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CAPÍTULO III – ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DADOS

3.4 DIMENSÃO DO CONHECIMENTO

3.4.1 Mundo como mediador do conhecimento

Para compreender como Freire formulou sua teoria do conhecimento é preciso entender seu modo de conceber a maneira de como o ser humano aprende. Desde os primórdios do Método Paulo Freire, nele estava implícito uma visão diferente, ou seja, “[...] o conhecimento é visto a partir da totalidade da própria vida humana no mundo, superando-se, assim, as dicotomias e fragmentações tradicionalmente presentes [...]” (ZITKOSKI, 2004, p. 260).

Nesta perspectiva, Freire afirmava que a Educação é uma teoria do conhecimento colocada em prática, pois implica uma postura pedagógica do educador diante do mundo; exige dele uma concepção de como vai construir conhecimento com os educandos (BARRETO, 1998, p. 59). Por isso, para adentrar na acepção freiriana de conhecimento é necessário entender que o mesmo se dá no diálogo intersubjetivo (sujeito-sujeito) sobre algo (objeto cognoscível) no mundo (mediador). Brutscher (2005, p. 87), nos ensina como esse processo acontece de acordo com a compreensão de Paulo Freire:

Freire compreende o conhecimento como processo de interação comunicativa entre sujeitos cognoscentes inseridos num mundo que, por sua vez, também precisa ser significado. Para ele, a característica fundamental do mundo cultural, histórico, enfim, humano, é a comunicação, a qual repousa numa base intersubjetiva. Por isso, o conhecimento não pode se reduzir à relação sujeito-objeto, porque não encontra sua finalidade só no objeto conhecido, mas sim na comunicação estabelecida entre sujeitos a respeito deste objeto que, às vezes, pode ser a própria relação intersubjetiva (regras e normas), como pode ser o mundo externo.

Daí que não é possível, na concepção freiriana, um conhecimento que não se faça no diálogo, entre sujeitos (educador-educando). Também não é possível conhecer e dar significado ao objeto cognoscível de forma isolada, pois o significado se encontra na relação comunicativa dialógica e interativa entre os sujeitos conhecedores. Brutscher (2005, p. 87-88) reafirma:

Neste sentido, para Freire, o conhecimento, enquanto processo de interação comunicativa entre sujeitos mediatizados pelo mundo, que não é simples suporte, mas mundo existencial que se constitui a partir do conjunto de relações objetivas, subjetivas e intersubjetivas, possui uma dupla condição: uma, cognoscitiva, a apreensão da realidade; outra, comunicativa, o diálogo em torno do significado e sentido da realidade apreendida e ressignificada pelos sujeitos envolvidos no processo de conhecimento. [...] é, sobretudo, interação comunicativa entre sujeitos mediados pela realidade e, portanto, elaboração dialógica a realizar-se histórica e socialmente.

(Grifos do original).

Portanto, podemos dizer que o conhecimento tem significado na medida em que está relacionado a um contexto espacial e temporal e, nesse sentido, põem-se as questões relativas ao meio ambiente, especialmente do contexto de vida do cotidiano dos sujeitos-alunos. Nessa conexão, torna-se importante, pelo diálogo, a construção do conhecimento em torno das problemáticas das experiências e vivências sociais, como os descasos dos que governam pelas áreas mais pobres das cidades, sobretudo nos aspectos de saneamento e segurança; as posturas dominantes que desumanizam os seres humanos, desencadeando problemas socioambientais locais e globais (por exemplo, a questão hodierna das mudanças climáticas afetando situações e condições de vida), tendo-se em vista, nesse processo de reflexão, construir alternativas políticas de superação de situações-problema (FREIRE, 2004, p. 38).

Sob essa ótica, o conhecimento precisa ser engajado, conectado à realidade – à práxis social; na construção do conhecimento, dos saberes, sempre há uma intencionalidade da consciência, visto que o ser humano é “[...] sujeito da produção

de sua inteligência do mundo [...]”, “[...] arquiteto de sua prática cognoscitiva [...]”, posicionando-se como um “sujeito que conhece” (FREIRE, 2004, p. 122-123).

Segundo Barreto (1998, p. 61), o conhecimento em Freire é político, tem um aspecto social, nasce da ação, pois está ligado à superação das posturas sócio-pedagógicas centradas na decoreba, na memorização, pondo o educando como depositário do conhecimento dos outros. Zitkoski (2004, p. 276) reafirma essa tese do ser humano como protagonista da transformação social, a partir do desvelamento da realidade pelo conhecimento:

O ser humano não pode ser visto como um espectador desinteressado do mundo no qual apenas observa as realidades que o cercam. Ao contrário, o ser consciente implica o agir consciente sobre a realidade, constituindo, assim, a unidade dialética entre ação e reflexão, teoria e prática. (Grifos do original).

