• Nenhum resultado encontrado

Memória Social e Instituições: o discurso institucional e a produção de sentidos

A partir de Lakatos, podemos considerar uma instituição como “uma estrutura relativamente permanente de padrões, papéis e relações que os indivíduos realizam segundo determinadas formas sancionadas e unificadas com o objetivo de satisfazer necessidades sociais básicas” (LAKATOS, 1982, p.153). Além dessas características, como agenciamento coletivo, as instituições agiriam através de códigos de condutas próprios e procurariam se diferenciar das demais, ao conferirem a si mesmas características unificadoras.

Já Thiesen (1997) nos esclarece que uma instituição é sempre obra coletiva, criação social, cultural, um acontecimento. Sua construção é historicamente percebida e seu processo instituinte se dá pela viabilização de mecanismos de controle social,

estabelecendo regras e padrões de conduta que venham a garantir seu funcionamento e o exercício de suas funções reprodutoras, que tendem à estabilidade e que obedecem a uma certa regularidade. Trata-se de reproduzir uma determinada ordem alcançada, com a intenção de manutenção dessa ordem (THIESEN, 1997, p.82).

Espaço de múltiplos campos de saberes e poderes, a universidade configura-se como lócus de gestação e reprodução de ideologias em disputa por hegemonia.15

15 Segundo Marilena Chauí, este fenômeno da conservação da validade das ideias e valores dos

dominantes, mesmo quando se percebe a dominação e mesmo quando se luta contra a classe dominante mantendo sua ideologia, é o que Gramsci denomina de hegemonia. Uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e policial da sociedade), mas ela é hegemônica, sobretudo porque suas ideias e valores são dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação (CHAUÍ, 1984). Em outro livro, intitulado “Escritos sobre a Universidade”, publicado em 2001 pela Ed.UNESP, Chauí amplia suas reflexões sobre a problemática de constituição e da necessidade de reconfiguração das universidades, movida pelas inquietações que estão presentes nesse momento histórico específico do início do século XXI onde as novas configurações de construção do conhecimento são discutidas,

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 92 Enquanto instituição, a universidade também cria mecanismos de controle para a construção de uma pretendida identidade institucional e assim, também confere padrões de identidade a seus membros (OLIVEIRA, 2002, p.30), exercendo mecanismos de controle sobre suas memórias. Para tal, leva-os a esquecerem de experiências incompatíveis com sua imagem de unidade e correção, trazendo para suas lembranças e mentes acontecimentos que apóiam uma homogeneidade que apaga as diferenças e eventos contraditórios.

Se o sujeito é o indivíduo interpelado pela ideologia, é preciso analisar as filiações ideológicas a que os dirigentes das instituições (em seus diversos níveis hierárquicos) se coadunam, a fim de percebermos a natureza e opacidade de seus discursos, muitas vezes estabilizadores de uma memória institucional que pretende se perpetuar por gerações sucessivas. Ao se unirem, mesmo que circunstancialmente, os sujeitos constituem os grupos nas instituições. Consideramos que a percepção das características dos diversos grupos que são formados nas instituições é um aspecto fundamental para a própria compreensão das memórias coletivas que são produzidas.

Apoiando-nos em Oliveira (2002, p.34), entendemos o grupo como sendo fruto de uma coesão determinada por interesses comuns, cuja existência e permanência dependem do estímulo e da incitação, e não, necessariamente, do consenso. Sabemos que o processo de associação de indivíduos em grupos (como por exemplo, as diversas comissões que são instituídas na universidade) não é aleatório, mas determinado por uma série de fatores que regulam o processo: “atingir um objetivo específico, é, por exemplo, um fator de coesão que determina também a organização e os procedimentos de um grupo” (OLIVEIRA, 2002, p.33).

Os trabalhos que se debruçam sobre aspectos de uma memória institucional não devem prescindir da identificação dos grupos ligados aos fatos históricos que servem de elementos para a produção, perpetuação ou transformações de memórias. A categoria grupo “envolve interação regular entre seus membros e uma identidade coletiva comum. Isso significa que o grupo tem um senso de ‘nós’ que permite que seus membros se considerem como pertencendo a uma entidade separada” (OLIVEIRA, 2002, p.34). cabendo à instituição universitária adequar-se aos novos padrões e dinâmicas de produção e disseminação (socialização) dos saberes que devem caracterizar as instituições de ensino e pesquisa.

