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Destino mítico de Portugal: o Quinto Império de António Vieira como expressão do sebastianismo português

No documento Teses 10 Identidade nacional completo (páginas 127-133)

DO PORTUGAL-NAÇÃO AO PORTUGAL-IMPÉRIO: MITIFICAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

5.2. Destino mítico de Portugal: o Quinto Império de António Vieira como expressão do sebastianismo português

Como tenho vindo a observar, desde os seus primórdios a literatura por- tuguesa é marcada por uma perspetiva claramente providencialista da história nacional. Com a obra do padre António Vieira extrema-se este providencialismo, nomeadamente através do Sebastianismo e do sonho do Quinto Império, o qual, aliás, o levou a ser perseguido pela Inquisição, já que Vieira – contra a doutrina estabelecida – vaticina um império não apenas espiritual, mas também temporal, cujo imperador (numa primeira fase da sua teorização) seria D. João iv, ainda que para exercer tal missão tivesse de ressuscitar. Na História do futuro, Vieira afirma perentoriamente a sua visão providencialista da História: ‹‹Este mundo é um teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira

de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idades da sua Providência›› (Vieira, [1982a]: 156). No entanto, não deixa de defender o postulado da ação do homem – bem patente nas suas intervenções públicas em defesa dos índios, dos judeus, dos escravos –, na medida em que os portugueses devem procurar cumprir o seu destino de redenção do mundo e de consumação do Quinto Império que, segundo as suas interpretações das profecias canónicas e extracanónicas, seria liderado pela nação portuguesa.

A vida de António Vieira (1608-1697) ocupa praticamente todo o século xvii, época marcada em Portugal pelo domínio filipino (até 1640), pelas guer- ras contra Castela depois da Restauração – até a independência portuguesa ser definitivamente reconhecida –, bem como pela ameaça estrangeira aos nossos domínios ultramarinos. Este é, portanto, um período propício ao florescimento do messianismo, patente no espírito português e popularizado pelas Trovas de Ban- darra, a que D. João de Castro deu forma impressa em 1603. Subjugados à coroa espanhola, os portugueses depositam as suas esperanças no regresso do rei reden- tor, D. Sebastião, desaparecido na malograda batalha de Alcácer-Quibir, o qual permaneceria encoberto, oculto, e aguardava o momento propício para libertar o seu povo do jugo estrangeiro. As profecias do sapateiro de Trancoso reforçam o Sebastianismo português, predizendo a vinda de um rei salvador e, pela sua for- tuna literária, determinam a ampla divulgação do profetismo e do messianismo em todas as camadas sociais.

É neste culto sebastiânico (pelo menos numa primeira fase)151 que se inclui

a obra de António Vieira, sobretudo aquela que constitui o seu corpus profético:

Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vida del Rei D. João iv (1659), História do futuro (a primeira edição é de 1718) e Clavis Prophetarum. A primeira obra, anteprojeto da História do futuro, é uma carta

dirigida à rainha D. Luísa de Gusmão procurando consolá-la pela morte do rei D. João iv; Vieira chega mesmo a vaticinar a ressurreição do monarca, o que lhe vale mais tarde a perseguição do Santo Ofício. Clavis Prophetarum, a obra menos lusocêntrica, ultrapassa o âmbito nacional e é dirigida a todo o mundo, na medida em que discorre sobre a realidade e conservação do reino de Cristo consumado na terra. Embora nunca o refira diretamente nesta obra, este sonho universalista e unificador de Vieira só será possível sob a égide do povo português, povo eleito e predestinado para esta missão santa desde a consagração crística em Ourique.

