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A «questão da língua»: António Ferreira e os gramáticos portugueses renascentistas

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 124-127)

DO PORTUGAL-NAÇÃO AO PORTUGAL-IMPÉRIO: MITIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

5.1. A consagração do nacionalismo segundo os códigos clássicos

5.1.3. A «questão da língua»: António Ferreira e os gramáticos portugueses renascentistas

Época por excelência de procura de afirmação das nações modernas, o Re- nascimento assiste ao florescer da consolidação das línguas vulgares por toda a Europa. Os ‹‹romances›› procuram autonomizar-se em relação ao latim, contri- buindo esta emancipação para dignificar as nações em causa. É a «Questão da Língua», na qual intervêm artistas e gramáticos, uma vez que, para ser usada como nacional, uma língua tem de ser codificada e uniformizada. Por outro lado, a invenção da imprensa gerou a necessidade de se generalizar e normalizar uma língua acessível a todos os estratos sociais, na qual os textos fossem reproduzidos e posteriormente descodificados por um vasto público que não dominava o latim, língua restrita às minorias cultas.

No entanto, o caso português é mais complexo: a par do latim, uma outra língua disputava o papel de Língua institucional: o castelhano. Assim, em Portu- gal a «Questão da Língua» tem duas facetas paralelas: a reivindicação de auto- nomia em relação ao latim e a disputa por um lugar dominante face à ameaça do castelhano. Na sociedade nacional seiscentista é comum o bilinguismo luso-cas- telhano, fomentado pelas estreitas relações políticas entre Portugal e Espanha.

É no século xvi que Portugal consolida a sua posição de nação indepen- dente, ao acrescentar aos fatores da soberania nacional – a independência política,

os limites geográficos, a consciência nacional – um elemento essencial: o fa- tor linguístico. Sendo a língua uma faceta importante na constituição da nação, sobretudo segundo o modelo de nação étnica, é determinante avaliar a ação de escritores e de gramáticos renascentistas na defesa, valorização e ilustração da língua portuguesa.

António Ferreira foi um dos autores que mais se manifestou contra a pro- gressiva ‹‹castelhanização›› da nossa cultura. A sua obra ressuma um tal sentimento patriótico que é um exemplo acabado de nacionalismo linguístico nas letras portu- guesas. É recorrente o apelo aos seus companheiros de letras para que dignifiquem e fortaleçam o lugar da língua portuguesa no conjunto das línguas europeias. Em carta a Pero Andrade de Caminha acusa-o de não ser patriota por escrever em cas- telhano148 e relembra-lhe a importância da língua como garante da independência

nacional: ‹‹E a boa tenção, e obra à pátria sirva,/ Dêmos a quem nos deu, e devemos mais./ Floreça, fale, cante, ouça-se, e viva/ A Portuguesa língua, e já onde for/ Se- nhora vá de si soberba, e altiva›› (Ferreira, [1953]: 48).

No processo de enobrecimento da língua portuguesa tem um papel essen- cial o uso da mesma não só a nível institucional e administrativo, mas sobretudo a nível literário, daí que seja tema recorrente na obra de António Ferreira o inci- tamento à escrita de uma epopeia nacional – tópico, aliás, recorrente na literatu- ra renascentista, presente também em Sá de Miranda –, desígnio que só irá ser cumprido por Camões. Vários são os destinatários deste apelo (D. António de Vasconcelos, D. Duarte, Pero Andrade de Caminha, António Castilho), desejando o autor que a língua portuguesa dê assim prova de maioridade pela sua aptidão expressiva para um género maior – o épico –, ao mesmo tempo que se contribuía para a celebração da expansão ultramarina: ‹‹O Português Império, que assim toma/ Senhorio por mar de tanta gente,/ Tanto bárbaro ensina, vence, e doma;/ Porque assi ficará tão baixamente/ Sem Musas, sem esprito, que cantando/ O vá do Tejo seu, ao seu Oriente?›› (Ferreira, [1953]: 78).

No campo estritamente linguístico, são os gramáticos portugueses, à ima- gem do que fazem os seus homónimos europeus, que procuram sistematizar, co- dificar e dignificar o vernáculo (numa componente mais normativa), ao mesmo tempo que refletem sobre questões mais universalizantes como as da origem e essência da linguagem (gramática de teor especulativo)149.

148 ‹‹Mostraste-te tégora tão esquecido/ Meu Andrade, da terra, em que nasceste,/ Como se nela não foras nascido›› (Ferreira, 1953: 47).

149 No século xvi, vários gramáticos defenderam a sua língua vulgar, nomeadamente o italiano, o castelhano e o francês, como é o caso de, respetivamente, Pietro Bembo em Prose della

Volgar Lingua (1525), Juan de Valdès em Diálogo de la Lengua (1535) e Joaquim du Bellay em Défense et Illustration de la Langue Française (1549).