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 93 Sendo assim, podemos inferir que não existe uma homogeneidade de pensamentos, crenças e desejos numa instituição; o que existe é um equilíbrio entre forças que se opõem constantemente, estabelecendo diferentes configurações de arranjos entre os seus membros. Se é verdade que uma instituição é constituída por uma complexa rede de relações estabelecidas, não somente nos papéis e registros oficiais, mas também através de práticas habituais, fundamentadas em valores e normas adotadas pelos sujeitos que as constituem e nela atuam, é também sabido que a identidade compartilhada é um poderoso fator de coesão de grupos.

As lembranças e os esquecimentos que constroem nossas instituições (e que são igualmente construídos por elas) são constantemente permeados por relações de disputas que se estabelecem entre os seus diversos grupos. Os indivíduos e as instituições são produções de constantes interações entre convergências ou disputas por poderes e saberes. Ademais, todo conhecimento só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saberes.

Referindo-se ao olhar para o passado, nos trabalhos que têm a função de uma revisão sobre os eventos pretéritos, Mary Douglas nos sinaliza que

o espelho, caso a história o seja, distorce tanto após a revisão quanto o fazia antes. O espelho, porém, é uma pobre metáfora da memória pública. Aquele que busca a verdade histórica não está tentando obter uma imagem mais nítida de sua própria face ou até mesmo uma imagem mais lisonjeira. Remendar conscientemente e refazer são apenas uma pequena parte da moldagem do passado. Quando observamos mais de perto a construção do passado, verificamos que o processo tem muito pouco a ver com o passado e tudo a ver com o presente. As instituições criam lugares sombreados no qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas fazem com que outras áreas exibam detalhes muito bem discriminados, minuciosamente examinados e ordenados. A história surge sob uma forma não-intencional, como resultado de práticas direcionadas a fins imediatos, práticos. Observar essas práticas estabelecerem princípios seletivos que iluminam certos tipos de acontecimentos e obscurecem outros significa inspecionar a ordem social agindo sobre as mentes individuais (DOUGLAS, 2007, p.75).

As instituições são formas de saber – poder, que constituem informação (e memórias) que circulam visando à sua reprodução. Certamente a seletividade está em jogo e por isso torna-se imprescindível que conheçamos, nas instituições, suas regras e

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 94 funcionamento, seus critérios e suas normas. A memória da instituição, dessa forma, “é um permanente jogo de informações que se constrói em práticas discursivas dinâmicas. O instituído e o instituinte – as duas faces da instituição – fazem suas jogadas na dinâmica das relações sociais.” (THIESEN, 1997, p.9).

As análises de Mary Douglas reforçam as dependências e interelações entre a subjetividade dos sujeitos e das memórias individuais com as instituições às quais se vinculam e que se expressam através dos diferentes discursos:

As instituições dirigem sistematicamente a memória individual e canalizam nossas percepções para formas compatíveis com as relações que elas autorizam. Elas fixam processos que são essencialmente dinâmicos, ocultam a influência que eles exercem e suscitam emoções relativas a questões padronizadas e que alcançam um diapasão igualmente padronizado. Acrescente-se a tudo isso que as instituições revestem-se de correção e agem no sentido de que sua mútua corroboração flua por todos os níveis de nosso sistema de informação. Não é de admirar que elas nos recrutem facilmente para que nos juntemos á sua autocontemplação narcisista (DOUGLAS, 2007, p.98).

Foucault também aborda as questões que envolve as intricadas relações entre os indivíduos e as instituições (e o quanto estas interpelam aqueles em sujeitos) por meio do discurso:

Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós que ele lhe advém (FOUCAULT, 2007, p.7).