É sobretudo na História do futuro que Vieira reflete sobre o destino mí- tico e providencial de Portugal, partindo de uma longa tradição profética, quer

151 Depois de ter dirigido as suas profecias para o regresso de D. Sebastião, Vieira deposita as suas esperanças messiânicas sucessivamente em D. João iv, D. Afonso vi e D. Pedro ii.

canónica, quer não canónica: Antigo e Novo Testamento, Joaquim de Flora e a sua concepção trinitária da história, o messianismo judaico, os portugueses Ban- darra, S. Frei Gil e Beato Amadeu, entre outros. Vieira insere-se numa tradição messiânica que já anteriormente surgira em autores portugueses, como se nota em Fernão Lopes, que na Crónica de D. João I fala já de um ‹‹mexias›› que havia de salvar o reino. É, no entanto, ao sapateiro de Trancoso, figura fundamental no messianismo nacional, que Vieira dá um lugar de destaque nas suas fontes não canónicas: muitos dos textos do jesuíta ocupam-se da legitimação de Bandarra como profeta, tema que constitui uma das acusações do Santo Ofício que sobre ele impendem. Daí que nos escritos em que desenvolve as suas justificações pe- rante a Inquisição – nomeadamente Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício e

Apologia das coisas profetizadas – Vieira se ocupe detalhadamente em provar o

verdadeiro espírito profético de Bandarra, inspirado por Deus152, demonstrando

assim como certa a conversão universal de todos os homens (incluindo os judeus) que se reunirão sob a égide de um só imperador – o monarca português.

Vieira vaticina para Portugal a missão de evangelizar e converter o mundo à fé cristã, de o unificar sob o comando de um só imperador – que seria português –, inaugurando uma nova era, a do Quinto Império, que sucederia aos quatro an- teriores, já desfeitos ou em vias disso: o assírio, o persa, o grego e o romano. Esta seria uma era de paz, prosperidade e felicidade universais – um paraíso na Terra que a ortodoxia católica remetia para o Céu – que abarcaria o mundo inteiro, in- clusive as novas terras descobertas pelos marinheiros portugueses, as quais, pre- cisamente por serem até então desconhecidas, não tinham sido dominadas pelos anteriores impérios. Eduardo Lourenço chama a atenção para este caráter univer- salizante do messianismo português: ‹‹muito mais do que um rei ou um salvador para um Portugal empírico, o nosso sebastianismo é sonho de rei universal, ou, melhor ainda, de realeza universal›› (Lourenço, 1999c: 139).

O discurso prospetivo de Vieira é fundamentalmente de teor religioso, mas não deixa por isso de ter uma base declaradamente política: Vieira revela uma visão nacionalista e patriótica em que Portugal é exaltado como o centro da glória futura imperialista. Como afirma António Machado Pires, o Sebastianismo, após a derrota de Alcácer-Quibir, foi um ‹‹esforço de sobrevivência política››, uma ‹‹forma de nacionalismo›› que garantiu a unidade nacional e permitiu a resistên- cia do espírito independentista (Pires, [1971]: 29). Também Maria Isaura Quei- roz, na obra O messianismo no Brasil e no mundo, defende que os movimentos messiânicos não se resumem ao aspeto religioso, apresentando-se como soluções

152 O argumento fundamental de Vieira é o de que as profecias de Bandarra se tinham cumprido, o que prova que ele é um verdadeiro profeta, por inspiração divina.

para situações de crise social, de problemas sócio-políticos (Queiroz, 1977: 352). Um dos aspetos fundamentais da tese quinto-imperial vieirina é a justifica- ção do papel central de Portugal no devir histórico. Nos textos que constituem a sua Defesa perante o tribunal do Santo Ofício, escritos entre 1665 e 1666, Vieira apresenta uma série de provas que atestam a legitimidade da atribuição do Quinto Império a Portugal, das quais se destaca o próprio caráter dos portugueses, for- temente exaltado pelo autor. Estes reúnem as virtudes necessárias a tão grande empresa: fé, piedade, religião, culto divino, devoção e veneração do Santíssimo Sacramento, valor, resolução, constância, generosidade, espíritos grandes, fama das armas, arte da navegação e domínio sobre o mar (Vieira, 1957, ii: 262-275). A par destas qualidades intrínsecas do povo português, estão argumentos de ordem histórica e de ordem mítica: entre os primeiros avulta o facto de D. Manuel I ter acolhido os judeus de Espanha, o que constitui um prenúncio da conversão uni- versal dos povos; por outro lado, a Expansão Ultramarina é já um sinal de que os portugueses têm uma missão histórica e cristã de expandir a fé a todo o mundo, lutando contra os infiéis e evangelizando os gentios. Em termos míticos, Vieira retoma o texto bíblico e a tradição que faz dos portugueses descendentes de Noé, já que o neto deste, Tubal, teria sido o primeiro português do mundo, fundador de Setúbal. Ora Tubal – cujo nome significa ‹‹o mundo ou o homem de todo o mun- do›› – é filho de Jafé, literalmente ‹‹o dilatado››, designação que, segundo Vieira, é já profética por aludir à propagação do poder de um povo sobre todo o mundo, a dominação universal 153. Esta sagração mítica do povo luso como predestinado