Essa constatação de que conhecer é um ato sócio-político, além de epistemológico, permite inferir que a Educação é um processo de construção de soluções sócio-pedagógicas, que incluem diversos aspectos da realidade. É Freire que nos chama a atenção, ao narrar uma de suas experiências nas visitas às escolas para dialogar com os educadores; estes, quando analisavam fotografias do entorno da escola não as reconheciam como sua realidade, pois não faziam parte de seu cotidiano problematizar seu contexto imediato; restringiam-se a transmitir os conteúdos curriculares. Depois de refletir sobre a realidade apresentada pelas fotografias, um dos educadores do grupo constatou (FREIRE, 2004, p. 134):

Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de sua redondeza além das ruas que lhe dão acesso. Agora, ao ver essa exposição de fotografias que nos revelam um pouco de seu contexto, me convenço de quão precária deve ter sido a minha tarefa formadora durante todos esses anos.

Por este aspecto conscientizador é que se dá a construção reflexiva do conhecimento, permitindo a tomada de consciência do mundo que nos cerca; daí que o conhecimento em Freire é um ponto importante dentro de sua pedagogia, especialmente fomentando posturas críticas de educadores e educandos diante da realidade-mundo. Desta maneira, a Educação assume um caráter eminentemente libertador, pois está fundamentada no desvelamento do mundo pelo ato do conhecimento. Quem nos detalha essa dimensão da pedagogia freiriana é Boufleuer (2008, p. 97):

Na pedagogia dialógica de Freire, o educador e o educando estão diante de um mundo a ser conhecido e transformado. Realizada como práxis, essa pedagogia permite que a tomada de consciência da realidade opressora e o trabalho que visa a sua transformação se realizem como um único e mesmo processo. [...] E esse processo de conhecer precisa ser realizado como tarefa coletiva de homens sujeitos.

Então, conhecer a realidade é fazer a sua leitura e interpretá-la para transformá-la, sempre tendo presente que toda pessoa já traz consigo uma leitura do mundo, um saber de experiência feito, pois não há ignorantes absolutos, nem o contrário. Cabe aos educadores estar atentos a leitura que seus educandos trazem para a sala de aula, suas concepções de mundo, de natureza, de conflitos socioambientais, da geografia do espaço local e global, de seu contexto imediato, sua vizinhança, sua situação e condição econômica, cultural – todos estes aspectos tem potencial para o educador trabalhar a consciência e cidadania socioambiental (FREIRE, 2004, p. 68).

Essa leitura do mundo se constrói desde que o ser humano começa a tomar consciência do que está ao seu redor, seu mundo imediato. Por isso, ao educador cabe “ler a leitura” que os educandos trazem para os espaços educativos, formais e não-formais, segundo ressaltou o próprio Freire (2004, p. 83):

Como educador, preciso ir “lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”.

Para Freire a resistência que impera em alguns educadores de não considerar o conhecimento do mundo, pelos educandos, é sempre condicionada por uma cultura de opressão de classe, sob a qual ainda muitos estão sujeitados, já pela linguagem ou postura pedagógica conservadora dos educadores, impedindo a experiência da construção do novo conhecimento a partir do diálogo entre os diferentes saberes, sempre tendo o mundo – a realidade socioambiental – como mediador deste processo (FREIRE, 2004, p. 121).

Além da possibilidade da negação dos saberes, também não pode ser uma leitura do mundo feita pelo outro – uma leitura alienada, silenciadora, que se esconde no academicismo –, novamente deixando em segundo plano o saber da

experiência, enfim, uma imposição de visão de mundo. Mas precisa sempre ser uma leitura crítica. É Freire (2005, p. 106-107) que nos alerta:

É a “leitura do mundo” exatamente a que vai possibilitando a decifração cada vez mais crítica da ou das “situações-limites”, mas além das quais se acha o “inédito viável”. É preciso, porém, deixar claro que, em coerência com a posição dialética em que me ponho, em que percebo as relações mundo-consciência-prática-teoria-leitura-do-mundo-leitura-da-palavra-contexto-texto, a leitura do mundo não pode se a leitura dos acadêmicos impostas às classes populares.