• Nenhum resultado encontrado

Memória Social e História da Educação: uma proposta de aproximação de campos a partir de novos olhares sugeridos por Becker

Ao considerarmos os estudos que se valem da memória social como eixo estruturante, somos levados à necessidade de adequação de campos6 e metodologias

6 O conceito de campo, central na obra de Pierre Bourdieu, é concebido como espaço coletivo da ação

daqueles que detêm os códigos de compreensão e de conduta. O campo agrega os iguais, mas em seu interior, existem competições, conflitos e até mesmo processos de exclusão O campo “é espaço social de relações objetivas” (BOURDIEU, 2001, p. 64). Segundo Bourdieu, “compreender a gênese social de um campo e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar,

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 34 diversos para a fundamentação de nossos trabalhos. Sendo trabalhada por diferentes campos de saberes, numa perspectiva de atravessamento entre eles (e não somente uma aproximação), pretendemos a produção de novos efeitos de sentidos entre os diversos saberes constituídos. Nesse sentido, a essência de todo objeto transdisciplinar é constituir-se como algo novo.

No desenvolvimento deste trabalho, a construção conceitual, bem como as diversas possibilidades metodológicas empregadas, foram observadas sob a influência de diversos autores. Para a aproximação entre os campos da memória social e da história da educação, na pretensão de uma abordagem que se utilize de novos elementos analíticos, julgamos interessantes as observações do sociólogo Howard Becker, que fundamentam seu livro Segredos e Truques da Pesquisa (2007). De forma geral, numa perspectiva de esforço de síntese e de novos olhares entre os campos, elegemos algumas de suas reflexões que nortearam as análises que empreendemos sobre a problemática que envolve os atores sociais, os diversos eventos e as discursividades institucionais tratados na pesquisa. Diz-nos Becker:

a) Muitas vezes queremos produzir uma história muito complexa e não percebemos que os aspectos mal resolvidos e as eventuais pequenas incoerências podem ser elementos imprescindíveis para o desenvolvimento de uma pesquisa;

b) Sempre atribuiremos, implícita ou explicitamente, um ponto de vista, uma perspectiva e motivos às pessoas cujas ações analisamos. Por isso devemos ter constante cuidado com as imagens que já possuímos, já que muitas vezes, as imagens estereotipadas entram em cena e podem assumir o controle da situação.

tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e as obras

por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir” (BOURDIEU, 2001, p.69). Podemos também defini-lo como “um espaço estruturado de posições onde dominantes e dominados lutam pela manutenção e pela obtenção de determinados postos. Dotados de mecanismos próprios, os campos possuem propriedades que lhes são particulares, existindo os mais variados tipos, como o campo da moda, o da religião, o da política, o da literatura, o das artes e o da ciência. Todos eles se tornam microcosmos autônomos no interior do mundo social. (...) A estrutura do campo é como um constante jogo, no qual, cientes das regras estabelecidas, os agentes participam, disputando posições e lucros específicos. (...) Os campos são resultados de processos de diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo e o que dá suporte são as relações de força entre os agentes (indivíduos e grupos) e as instituições que lutam pela hegemonia, isto é, o monopólio da autoridade, que concede o poder de ditar as regras e de repartir o capital específico de cada campo” (ARAÚJO, F.M; ALVES, E.M; CRUZ, M.P., 2009, p.35-36)

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 35 c) Embora nenhuma das ações particulares dos diversos sujeitos que compõem nossa história ou um evento particular que se apresenta como objeto a ser explicado sejam aleatórios, embora cada evento ou ação possam ser explicados de um modo sociológico ou histórico (ou de qualquer outra forma “científica”), o que não pode ser explicado tão facilmente é sua interseção com diversos outros fatos, circunstâncias ou atores sociais. A realidade é complexa e não pode ser dissecada ou pensada numa linearidade;

d) Os objetos, portanto, são acordos sociais congelados, ou melhor, momentos congelados da história de pessoas agindo juntas. Por isso, devemos ver no objeto físico diante de nós todos as indicações de como ele ficou daquela maneira, de quem fez o que para que essa coisa exista agora desse modo. Por exemplo, padrões de cultura profissional terão alguma coisa a ver com o lugar onde os profissionais estão trabalhando; as condições ambientais de um evento, uma organização ou um fenômeno são cruciais para sua ocorrência ou existência na forma que finalmente assume;