a ser a cabeça do Quinto Império é confirmada num dos mitos da fundação da nacionalidade, criado três séculos depois dos factos ocorridos154: o milagre de

Ourique, segundo o qual é o próprio Cristo que escolhe Afonso Henriques para a missão de fundar um império cristão155.

Esta visão exaltada e nacionalista que coloca Portugal à frente dos destinos do mundo encontramo-la também em História do futuro: ‹‹Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e o fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses›› (Vieira, [1982a]: 54). Mas esta obra não se limita a uma função exegética e premonitória: para além do seu caráter profético, a História do futuro pretende ter a finalidade prática de ‹‹mo- ver os ânimos dos homens›› (idem; 63), dando-lhes paciência e consolação para suportarem as provações a que Deus, a Providência Divina que tudo determina,

153 Cf. Borges, [1995]: 214-215.

154 Como o prova Herculano na conhecida polémica sobre o tema (cf. Herculano, 1982- 1987, IV: 39-99).

155 Estas terão sido as palavras de Cristo: ‹‹Volo in te et in semine tuo imperium mihi

os submete. Deste caráter pragmático da obra trata o autor quando refere as ‹‹uti- lidades da História do Futuro›› (capítulos 4 a 7); assim, este escrito é um plano de ação que, ao fazer a descrição aos portugueses do seu futuro grandioso, deve incitá-los à conquista do mundo156.

A ideia de um Quinto Império que abarcaria o mundo inteiro não é original. Vieira reinterpreta os profetas bíblicos Daniel e Zacarias à luz da sua teoria luso- cêntrica quinto-imperial. Em Daniel e Zacarias as profecias apresentam estrutu- ras semelhantes: são descritos quatro elementos, em ordem de valor e de poder decrescente – no sonho de Nabucodonosor são os metais (Daniel, 2, 27-45), na visão do próprio Daniel quatro animais (Daniel, 7, 1-27), em Zacarias quatro carros com cavalos de diferentes cores (Zacarias, 6, 1-15) – sendo que estes ele- mentos, simbólicos de quatro impérios, são derrotados para que se instaure um novo poder. A originalidade de Vieira está na nacionalização deste quinto poder, conjugando o mito do Encoberto com um Quinto Império luso: segundo o jesuí- ta, será português o rei universal, independentemente da identidade do monarca. Com Vieira, o nacionalismo que vem de autores anteriores é levado ao extremo, tornando-se Portugal não só senhor do seu império ultramarino, mas líder do mundo inteiro. Este sonho imperialista esboroar-se-á, mas ficará indelevelmente marcado no imaginário da cultura portuguesa, a ponto de surgir em Pessoa, ainda que transfigurado em império cultural e não territorial157. É este caráter ecumé-

nico, universalista e messiânico que, desde a Expansão Ultramarina, permanece como traço fundamental da identidade portuguesa.

156 Cf. Cantel, 1964: 27 e Cantel, 1960: 179. 157 Cf., por exemplo, Pessoa, 1978: 249-253.

VISÕES DÍSPARES DA NAÇÃO NO SÉCULO XIX:

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