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CAPÍTULO III – ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DADOS

3.4 DIMENSÃO DO CONHECIMENTO

3.4.2 A questão epistemológica

A construção dialógica do conhecimento é uma marca do pensamento pedagógico de Paulo Freire. Obviamente, tomando o conhecimento como uma construção histórica e social, feita por homens e mulheres, sujeitos curiosos diante do mundo objetivo.

Por isso, aprender é muito mais que acumular conhecimento, é processo que envolve outras capacidades, como mostra Freire (1983, p. 27-28):

Por isto mesmo é que, no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquele que é “enchido” por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende.

Conhecer é um ato de criação, é um desafio. E, por isso, não é algo que se transmite dos sabedores para os que não sabem, que se deposite nos que esperam passivos os depósitos, ou ainda, não é possível que alguém conheça pelo outro – é, portanto, um ato intersubjetivo, ou seja, entre sujeitos, ativos no processo. Não há para Freire quem saiba melhor ou mais numa situação de interação educativa, mas há quem sabe coisas diferentes uns dos outros, pois “ensinar e aprender são assim momentos de um processo maior – o de conhecer, que implica re-conhecer” (FREIRE, 2005, p. 47-48). Para Zitkoski (2004, p. 272), há uma radicalidade nessa dinâmica epistemológica de Paulo Freire:

O fundamento radicalmente novo da pedagogia freireana em seu âmbito epistemológico é a visão dialetizante do processo de construção do conhecimento. Seu ponto de vista é que todo e qualquer ser humano é detentor de conhecimentos significativos, não importa sua idade, seu meio social, grau de escolaridade, posição político-econômica, ou outras

diferenças reais. O conhecimento consiste no conjunto de saberes que formam a visão de mundo de cada sujeito cognoscente.

Essa concepção dialética da construção do conhecimento permite inferir uma dinâmica da Educação Socioambiental, no tocante às concepções de meio ambiente, das mais simples – ligadas às opiniões do senso comum52 –, até as mais elaboradas, que implicam as relações de complexidade, isto é, as inter-relações entre os seres humanos e não-humanos no mundo. Sauvé (2005, p. 317-322) identifica sete visões que nos permitem refletir sobre o saber ambiental e a Educação Socioambiental:

(i) o meio ambiente como natureza: algo para o ser humano admirar, respeitar, preservar e, a mais, sentir-se como pertencente à mesma – ao fluxo da vida, do qual participamos, eliminado a lacuna entre ser humano e natureza, reconhecendo o vínculo biocultural inerente às dinâmicas da vida;

(ii) o meio ambiente como recurso: algo para ser gerenciado, administrado e repartido, na perspectiva de um consumo responsável, crítico e solidário pelas sociedades atuais e entre essas e as futuras – trata-se da gestão das condutas e atitudes humanas individuais e coletivas;

(iii) o meio ambiente como problema: algo que exige prevenção e cuidado, que precisa ser resolvido, que precisa de solução de ordem técnica – isso demanda conhecimento e investigação crítica das realidades do meio, tendo-se presente que os problemas socioambientais estão essencialmente ligados a jogos de interesse, de poder e juízo de valores;

(iv) o meio ambiente como sistema de relações socioambientais: permitindo compreendê-lo para decidir melhor, via um pensar sistêmico sobre as relações complexas do meio ambiente;

(v) o meio ambiente como lugar em que se vive: a realidade cotidiana, a escola, a casa, o trabalho etc. Algo que precisamos conhecer para melhor aprimorar – projetos que favoreçam a interação social, a segurança, a saúde, a estética do

52 Há uma distinção histórico-conceitual no que se refere ao conhecimento filosófico (episteme) e o conhecimento do senso comum (doxa): o primeiro está relacionado à compreensão e apreensão da realidade em sua essência e o segundo tem foco na aparência, sendo o senso comum um “[...] conjunto desagregado de ideias e opiniões, que não oferece uma direção consciente à ação, constitui o que comumente se chama filosofia de vida [...]” (CARTOLANO, 1985, p. 87). Para maiores detalhes sobre a dimensão pedagógica do senso comum, verificar o trabalho original de Benincá (2002).

lugar, desenvolvendo o sentimento de pertença e o enraizamento, bem como a responsabilidade ambiental pelo lugar de vivência;

(vi) o meio ambiente como biosfera: o local onde se vive junto com os outros, reconhecendo a importância de se considerar as interdependências das realidades socioambientais em nível mundial e, nesse sentido, formar uma consciência planetária e a solidariedade internacional para o desenvolvimento da melhoria das condições de vida de todos, no mundo;

(vii) o meio ambiente como projeto comunitário: algo que nos envolve e pelo qual somos envolvidos, implicando a cooperação e parceria em prol do coletivo – o que demanda aprendizado de trabalhos e vivências comunitárias, abertura ao diálogo crítico e à tolerância aos diversos tipos de saberes.