O pioneiro é Fernão de Oliveira, em 1536, com a Gramática da linguagem

portuguesa; seguem-se-lhe João de Barros com Gramática da língua portuguesa: cartinha, gramática, diálogo em louvor da nossa linguagem e diálogo da viciosa vergonha (1539-1540), Pero de Magalhães Gândavo com Regras que ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa com o diálogo que adiante se segue em defensão da mesma língua (1574) e Duarte Nunes de Leão

com Ortografia e origem da língua portuguesa150. Todos estes autores partilham

de um patriotismo linguístico que se revela na inventariação das virtudes da lín- gua portuguesa, provando ser esta superior à castelhana, quer pela sua conformi- dade com o latim (indicador da sua pureza), quer pela sua desconformidade com o mesmo (sinónimo de autonomia e de maioridade). Gândavo assume claramente o confronto entre as línguas vulgares ibéricas, ao encená-lo num diálogo em que disputam um português (Petrónio) e um castelhano (Falêncio), saindo o primeiro vencedor na argumentação da superioridade da sua língua.

Quanto às qualidades da língua portuguesa apresentadas por estes autores nos seus estudos, a lista é abundante e a sua ocorrência é, na generalidade dos casos, convocada pela competição com o castelhano: riqueza vocabular, criati- vidade, gravidade, majestade, sonoridade agradável, conformidade com o latim, dificuldade como sinal de nobreza, expressividade, antiguidade e originalidade. Todas estas virtudes permitem reivindicar para a língua portuguesa uma autono- mia que lhe confere o estatuto de língua nacional. O facto de existirem palavras intraduzíveis no português (para o qual já D. Duarte chamara a atenção) demons- tra que há já um modo de pensar especificamente nacional, ou seja, manifesta- -se já uma consciência nacional que não se confunde com as outras europeias, conquistando assim a língua portuguesa a sua individualidade própria, alicerçada também na legitimidade do uso literário. À semelhança do que diz D. Duarte sobre a saudade em Leal Conselheiro, também Duarte Nunes de Leão refere a intradu- zibilidade deste vocábulo, mesmo para latim: ‹‹Saudade – este aspecto, como é próprio dos portugueses que naturalmente são maviosos e afeiçoados, não há lín- gua em que da mesma maneira se possa explicar, nem ainda por muitas palavras que se declare bem. Porque, por o que os Latinos chamam desiderium, não é isso propriamente›› (Leão, [1983]: 304). É de notar que a palavra ‹‹saudade›› é con- siderada intraduzível por refletir características próprias dos portugueses, que são ‹‹maviosos e afeiçoados››.

A «Questão da Língua» em Portugal passa, a par da confirmação da cons-

150 Esta obra constituía inicialmente duas obras distintas: Ortografia da língua portugue-

sa, de 1576, e Origem da língua portuguesa, de 1606. Só em 1874 surge uma edição que reúne

ciência nacional, pelo seu uso como instrumento de socialização, de domínio e de evangelização a nível colonial. A homogeneidade linguística do império apresen- ta-se como uma garantia de durabilidade do mesmo, à semelhança do exemplo de Grécia e Roma, como refere Fernão de Oliveira: ‹‹Porque Grécia e Roma ainda só por isto ainda vivem, porque quando senhoreavam o Mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas línguas›› (Oliveira, 1975: 42). Mas a lín- gua não é só um meio de subjugação efetiva no mundo colonial; ela é também a salvaguarda de uma memória perene, de um império que se prolongará para além do territorial, de um império cultural, próximo da noção do império espiritual que mais tarde Pessoa vaticinará para Portugal. Este será um império que sobreviverá ao tempo, que manterá intacta a memória nacional, como diz João de Barros: ‹‹As ármas e os padrões portugueses, póstos em África e em Ásia, e em tantas mil ilhas fóra da repartiçám das três pártes da térra, materiáes sam, e póde-as o tempo gas- tar, peró nam gastará doutrina, costumes, linguágem, que os Portugueses néstas terras leixárem›› (Barros, 1971: 405).

A língua portuguesa conquista, assim, um papel primordial na consolida- ção da autonomia política (que vai ser determinante depois de 1580, durante o domínio filipino), confirmando Portugal como uma nação independente, dotada de expressão própria e com capacidade de se expandir pelo mundo, construindo o seu império: ‹‹A «consciência linguística» vai, pois, a par com a «consciência nacional», até mesmo com a «consciência imperial» e a língua aparece-nos pela primeira vez considerada como o «espírito e a alma» de cada Nação›› (Buescu, 1971: xxxix).

5.2. Destino mítico de Portugal: o Quinto Império de António Vieira como

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