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CAPÍTULO III – ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DADOS

3.1 CONCEPÇÃO DE SER HUMANO

3.1.1 Ser humano como parte da natureza

Para Paulo Freire o ser humano está inserido na natureza enquanto ser inconcluso e não como algo à parte, dela separado. Ele é parte integrante do todo social e natural, também inconclusos.

Conforme se encontra nas palavras de Freire (2004, p. 60):

A inconclusão, repito, faz parte da natureza do fenômeno vital. Inconclusos somos nós, mulheres e homens, mas inconclusas são também as jabuticabeiras que enchem, na safra, o meu quintal de pássaros cantadores; inconclusos são esses pássaros como inconcluso é Eico, meu pastor alemão, que me ‘saúda’ contente no começo das manhãs.

A inconclusão na raiz da existência do ser humano põe-no entre os outros seres na natureza. Distinto de todos os outros pela sua capacidade de fazer história e cultura, se iguala a eles no que diz respeito à dimensão natural.

E é por ser inconcluso que o ser humano está aberto às possibilidades de ser mais humano. Está aberto ao mundo, aberto à relação com o mundo e com os outros seres do Planeta; assim, a inconclusão tem caráter positivo como dimensão humana do vir-a-ser, condição para a humanização e contrária à desumanização, como nos mostra Freire (2003, p. 30):

Ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão.

A concepção de ser humano como parte da natureza pode contribuir para reflexões em torno da problemática socioambiental e, nesse contexto, para focar a

necessidade de outra racionalidade relativa ao meio ambiente – uma racionalidade vinculada à sustentabilidade da vida, das sociedades em geral.

A compreensão de ser humano pertencente à natureza permite entender, a partir de Freire, a vida como unitária, entender o ser humano e os outros seres do mundo como uma unidade interdependente e complexa. Portando, “[...] a natureza e os humanos, bem como a sociedade e o ambiente, estabelecem uma relação de mútua interação e co-pertença, formando um único mundo” (CARVALHO, 2008, p. 36). Ou, dizendo de outra forma, nas palavras do próprio Freire (2007, p. 17), “preciso do mundo, como o mundo precisa de mim”.

Diante desses pressupostos epistemológicos, já não é mais possível postular uma dicotomia entre sociedade e natureza, pois ambos são partes de um todo complexo e dinâmico, que se fazem e se refazem nas relações socioambientais. O mundo (natural e cultural) e o ser humano (homem e mulher) são partes interdependentes, que se complementam nas ações sociais e nas reações biofísicas da natureza. O princípio da interdependência reaparece aqui e em conjunto com as idéias de Freire, demonstra não somente o ser humano como dependente do mundo natural para viver, mas que este mundo depende do ser humano para se manter adequado à existência da vida (CARNEIRO, 2007, p. 100).

Segundo Floriani e Knechtel (2003, p. iii), no último quarto do século XX, a história se pautou em torno dos debates e problemas socioambientais, de tal forma que essa interação da humanidade com a natureza é marca desse tempo:

Fundada sobre a permanente interação entre sociedade e natureza a experiência humana sobre a Terra, e sua conseqüente história, apresentam constituições e dinâmicas intrinsecamente diferenciadas, porém complementares.

O ser humano como parte da natureza, como parte integrante e complementar do mundo, supera a concepção dicotômica entre sociedade e natureza, fator este que tantos males tem causado ao meio ambiente natural e social, como constata Duvoisin (2002, p. 91):

À medida que o ser humano foi se distanciando da natureza e passou a encará-la como uma gama de recursos disponíveis a serem transformados em bens consumíveis, começaram a surgir os problemas socioambientais ameaçando a sobrevivência do nosso planeta.

Essa superação urgente e necessária da díade sociedade-natureza só será construída a partir de concepções em que o ser humano não se considere acima dos demais seres do Planeta e como separado da natureza – vendo os outros seres apenas como entes utilitários e sem importância intrínseca para a estabilidade contínua da vida. Tal visão de ser humano direciona uma compreensão de mundo sistêmico-dinâmica e não-predatória. Deste modo, enfoca-se a importância de educar as pessoas a serem capazes de restabelecer “o equilíbrio necessário entre os homens e as mulheres entre si na e com a natureza” (ARAÚJO FREIRE, 2003, p. 15). Isso implica a formação de uma consciência de pertencimento ao mundo, de atitude ecológica que identifique os problemas e construa alternativas sustentáveis para o ambiente que vivemos, mediante processos de ensino e de aprendizagem críticos e emancipadores (CARVALHO41apud LEMOS; MARANHÃO, p. 82).

No entendimento de Freire (2003, p. 74), os seres humanos estão “ora imersos, ora emersos, ora insertados no mundo”. São partes integrantes e integradas no e do mundo – são sua parte consciente. Por isso, os seres humanos são interdependentes e ao mundo pertencentes. O mundo aparece ao ser humano como uma situação concreta, desafiadora e problematizante, possibilitando-lhe superar a percepção mágica e projetando uma concepção crítica.

A presença ativa do ser humano como consciência do mundo e o sentimento de pertencimento, permite a cada um fazer sua história a partir do enfrentamento da realidade concreta nas situações-limites – estas vista como algo a ser transposto, a ser superado –, para a construção, através dos atos-limites, do inédito viável – algo ainda não conhecido, nem vivido, mas sonhado (FREITAS, 2001b, p. 27-32).

Segundo Capriles42 apud Caride e Meira (2001, p. 26), há um erro ilusório primário ao nos sentirmos separados do resto do Universo e dos outros seres, “[...] levando-nos a contrapor-nos a eles, a tentar submetê-los, a destruir aspectos da natureza que nos incomodam e – por extensão – a apropriar-nos daqueles que nos dão conforto, prazer, segurança”. Dada a posição privilegiada dos seres humanos na natureza dentro do processo evolutivo, devem tratar os outros seres como equivalentes aos humanos e não como meros objetos, sendo seus usuários quando

41

CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

42 CAPRILES, F. Individuo, sociedad, ecosistema: ensayos sobre Filosofía, Política y Mística. Mérida/Venezuela: Consejo de Publicaciones ULA, 1994.

necessário, mas concomitantemente, seus advogados (ETXEBERRÍA43 apud

CARIDE; MEIRA, 2001, p. 259).

A criticidade intrínseca à Educação Socioambiental, que torna os processos educacionais mais emancipadores e libertadores, encontra na concepção antropológica de Paulo Freire uma base firme para sustentação no diálogo com os outros autores. São indiscutíveis as múltiplas possibilidades com que se pode partir dessa compreensão, de Freire, do ser humano. Por isso, concordamos com Araújo Freire (2003, p. 19), quando afirma que “o diálogo em torno da educação ambiental é mais do que uma questão científica, política ou epistemológica. É uma questão ético-antropológica de luta pela vida!”.