e) Devemos também pensar as pessoas a partir das atividades que desempenham. Isso pode relativizar a tendência que temos a fazer uma “tipologia” das pessoas. Segundo Becker, isso é um erro, porque é fácil observarmos que ninguém age completamente segundo o papel designado por seu tipo. A atividade de todas as pessoas é sempre mais variada e inesperada que isso. Falarmos sobre tipos de pessoas seria adotar o pressuposto forte e infundado de que as pessoas agem de modo coerente, de maneiras determinadas por sua constituição como pessoas, seja esta psicológica ou sociológica. O pressuposto alternativo, mais adequado para um pesquisador e que representa maior probabilidade de se mostrar correto é considerarmos que as pessoas fazem o que for que devam fazer, ou seja, o que for que lhes pareça bom no momento. Como as situações mudam constantemente, não há razão para esperar que se comportem sempre da mesma maneira. Dessa forma, devemos considerar que as atividades são respostas a situações particulares, e as relações entre situações e atividades têm uma coerência que permite generalização. Se tipificar pessoas é uma maneira de explicar a regularidade nas suas ações; tipificar situações e linhas de atividade parece-nos um caminho diferente. O foco em atividades e não em pessoas poderá despertar-nos um interesse pela mudança, e não pela estabilidade, por ideias de processo, e não de estrutura.

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 36 f) Seremos induzidos aos mais diversos erros se aceitarmos, segundo Becker, as mentiras que as organizações contam acerca de si mesmas. Se, em vez disso, procurarmos lugares onde essas histórias não se sustentam, os eventos e atividades que as pessoas que falam em nome da organização ignoram, acobertam ou minimizam, encontraremos uma opulência de coisas para incluir no corpo de material a partir do qual construímos nossas definições. Quando encontramos eventos e fatos que não são explicados nas histórias convencionalmente contadas sobre uma organização ou instituição, em geral encontramos um novo elemento, ou “variável”, que precisa ser incorporado na definição do problema sob estudo.

Os dirigentes das organizações e das instituições que estudamos definem parte do que deveria ser incluído em nossa amostra de casos como algo que não exige estudo. Becker define, para tal reflexão, o que chama de “hierarquia da credibilidade”: em qualquer sistema de grupos hierarquizados, parece estar implícito que os membros do grupo mais elevado têm o direito de definir (e de registrar nos documentos oficiais) o modo como as coisas realmente são. Em qualquer instituição, “não importa o que seu organograma mostra, as setas que indicam o fluxo da informação apontam para cima, demonstrando assim (ao menos formalmente) que os que estão em cima têm acesso a um quadro mais completo do que se passa que os de qualquer outro nível” (BECKER, 2007, p.123).

Assim, Becker sugere uma forma para lidarmos com essa hierarquia da credibilidade: duvidemos do que nos é dito por qualquer pessoa que detenha o poder. Instituições sempre procuram dar a melhor impressão possível em público e as pessoas que as dirigem, responsáveis que são pela suas imagens de auto-correção e reputações, sempre mentem um pouco, polindo asperezas, escondendo dificuldades, apagando ou negando a existência de problemas, conflitos, contradições. O que elas dizem pode ser verdade, mas a organização social lhes dá razões para mentir (ou omitir). Devemos procurar o conflito e a insatisfação, cuja existência os líderes organizacionais ou os dirigentes institucionais geralmente negam.

Acreditamos que essas sugestões poderão trazer novas interpretações aos eventos já consolidados no campo da história da educação, sobretudo a partir de um

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 37 olhar que vislumbre para além do aparente ou do registro oficial; um olhar que considere as narrativas institucionais a partir da observação dos múltiplos (e aparentemente contraditórios) aspectos que caracterizam a trajetória institucional, afastando-nos das análises dicotômicas ou ainda daquelas abordagens enaltecedoras de uma pretendida retidão institucional ou personalista que, no nosso entendimento, carecem de sustentação quando confrontadas com a realidade vivenciada.

2.2 Os conceitos de Educação, História, Memória, e Identidade enquanto