época da Independência, gerado pela política colonial portuguesa. Essa elite se caracterizava, sobretudo, pela homogeneidade ideológica e de treinamento. Havia sem dúvida certa homogeneidade social no sentido de que parte substancial da elite era recrutada entre setores dominantes. Mas quanto a isto não haveria muita diferença entre o Brasil e os outros países. As elites de todos eles vinham principalmente de setores dominantes da sociedade. Ocorre que nas circunstâncias da época, de baixa participação social, os conflitos entre esses setores emergiam com freqüência. Mineradores chocavam-se com fazendeiros, produtores para o mercado externo com produtores para o mercado interno, latifundiários de uma região contra seus semelhantes de outra. A

16 Sendo assim, os sentidos pretendidos ou produzidos pela materialidade discursiva da Carta

Constitucional devem ser observados à luz das condições de produção que a embasaram, considerando-se as características constitutivas da sociedade escravocrata e agrária do século XIX.

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homogeneidade ideológica e de treinamento é que iria reduzir os conflitos intra-elite e fornecer a concepção e a capacidade de implementar determinado modelo de dominação política. Essa homogeneidade era fornecida sobretudo pela socialização da elite, que será examinada por via da educação, da ocupação e da carreira política. (CARVALHO, 1996, p.17-18).

E como esta uniformidade ideológica pela educação foi viabilizada? Seguindo as reflexões de Carvalho, argumentaremos que a elite brasileira foi educada segundo os padrões do conservadorismo católico e do absolutismo português, disseminados também através de instituições como a Universidade de Coimbra. O autor argumenta que a educação superior teria sido o principal elemento aglutinador e estabilizador dos conflitos intra-elites em nosso país. E isso, por três razões:

Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos. Em segundo lugar, porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a independência, na Universidade de Coimbra e, após a independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes de várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos, tanto de Portugal como do Brasil (CARVALHO, 1996, p.55).

A homogeneidade e a uniformidade intelectual da elite brasileira levaram a uma concepção de educação no Brasil que se caracterizou pelo diletantismo, pelo acesso restrito à educação destinada aos filhos das elites, bem como de ideias “liberais” adaptadas às realidades antiliberais do império, já que mantenedor do tripé monocultura-latifúndio-escravidão. A formação educacional também proporcionou a configuração de uma rede de sociabilidades entre os representantes diretos das elites das diversas áreas do Império. Nesse sentido, ao analisarmos a história da educação em nosso país, devemos considerá-la a partir dos interesses e das estruturas sociais que definiam seu rumo. A existência de um “mar de analfabetos” a que se refere José Murilo de Carvalho era algo desejado e necessário para que a “ilha de letrados” perpetuasse as condições para a manutenção da estrutura existente, da qual esses últimos eram os beneficiários diretos. Numa linha de pensamento a partir de Bourdieu (2004), verificamos claramente que a educação, nesse sentido, tinha conotação

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 100 conservadora, destinada à reprodução do “capital social” das elites, bem como à condução dos herdeiros das elites aos futuros postos de comando da hierarquia social. Por capital social, o sociólogo entende que

é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (...) mas também são unidos por ligações permanentes e úteis. Essas ligações são irredutíveis às relações objetivas de proximidade no espaço físico (geográfico) ou no espaço econômico e social porque são fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas cuja instauração e perpetuação supõem o re-conhecimento dessa proximidade. O volume do capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural ou simbólico) que é posse exclusiva de cada um daqueles a quem está ligado (BOURDIEU, 2004, p. 67).

Foi somente no final do século XIX e início do século XX, a partir das novas realidades e necessidades demandadas pelo capitalismo industrial, que a ampliação do acesso à educação em nosso país se torna um problema a ser realmente enfrentado. Novos atores sociais ligados à produção industrial e a emergência de uma população urbana, aliados às novas necessidades de uma economia agro-exportadora que enfrentava períodos de crise demandavam alterações na estrutura social existente no país. Ressalte-se que parte considerável da intelectualidade que pensará e atuará nas questões educativas à época descendiam de famílias ligadas à agroexportação. Não devemos compreender o processo de modernização da economia brasileira valendo-nos dos referenciais que a associem à ideia de uma “revolução burguesa”, como ocorrida em países centrais17.

Com o processo de urbanização e industrialização, o analfabetismo se torna um problema concreto a ser superado diante de uma nova ordem econômica. A partir do

17 Para maiores aprofundamentos sobre as características do discurso liberal no Brasil no século XIX e

início do XX, sugerimos a leitura da obra “Ordem Burguesa e Liberalismo Político”, de Wanderley Guilherme dos Santos, particularmente quando o autor trata das reflexões sobre a “Práxis liberal no Brasil”, propondo novas formas de reflexão e pesquisa. Segundo o autor, “seguindo um rumo diferente ao dos outros países sul-americanos, o movimento [liberal] brasileiro aspirava unicamente à autonomia política e econômica em relação ao poder colonial. O Brasil não pretendia tornar-se uma república nem, tão pouco, intentava construir uma sociedade rousseauniana com base na premissa de que todos os homens são política e socialmente iguais” (SANTOS, 1978, p.78).

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 101 processo de industrialização no país, verificou-se um crescimento da demanda social pela educação e a necessidade de criação de escolas é reconhecida pela intelectualidade ligada às elites. Entretanto, somos instigados por Xavier (1990) à questão sobre o que, efetivamente, representava esse fenômeno:

Essa demanda desperta correspondia a uma exigência real apreendida e expressa espontaneamente na valorização das escolas pelas classes sociais emergentes e pelos grupos sociais tradicionalmente excluídos desse privilégio? Ou teria se constituído numa mera resposta aos apelos de uma ideologia que se importava, como faceta de um processo que modernizava a vida nacional em todas as suas esferas? O inegável é que, se antes a necessidade de instrução não era sentida como fundamental no seio da sociedade brasileira, e era relegada a plano secundário pelo poder político, a nova situação induziu profundas modificações no quadro das aspirações educacionais, no discurso e na ação do próprio Estado (XAVIER, 1990, p. 59).

Havia, em nosso entendimento, uma dimensão discursiva que se aliava a uma renovação e modernização, mas sem abrir mão de aspectos conservadores e de manutenção da ordem necessária e condizente aos interesses das relações de produção. É nessa ótica que empreendemos nossas reflexões nas questões que envolveram as discursividades sobre a educação liberal, particularmente aquelas que dizem respeito à problemática da estruturação da Educação Superior (Universidades) em nosso país. Ousamos sugerir que havia uma “memória discursiva” vinculada a formações discursivas conservadoras, mesmo quando materializada em enunciações de representantes do discurso liberal.

3.2 A problemática da Educação Superior no Brasil: da proibição régia à criação