Assim, conforme Freire afirmou, todos tem algum tipo de saber que é válido; e é nessa especificidade que se fundamenta a Educação Socioambiental, como um conhecimento específico, mas em diálogo com as mais diversas disciplinas na escola e com as áreas não-formais de conhecimento; pois, de forma interdisciplinar constrói-se novos saberes historicamente válidos. Essa é uma perspectiva crítica de construção de novos conhecimentos, a partir da realidade do mundo atual em crise – modo de produção, hábitos e padrões de consumo, estilo de vida, enfim, uma crise ética e política (FIGUEIREDO, 2007, p. 73). Tais problemáticas demandam capacitação específica dos educadores socioambientais, na realização da tarefa de educar para a cidadania socioambiental, que não encontra resposta no âmbito unicamente econômico, mas na interligação sistêmica, complexa, da rede das relações sociais e ecológicas (DI CIOMMO53apud FIGUEIREDO, 2007, p. 74).

Deste modo, os diferentes saberes – diferentes leituras do mundo – são válidos e ao mesmo tempo questionáveis e o diálogo pode contribuir para que essa cosmovisão se amplie, inclusive, entre pessoas que tem distintas concepções dos problemas socioambientais, pois podem ter seus pontos de vista rediscutidos, refeitos, recriados e até desconstruídos (REIGOTA54 apud FIGUEIREDO, 2007, p. 81).

53

DI CIOMMO, R. C. Ecofeminismo e educação ambiental. São Paulo: Cone Sul, 1999.

54 REIGOTA, Marcos. A floresta e a escola: por uma educação ambiental pós-moderna. São Paulo: Cortez, 1999.

Aos educadores socioambientais cabe renovar esses diferentes saberes e suas especificidades porque, segundo Freire (2004, p. 83), é neles que a sua curiosidade se inquieta e a sua prática se baseia; não é possível avançar sem esses conhecimentos precisos sobre as questões socioambientais. “O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos” (FREIRE, 2004, p. 88; grifos do original).

É preciso fazer essa curiosidade se tornar epistemológica, tê-la sempre insatisfeita, colocar-se em movimento de buscar sempre mais conhecimento – busca essa que é de propriedade unicamente humana, busca de saber mais, de ser mais humano. Isso se alcança, na verdade, na transição da ingenuidade à criticidade, como nos ensina mais uma vez Freire (2004, p. 39):

Como manifestação presente à experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil.

A curiosidade é um exercício que vai da espontaneidade para a rigorosidade, da ingenuidade para a criticidade; quanto mais rigorosa, mais epistemológica, pois ao perder a espontaneidade que lhe é natural, ela vai se tornando uma atitude metódica na busca de saber mais (ZITKOSKI, 2004, p. 273; FREIRE, 2004, p. 89). Essa dimensão gnosiológica da formação humana está embasada na curiosidade do conhecer, pela qual o ser humano vai se tornando cada vez mais capaz de se perceber no mundo, mais capaz de mudar conscientemente, indo de um estado de curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica (FREIRE, 2004, p. 46).

É preciso, no entanto, reconhecer que esse movimento é histórico e acontece em um lugar concreto. É um itinerário que se reconstrói historicamente e exige o respeito pela leitura de mundo pelo outro, que nega a arrogância cientificista e assume uma postura verdadeiramente científica de humildade crítica. “Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade” (FREIRE, 2004, p. 35).

Portanto, o conhecimento é histórico e a curiosidade tem um caráter histórico também, pois nada que fazemos se dá fora do tempo, fora da história (FREIRE, 2007, p. 19). Amparado na teoria freiriana, Brutscher (2005, p. 116-117) discorre sobre a historicidade e a validade do conhecimento:

Sendo o conhecimento processo, a validade lhe é conferida histórica e socialmente através da relação dialógico-comunicativa entre os sujeitos. Sujeitos que, por virtude de sua consciência, sabem que pouco sabem e que também sabem que podem, por virtude de sua interação comunicativa, saber mais. [...] Nesta perspectiva, a centralidade do conhecimento não gira mais em torno da sua origem, se espiritual ou material, mas em torno das condições de seu desenvolvimento.

Portanto, Paulo Freire estava preocupado em superar a postura moderna focada no subjetivismo e no paradigma da consciência individualista. Nisto, avançou para um paradigma embasado no diálogo e na intersubjetividade. É no diálogo comunicativo e problematizador que encontramos possibilidade de uma Educação Libertadora – e, porque não, de uma Educação Socioambiental Crítica (BRUTSCHER, 2005, p. 122).

Finalmente, é o próprio Paulo Freire (2007, p. 18) que sintetiza sua epistemologia ou teoria do conhecimento:

Sendo metódica, a certeza da incerteza não nega a solidez da possibilidade cognitiva. A certeza fundamental: a de que posso saber. Sei que sei. Assim como sei que não sei o que me faz saber: primeiro, que posso saber melhor o que já sei; segundo, que posso saber o que ainda não sei; terceiro, que posso produzir conhecimento ainda não existente.