Já nos referimos ao trabalho de Thiesen (1997), que nos indica que as instituições são artifícios criados pelo conjunto dos indivíduos, são respostas dadas a problemas engendrados pelos grupos sociais e “assim sendo, se quisermos mudar as instituições, devemos transformar os valores que estão por trás dessas escolhas”. Quando se refere à questão dos sujeitos nas relações com as instituições, a pesquisadora se pergunta onde estariam as possíveis fronteiras entre indivíduos e instituição e até que ponto as instituições produzem e reproduzem memórias que são absorvidas pelos indivíduos que a elas se sujeitariam. É quando nos chama a atenção para um duplo erro que nos persegue ao observarmos os estudos que envolvem as ações e papéis dos sujeitos (indivíduos interpelados pela ideologia) nas instituições: o primeiro erro, quando se reduz o papel dos indivíduos a meros receptáculos dos imperativos

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 95 institucionais, retirando (ou desconsiderando) o espaço para a dimensão criativa que caracterizam, individualmente, os seres humanos. O segundo erro, que caminha na direção oposta, é o de acreditarmos na autonomia absoluta da ação dos indivíduos no espaço institucional, como se aqueles caminhassem livremente movidos somente por seus ideais pessoais, descolados dos imperativos e normas que caracterizam toda instituição. Para o entendimento desta zona de fronteira

procuramos entender seu estar no mundo não como sujeito assujeitado, submetido aos constrangimentos institucionais e sociais, mas analisar o sujeito como atividade – nem passivo, nem ativo – mas como processo. (...) Pois que subjetividade é ação, atividade e criação. O que implica na problematização ética a se atualizar na produção de valores e reprodução institucional. E esta ética de que se fala é um movimento que deve estar em permanente produção de singularidades (THIESEN, 1997, p.25).

Sendo assim, os trabalhos que empreendemos no campo da memória institucional devem considerar que somos marcados pelo lugar que nos forma e de onde falamos. Imersos nesse lugar, é preciso cuidado para não nos tornarmos objeto dos problemas que tomamos para objeto (BOURDIEU, 2001, p.37). O trabalho a que nos propomos como pesquisadores da memória institucional, mais do que um interesse de antiquário, pretende compreender por que se compreende e como se compreende. Um dos efeitos mais poderosos da memória instituída é o fato de nos esquecermos de que nos esquecemos, o que leva a uma naturalização de representações construídas a partir de disputas. Como instituição, a universidade também cria mecanismos de controle para a afirmação de sua identidade, conferindo percepções e padrões de conduta a seus membros. E tais mecanismos, a nosso ver, se expressam a partir dos discursos institucionais. Ao exercer mecanismos de controle sobre a memória de seus membros, leva ao esquecimento, as experiências incompatíveis com a imagem de unidade e uniformidade que ela pretende ter de si mesma.

O mosaico conceitual apresentado até aqui nos serviu (direta ou indiretamente) como base para a condução dos olhares que empreendemos nas partes seguintes que compõem a essência deste trabalho: a percepção da produção discursiva da (e sobre) a educação, bem como da institucionalização da educação superior em nosso país. Particularmente no que se refere à problemática discursiva institucional da UB sobre os lugares para a construção da Cidade Universitária, entendida como metáfora de uma

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 96 discursividade mais ampla que almejava a construção de determinada identidade institucional, ao mesmo tempo em que apagava (ou procurava apagar) outras possíveis identidades pretendidas.

A casa de Minerva – entre a ilha e o palácio Página 97 3 - PANORAMA DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: REVISITANDO E CONTEXTUALIZANDO MEMÓRIAS EDUCACIONAIS

A fim de trazermos maiores elementos analíticos às reflexões que buscamos fazer sobre as políticas educacionais, bem como sobre os desafios a serem superados à época que circunscreve nossa área de interesse (primeira metade do século XX), julgamos oportuno um pequeno retrocesso sobre a história da educação no Brasil. Tal procedimento, além de revisitar aspectos de nossa questão educacional enquanto instrumento de diferenciação social, aborda o quadro político-social que marcou a crise e o término da Primeira República nos anos da década de 1920, descortinando elementos que viabilizaram as condições para a deflagração do movimento que levou Getúlio Vargas ao poder. Tal evento inaugurou um novo período de nossa história republicana e trouxe, particularmente para o campo da educação, uma série de políticas de Estado pressionadas por movimentos organizados por instituições formadas por educadores e cientistas ‘profissionais’, nos quais se inserem as Reformas Educacionais que marcaram o período. Tais eventos foram importantes elementos para a construção de uma rede de sentidos e de memórias educacionais e institucionais que ainda nos acompanham.